O Brasil é o País do Futuro! Essa expressão, surrada e recorrentemente usada por governos e correntes políticas de variados matizes, foi cunhada, primeiramente, pelo escritor austríaco Stefan Zweig, que escreveu um livro com esse nome para louvar nossas belezas, nossa cultura pacífica, nossas potencialidades enquanto nação. Esse trabalho veio à tona em circunstâncias muito específicas. O mundo vivia às voltas com a Segunda Guerra Mundial e as esperanças de um período de paz haviam sido estraçalhadas. O autor deste livro era um fugitivo que vagava pelo mundo, vivendo o pânico de cair nas garras do nazismo, já que era considerado um troféu por Adolf Hitler. E ele veio dar aqui nessa andança desesperada.
O Brasil ainda não entrara na guerra, seus navios não tinham sido torpedeados pelos submarinos alemães e Getúlio Vargas ainda exercia sua notória dubiedade, não se indispondo com os EUA, mas não deixando de emitir sinais aos regimes nazi-fascistas da Europa, com os quais tinha grande identificação. Zweig chegou a um País ainda não conflagrado, mas que lhe recebeu, diferente de vezes anteriores, com certa frieza. Ele fugira da Inglaterra com medo de uma invasão alemã e poderia ter se instalado nos EUA, onde tinha parentes e amigos, mas não quis arriscar morar numa potência bélica. Veio para os trópicos com o cartão de visitas de ter elogiado o Brasil veementemente. Mas aquilo que escreveu não se cumpriu e no “Paraíso”, como chamava nosso País, encontrou a solidão, a depressão e o suicídio, ao lado da esposa, em uma bela e úmida casa em Petrópolis.
Somos uma nação feita de golpes, injustiças, massacres e hipocrisia e hoje vivemos um pouco de tudo isso, num caldo que nos remete a pensar o quanto Zweig era um ingênuo ao acreditar que nós realmente teríamos um futuro esplendoroso a nossa espera.
Uma história trágica e triste que, ao seu modo, acompanha a trajetória brasileira como um todo, sobretudo seu histórico político e social. Este País do Futuro nunca deixou de flertar com o passado. E o que é pior: com o que há de mais asqueroso e destrutivo deste passado. Somos uma nação feita de golpes, injustiças, massacres e hipocrisia e hoje vivemos um pouco de tudo isso, num caldo que nos remete a pensar o quanto Zweig era um ingênuo ao acreditar que nós realmente teríamos um futuro esplendoroso a nossa espera. Nós mesmos, de vez em quando, alimentamos essa ilusão, para não muito tempo depois sermos atropelados pela realidade que nos lança na cara: “não vai rolar não!”
E nunca rolou. E penso que jamais rolará sermos essa nação idílica e próspera, justa e que resolve seus problemas básicos. Na verdade, esses defeitos apenas pioram. Nosso racismo é estrutural e derruba a ideia de uma “democracia racial”, vendida por décadas em discursos e livros didáticos, com o único intuito de manter o mesmo estado de coisas, em que o povo preto é linchado, perseguido e explorado. Não temos mais uma escravidão oficial, mas a vemos com outros contornos: quando os funcionários pretos ganham menos que os brancos, quando as cadeias têm muito mais pretos que brancos, quando os negros moram em situação pior e vivem menos que os brancos, quando eles são massacrados como alvos preferenciais de forças policiais.
Temos um mandatário que gosta de dizer que os negros devem ser pesados em arrobas, como gado no abate – olha o passado escravocrata a nos revisitar mais uma vez.
Esse estado de coisas deveria ser combatido e medidas afirmativas precisam ser tomadas para tentar amenizar tamanha desigualdade, mas justamente no momento em que acreditamos que essa consciência está mais enraizada na sociedade – “agora o futuro vai chegar”, pensamos –, sofremos um tremendo retrocesso, com grupos políticos retrógrados tomando o poder e o eleitorado elegendo um presidente notório por declarações descabidas e desumanas, entre as quais incluem-se as racistas. Temos um mandatário que gosta de dizer que os negros devem ser pesados em arrobas, como gado no abate – olha o passado escravocrata a nos revisitar mais uma vez. Nessa mesma reflexão podemos incluir todos os desrespeitos às mulheres, à comunidade LGBTQIA+, aos indígenas.
Aliás, os indígenas estão, nos últimos anos, vendo sua extinção, num processo que nunca estacou desde as primeiras caravelas portuguesas nas praias do sul da Bahia, ficar mais acelerada, sob as bênçãos de um Estado que deixa de cumprir seu papel e incentiva a ação dos algozes. Garimpeiros ilegais, madeireiros sem licença, grileiros de terras e todo tipo de bandidos, que vão de estupradores a traficantes de drogas, têm uma espécie de passe-livre nas florestas brasileiras, ignorando leis e demarcações, ameaçando e fazendo sumir ativistas que buscam proteger o meio ambiente. É o passado da exploração irracional e violenta que se faz presente e nos deixa mais longe de um futuro digno e sustentável. E quantos apoiadores esse tipo de conduta criminosa ganha, gente que brada a Bíblia e a família como argumentos para que exerçam sua ausência de empatia e sua violência.
Esses “cidadãos de bem”, essa gente que se acha ungida e que acredita nas teorias da conspiração e nas fake news a que são expostas em grupos de WhatsApp e em canais da extrema-direita na internet, nos leva a um passado em que ideais antidemocráticos e até eugenistas dominavam as elites brasileiras. Elites que querem ver seu patrimônio e seu poder progredirem, não o País. Elites que não suportam compartilhar voos com seus empregados, que não aceitam que a diarista faça uma faculdade, que não admite que os pobres tenham casa e carro próprios. Elites do atraso, como diz o sociólogo Jessé Souza. Junte-se a isso o fundamentalismo religioso neopentecostal e de setores católicos ultraconservadores, uma casta política oportunista e cínica e parcelas do Judiciário que se acham em um Olimpo habitado por deuses, e eis que temos o País do Presente, o País da Marcha à Ré, o País que nunca será do futuro.
O futuro de Stefan Zweig é uma utopia. Está situado naquele Estranho Dia que Nunca Chega, que o também escritor Luís Fernando Verissimo mencionou em uma de suas obras que inspira este texto. O Dia que Nunca Chega é o futuro. Ao invés disso, o que chega e se repete é o velho e conhecido atoleiro para o qual nossa vaca sempre vai, tácita e covardemente. No Brasil, vivemos o passado o tempo todo. Para este ano, por exemplo, já temos um encontro marcado com 1964, com o golpe que um ex-capitão resolveu que precisa dar e anuncia desavergonhadamente, sob a anuência de instituições que deveriam freá-lo. Bobo foi o Stefan Zweig que veio para cá e aqui encontrou seu fim 80 anos atrás. Pereceu no Brasil junto com sua ideia de um País do Futuro.
Texto que não envelhecerá, perene!
Parabéns!