O chileno Roberto Bolaño, morto em 2003 aos 50 anos de idade, se considerava mais poeta do que romancista. Mas o que empolgou o leitor no mundo inteiro foi mesmo sua prosa, arrebatadora e larga, com “disposição para desnudar os contornos da alma”, como disse a jornalista norte-americana Ligaya Mishan, por ocasião do lançamento de 2666, nos EUA, em 2008.
O escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, que já morou no Brasil e hoje vive em Barcelona, disse que leu as 662 páginas de Os detetives selvagens em três dias, sem parar para nada além de comer. Quando ia ao banheiro, ia lendo, e quando ia dormir sonhava com o que tinha lido.
“Ler aquele livro ininterruptamente era como um feitiço, uma fórmula oculta, um tipo de oração. E quando terminei a leitura, eu estava mais deprimido e com raiva, mas minha fé na literatura tinha se renovado, e minha vocação de escritor havia se fortalecido”, disse Villalobos numa conversa com a primeira biógrafa do escritor chileno, Mónica Maristain, no livro El hijo de míster playa: una semblanza biográfica de Roberto Bolaño.
A poesia de Bolaño tem qualidades, mas não será capaz de arrebatar o leitor como sua prosa fez com Villalobos, Mishan e muitos outros. E apesar de ele se achar mais poeta, tinha noção da superioridade de seus romances, na comparação com os versos que compunha.
Talvez por isso, tenha escrito pouca poesia, publicando três livros em vida, Los perros románticos (1993), El último salvaje (1995), e Tres (2000), ao passo que em romances e contos foi prolífero e fecundo.
Em 2007, seus herdeiros lançaram um livro de poemas, junto com alguma prosa, que Bolaño havia deixado manuscrito, com a clara intenção de publicar, A universidade desconhecida (832 páginas), que saiu no Brasil no ano passado pela Companhia das Letras, com tradução de Josely Vianna Baptista.
A maioria dos poemas presentes neste livro é de safras da juventude de Bolaño, na casa de seus 20 e poucos anos. Ele mesmo conta em notas do autor: “As sete primeiras seções de A universidade desconhecida são datadas entre 1978 e 1981. Uma Barcelona que me assombrava e me instruía aparece e desaparece em todos os poemas”.
Os editores, apesar de toparem publicar o livro, se explicaram quase que pedindo desculpas: “A decisão de publicar A universidade desconhecida vem de nosso profundo respeito pelo amor que Roberto sentia por sua poesia”.
Reflexos da poesia
Dá para ver claramente onde aquela poesia desaguaria: na prosa do autor. E esta é a razão primeira para lermos a coletânea, porque dialoga com o que há de mais seminal na ficção de Bolaño. De algum modo, ele usou sua paixão pela poesia para exercitar formas narrativas com brilho e intensidade, criar tropos e figuras fortes.
Seus romances são experimentos, sondagens de lugares de dentro e de fora de si mesmo, como um detetive selvagem, como alguém que, numa galeria subterrânea, caminha apalpando as paredes iluminadas por uma luz que não abraça tudo.
Esta é justamente a condição da literatura como arte, um sol entre nuvens, um sol que não adentra toda a caverna da existência, mas que lança fulgores pelas frestas da vida e nos permite ver certas silhuetas e movimentos, o que já é suficiente para que investiguemos o que nos encanta, o que nos consome e o que somos.
Dizem os críticos que a obra-prima de Bolaño é 2666, um calhamaço de 856 páginas, dividido em cinco partes, publicado postumamente, em 2004, saudada até nos EUA como um feito de gênio.
Bolaño morreu precocemente, vítima de uma doença hepática degenerativa, na fila de transplante, em Barcelona, à espera de um fígado novo, já artista premiado, mas não reconhecido como viria a ser por uma fileira de novos escritores, inclusive brasileiros.
Seus romances começaram a ser publicados na década de 1990, e, até sua morte (desde 1993 ele sabia que ela o espreitava), foram muitas publicações com histórias arrebatadoras, entre elas A pista de gelo, de 1993, Os detetives selvagens (1998), Noturno do Chile (2000) e os contos de Putas assassinas (2001).
O leitor consegue ver nessas narrativas reflexos de toda sua poesia. A universidade desconhecida é uma espécie de chave que pode abrir o mundo de Bolaño. Seus poemas têm uma condensação que privilegia as imagens, mais do que os sons, conseguindo, no entanto, costurar bem essas imagens com outro fator importante na construção poética, as cargas semânticas.
O significado poético vem menos pela musicalidade e ritmo do que pela paisagem que se ergue de verso em verso. Dá até para ouvir Bolaño repetindo as palavras do poeta pós-moderno norte-americano Frank O’Hara: “Odeio Vachel Lindsay, sempre odiei. Sequer gosto de ritmo, assonâncias, todas essas coisas. Dá nos nervos”.
