[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
me sinto como uma moradora…
me sinto como uma moradora daquele hotel do conto
onde os velhos foram surpreendidos um dia
pela chegada de um intruso jovem e atlético
e enraivecidos por terem sido perturbados
no seu eterno esquecimento
lhe deram goiabada envenenada
penso em mim como uma velha senhora
que renega o impulso de irromper na vida
com a boca seca desembarcando em estranhas estações
por enquanto continuo mezzo a mezzo… mezzo poeta mezzo contista
pretensa roteirista, gateira por inteiro, gorda e neurastênica
um combo de intenções
Assimetrias ordinárias (2022)
• • •
[2]
tendo tempo, mal leio e pior escrevo ainda…
tendo tempo, mal leio e pior escrevo ainda, mas faço minha lista de
tarefas inacabadas e respiro, quando lembro respiro fundo, procurando na
memória como é que se deseja… outras vezes, sem sair do lugar, corro
léguas, me acovardo, e me ocupo de pequenas demandas enquanto
invejo aqueles que se doam pro seu tormento, produzindo, sem saber,
poesia, pois tanto quanto a impossibilidade me incendeia,
meu desejo cancelado brilha
Assimetrias ordinárias (2022)
• • •
[3]
as patas do gato se cruzam…
as patas do gato se cruzam sobre o livro que eu pouco abri
e eu mal tenho ânimo pra acender a luminária
mas alcanço o frasco de álcool gel e derramo nas mãos
um possível inverno de trópicos chega por aqui
com sol durante o dia
eu queria só poder tocar na nuca desse incerto presente
esperançosa como a menina que numa live do instagram
pinta os dois olhos assimetricamente
Assimetrias ordinárias (2022)
• • •
[4]
mundo não precisa dos meus filhos…
mundo não precisa dos meus filhos e eu mesma um dia deixei de
precisar, liberando-os da minha salvação… antes eu andava pela vida com
meu útero bicorno, retrovertido e caprichoso, prenha de expectativas
sangrava 40 dias até ser curetada num ambulatório frio
isso antes
me disseram que eu era uma árvore seca
mas dou estranhos frutos
filhos não são frutos
salvação?
deus me defenda
Assimetrias ordinárias (2022)
• • •
[5]
depois de décadas minha vida ainda…
depois de décadas minha vida ainda é só um corpo e o tempo agora,
concomitantemente a enganos cultivados dores guardadas em caixinhas
imaginárias de estanho, culposas lembranças, lapsos de lucidez no delírio
do desfoque. ah, masco lápis enquanto projeto recomeços cíclicos. os
dias são feitos de muitos pomodoros e pequenos atos. enquanto lavo a
louça medito em por que se homenageiam genocidas com monumentos
e avenidas e questiono como nunca mais escrevi. mas tomo água, tenho
caminhado até dei match no spotify, regulando as taxas em pleno
apocalipse como qualquer pessoa normal que pagou pro cabelo ficar mais
sem graça do que já estava. um jeito deslizante de não pensar que por
alguma razão tive a sorte de permanecer e continuar. aí me vem uma
palavra que li num romance: escorregável.
Assimetrias ordinárias (2022)
Perfil
Alda Alexandre nasceu em Goiânia no dia 2 de agosto de 1967, cidade onde sempre viveu. É graduada em Letras-Português pela UFG, especialista em Cinema e Educação pela UEG e mestre em Arte e Cultura Visual pela UFG. Atuou como professora do ensino fundamental na rede municipal de ensino de Goiânia durante 25 anos. Poeta e colagista, começou a se autopublicar em suas próprias zines. Contribuiu com as antologias poéticas Sobre gostar menos, v. 2, Tec tec tec tec tic tac, v. 3, e com a antologia de contos e crônicas, Uma santa e dois amantes, v. 3, todas da Coleção e/ou, no selo Naduk, editadas pela Nega Lilu Editora. Participou ainda da Antologia Clandestina II – Escritos de Goiás (Editora Clandestina, 2021). É coeditora da revista lítero-artística Tem base?!, um veículo de difusão de literatura e outras artes produzidas em Goiás. Integra o Rebellium Coletiva, de que é cofundadora, formado por mulheres artistas oriundas da cultura visual. Dirige o Ateliê Rebellium Coletiva, espaço de criação e produção de arte. Publicou, no início de 2022, pelo selo Rebellium Coletiva, o livro de poemas Assimetrias ordinárias.
Leia resenha sobre o livro Assimetrias ordinárias, de autoria de Patrícia Ferreira (Patworkpat), na coluna Veredas, em http://ermiracultura.com.br/2022/06/08/assimetrias-ordinarias-uma-poetica-das-sutilezas/.
Gostei demais de conhecer Alda Alexandre. Vou correr atrás.