Obviamente, O’Hara está falando da sonoridade metódica, com marcação silábica, jogo de rimas internas dentro dos versos livres, jogos de condensação, essas coisas muito valorizadas na poesia moderna, e cujos resultados são belíssimos, mas que uma certa estética da segunda metade do século XX começou a liquidar, propondo um modo mais orgânico de sintetizar imagens e sentidos.
Detetive ontológico
Inscreve-se nessa exata poesia de Bolaño um passeio pela experiência vivida na costa mediterrânea espanhola, bem como pela memória da sua terra natal e de seu tempo de México, onde viveu parte da juventude.
Sua poesia é menor que sua prosa, mas não significa que seja ingênua. Tudo ali é pensado a partir de procedimentos que afirmavam a fusão da personalidade do poeta com a realidade das coisas, factual e fictícia, tudo misturado. As condensações de seus versos são imagéticas, reivindicando a memória para dançar junto com as experiências cotidianas.
“Acredite: não é o amor que vai vir,/ mas a beleza com sua estola de auroras mortas”, diz o sujeito poético (se é que ainda dá pra usar esse termo) de “Amanhecer”. Em “Esta é a pura verdade”, ele vaticina: “Quero dizer que meu lirismo é diferente/ (tudo já foi dito, mas permita que eu/ acrescente algo mais).”
No poema “O trabalho”, o sujeito poético parece expressar a dificuldade da poesia, difícil pela exigência do artifício da linguagem poética, mas também pelo fato de já se ter dito tudo. O poeta diz coisas como:
“O olhar desesperado de um detetive”, “Mas ponte não de jeito nenhum nem ponte nem sinais/ para sair de um labirinto ilusório”; “Peço credibilidade, não durabilidade, para as baladas/ que compus em homenagem a garotas bem concretas”, “Dentro de mil anos não restará nada/ de tudo que se escreveu neste século”, “Será como a Antologia grega,/ ainda mais distante,/ como uma praia no inverno”.
Insiste em investigar a memória e, como um detetive ontológico, tenta recuperar os espaços roubados pelo tempo que passou logo ali. Tenta assentar a paisagem, colocar nos lugares lembrados os espólios de uma luta inglória.
Seus poemas são marcados por profusões de imagens. Lembranças de experiências vividas se misturam com experiências de leitura, forjando as imagens poéticas. Às vezes, ele consegue atingir sínteses de grau superior, como num poema curto, intitulado “Árvores”, em que a solidão é observada por bichos e matos do lado de fora, mas por dentro é o humano que o corrói:
“Me observam em silêncio
enquanto escrevo. E as copas
estão cheias de pássaros, ratos,
cobras, vermes
e minha cabeça
está cheia de medo
e de planos
de planícies por vir”
Às vezes, ele se posiciona num lugar de mera contemplação, como um estudante debruçando-se sobre o ofício do poeta, criando metalinguagens, colocando a poesia como reflexão de seu próprio fazer poético, como em “Não compor poemas mas orações”: “Escrever preces que você irá sussurrar/ antes de escrever aqueles poemas/ que pensará nunca ter escrito”.
Ao mesmo tempo, neste mesmo poema, ele inclui as imagens do exílio, “Seus livros esparramados./ Inútil para fazer amor”, e nelas, as imagens de si mesmo, “O que você está fazendo nesta cidade, onde é pobre e desconhecido?”, refletindo e flutuando num ir e vir que parece mesmo ondas de um possível mar que ele contempla:
“Segundo Alain Resnais
perto do final de sua vida
Lovecraft foi vigia noturno
de um cinema em Providence.
Pálido, segurando um cigarro
entre os lábios, com um metro
e setenta e cinco de altura
leio isso na noite do camping
Estrella de Mar.”
Os ventos soaram prosa
Como já disse, Bolaño reflete um jeito contemporâneo de fazer poesia. Veja o exemplo deste poema intitulado “Um soneto”. Um conservador diria que de soneto só tem o título. Um leitor contemporâneo percebe o movimento em direção ao novo, onde tudo é muito estranho, inquietante e banal, ainda nos anos 1970.
“Faz 16 anos que Ted Berrigan publicou
seus Sonetos. Mario passeou com o livro
pelos leprosários de Paris. Agora Mario
está no México e The Sonnets
numa estante que fabriquei com minhas próprias
mãos. Acho que encontrei a madeira
perto do asilo de velhos de Montealegre
e fiz a estante junto com a Lola. No
inverno de 78, em Barcelona, quando
eu ainda vivia com a Lola! E já faz 16 anos
que Ted Berrigan publicou seu livro
e talvez 17 ou 18 que o escreveu
e em certas manhãs, certas tardes,
perdido num cinema de bairro eu tento lê-lo,
quando o filme termina e acendem a luz.”
Mesmo assim, de fato, sua vocação não era a poesia. Ele sabia para onde iam os novos ventos, mas sabia também que aqueles ventos não o levariam longe, “Minha poesia/ (Porcaria) Esse vazio que sinto depois de um/ orgasmo”. E está tudo certo.
Sua poesia é jorro consciente de linguagem em treinamento, experimentos superválidos, com a qual ganhou até concurso. Mas os ventos soaram prosa em seu ouvido.
Em seus poemas, é como se ele estivesse encerrando sua vida dispersa, a vida que ele deixou passar como um barco desgarrado no oceano, enquanto investigava a linguagem, a arte e as experiências mais densas, para sua prosa, “Daqui a muitos anos serei desejado/ como um círculo de gelo”. Pela prosa.
Muitas vezes, ele vai recuperando imagens, olhando para elas e encaixando-as. E aí, muitas coisas surgem, coisas concretas e abstratas, como solidão e chuva, ruas, praças, cidades, sexo, sexualidade, homo/hétero, bibliotecas, livros e leituras. “Nos gibis encontramos a liberdade.”
É uma poesia marcada pelo sentimento de saudade, ou nostalgia, mas não do tipo romântico, e sim do tipo cheio de cacos e troços que ainda permanecem da terra de origem, das quais ele sabe que nunca vai esquecer, porque, na pior das hipóteses, não deixarão.
“Vai chegar o dia em que irão chamá-lo lá da rua:/ chileno”, diz o sujeito poético em “A ética”. Ele sabe que é um “sul-americano em terra de godos”, e que, quanto a isso, não pode fazer nada, “Senão recordar as coisas amáveis/ Que uma vez me aconteceram”. Não pode fazer nada, além de ser irônico consigo mesmo.
A universidade é ele mesmo
Ao lado de sua prosa, sua poesia sul-americana talvez se sinta entre godos. Barcelona é um exílio, mas também uma escola, e talvez a escola, sua escola, a universidade desconhecida (formalmente, tinha o ensino médio incompleto), seja mais a trajetória do exílio do que a própria cidade. Ele se sente “Numa Barcelona cheia de latinos/ com grana sem grana legais/ e ilegais tentando/ escrever.”
Em “Anjos”, ele dá um exemplo de como se sente exilado, e ao mesmo tempo resiste. É um desenraizado, mas faz da superfície sobre a qual desliza um abrigo.
“As noites que dormi entre rostos e palavras,
Corpos vergados pelo vento,
Linhas que olhei enfeitiçado
Nos limites de meus sonhos.
Noites geladas da Europa, meu corpo no gueto
Mas sonhando.”
(…)
“Apagaremos
o entardecer em que o chileno se perde
por uma Barcelona absoluta
A neve
Os cavalos
A solidão”
Ou em “Patricia Pons”: “Do Chile eu só lembro de uma menina de 12 anos/ dançando sozinha numa estrada de cascalho.”
E de repente o exílio se torna a própria alma, ou seja, é o momento que percebemos que a universidade é ele mesmo. E há aí uma pontinha de desilusão, por achar que não alcançaria o Norte que desejava, e um grito engolido de tragédia, porque alcançou, mas ele mesmo não pôde ver o sucesso explosivo.
Autodidata que, por ser disléxico sem contar com a compreensão dos professores, abandonou os estudos formais, Bolaño não se cansou de escrever poemas que imprimem essa condição de autoexilado, como “Para Edna Lieberman”:
“Diz o saltimbanco: este é o Deserto.
O lugar onde se fazem os poemas.
Meu país.”
E de alguma forma (ainda o exílio), o poema “A janela” nos mostra o quanto seu acervo existencial compõe os dados sensíveis e pedagógicos que ergueram essa universidade desconhecida, em que o Chile de sua infância aparece, imenso e trágico, junto com o Chile de Pinochet, violento e opressor, capaz de expulsar seus filhos ou encurralá-los para o fim.
“De cadeiras, de entardeceres extraordinários,
de pistolas que acariciam
nossos melhores amigos
é feita a morte”
De Barcelona, seus olhos miram as paredes diáfanas da velha Grécia. Tudo que flutua sobre o Mediterrâneo também faz parte de sua herança pedagógica. Tudo, as culturas que se cruzam ali, as paisagens, as pessoas, os livros, as mulheres, as amizades, a memória, tudo faz parte de sua universidade desconhecida, e por isso mesmo, não por menos, um de seus personagens mais icônicos se chama Ulises Lima (Os detetives selvagens).
No poema “A curva”, ele diz:
“É noite e estou na zona alta
de Barcelona e já bebi
mais de três cafés com leite
na companhia de gente que não
conheço e sob uma lua que às vezes
me parece tão miserável e outras
tão solitária e talvez não seja
nem uma coisa nem outra e eu
não tenha bebido café e sim conhaque e conhaque
e conhaque num restaurante de vidro
na zona alta e as pessoas que
eu pensava acompanhar na verdade
não existem ou são rostos entrevistos
na mesa vizinha à minha
onde estou sozinho e bêbado
gastando meu dinheiro num dos limites
da universidade desconhecida.”
Às vezes, sua poesia dá a impressão de ser uma legião de fantasmas falando o tempo inteiro, evocando situações, morrendo desejos frustrados ou abrindo portas de legados desistidos, picotados, legados que só seriam lidos, com testemunhas à mesa, na prosa, e só depois de sua morte.