No princípio era o ser, e o ser estava só, e o ser era em-si. Mas não se pode dizer nada sobre o tempo em que só havia o ser, nem mesmo que era um tempo. Houve então um momento – o primeiro, o começo do próprio tempo – em que, na noite escura do ser, algo aconteceu. Pode-se dizer que aconteceu a única coisa que poderia acontecer: adveio o Outro do ser. Como pequeninas luzes que se acendessem no tecido indistinto do ser, esse Outro jogou luz sobre o ser e, sobre sua superfície, revelou diferenças e relevos distintos que, na noite escura do ser, jamais apareceriam. O que foi desvelado sobre o ser pelo Outro do ser só pôde ser constatado porque, diferentemente do ser, o Outro do ser tinha consciência do que se desvelava. Na verdade, o Outro do ser eram consciências.
Esse pequeno mito, que acabo de inventar, poderia ser uma maneira de apresentar em chave metafórica a ontologia que Jean-Paul Sartre nos apresentou, em chave fenomenológica, em O ser e o nada. Publicado em 1943, o livro – que, dependendo da tradução, ocupa mais ou menos 700 páginas – é o grande lance filosófico daquele que se tornaria o intelectual total, a consciência do século. Com O ser e o nada, como observa Pierre Bourdieu, Sartre se inscreve na tradição das grandes sumas e acumula um capital simbólico que investirá, com maior ou menor sucesso, em outras áreas da cultura, das artes, da política e da filosofia. Todavia, seu vocabulário filosófico hermético e técnico – compensado pela graça do talento literário do grande escritor-filósofo – motivou a escrita de incontáveis outros textos de teor bem conhecido pelas gentes da filosofia, das letras e das humanidades: os comentários. É nesse gênero textual que se inscreve um de meus livros preferidos, a saber, Sartre, metafísica e existencialismo, de Gerd Bornheim.
O presente texto é, assim, em parte, uma homenagem ao professor falecido há 20 anos. E se digo “em parte” é porque não só não conheci pessoalmente o professor Bornheim como sua morte se deu antes mesmo que eu ingressasse na faculdade de filosofia. Dessa forma, essa singela homenagem que faço assume a única forma que pode ter, a saber, a de ser um comentário de seu texto. Mais precisamente, um comentário de uma parte de seu livro. Considerando que o próprio texto de Bornheim é um comentário de Sartre, minha homenagem é um comentário de um comentário.
Verdade seja dita, a palavra “comentário” tem, involuntariamente, um sabor algo depreciativo: um comentário de um texto de filosofia é, ele próprio, filosofia? Exige-se de um texto filosófico que seja marcado por autoria e originalidade do mesmo modo que se espera isso de narrativas de ficção? Ou uma simples reconstrução do pensamento de outrem já possui, por si, caráter filosófico? Confesso que não tenho respostas claras para tais questões e não sei se prefiro ter tais respostas ou se fico com um provocativo gracejo eventualmente feito por meu orientador de doutorado[1]. Segundo este, a filosofia só “avança” quando os textos são lidos de forma imperfeita, oblíqua, heterodoxa, pois as leituras muito precisamente exegéticas terminam produzindo… comentários. Nesse sentido, o texto de Bornheim não é um comentário do pensamento de Sartre ou, no mínimo, não é apenas um comentário.
Travei contato com o livro de Bornheim em 2006. Na época eu já tentava ler O ser e o nada de forma um tanto desorientada. Recorria, aqui e ali, aos textos de apoio que encontrava na internet e na biblioteca da universidade. Foi em um momento em que balbuciei qualquer coisa sobre a filosofia de Sartre que um mestrando[2], que se tornaria bom amigo, interveio na conversa que já não lembro com quem mais também era. Dias depois ele me emprestaria seu exemplar do livro de Bornheim e minha relação com o pensamento de Sartre enfim melhoraria e se transformaria, pelos anos seguintes, numa legítima paixão. Na época, fiz uma cópia do livro desse amigo e passei manhãs, tardes e noites fazendo anotações nas imensas margens que sobraram na fotocópia de páginas abertas de um livrinho de 20,5cm por 11,5cm. Anos depois cheguei a adquirir um exemplar e tentei reler o texto, mas foi em vão. Permaneci com minha cópia cheia de (gerações de) anotações muito íntimas e dei o exemplar novo de presente para um estudante.
Falei que o livro de Bornheim não é apenas um comentário sobre a filosofia de Sartre, mas, devo dizer, só percebi isso depois de ler textos e mais textos de comentários. Para mim é difícil comparar ou medir a qualidade de outros livros sobre a filosofia de Sartre com o livro de Bornheim porque, em certo sentido, ele é a minha própria unidade de medida desse conjunto de objetos chamados “comentários sobre a filosofia de Sartre”. Isso também é uma coisa que a gente leva algum tempo, na vida, para perceber: algumas coisas são incomparáveis porque são a própria unidade de medida das outras coisas de seu tipo. Desde que se inscrevem em nossa compreensão e nossa memória, essas coisas – que podem ser livros ou amores – vão parar, distraidamente, na prateleira da coleção das coisas que mensuram. É sob a luz da comparação com essas coisas preciosas que, com frequência, as coisas novas parecem insuficientes, insatisfatórias, precárias imitações ou variações imperfeitas de um modelo. Talvez esse seja um modo meio platônico, em um sentido ordinário, de ver as coisas. Mas, segundo o próprio Bornheim, não poderia ser diferente porque, como ele próprio diz ao final de seu livro sobre Sartre, “de certo modo, somos todos sartrianos” (p. 301) e o existencialismo, ao fim e ao cabo, foi mais uma encarnação do platonismo.
Do assim chamado existencialismo se pode dizer muitas coisas, como já o observara o próprio Sartre ainda em 1945, em sua célebre palestra intitulada O existencialismo é um humanismo. Porém, para Bornheim, o existencialismo não é senão, conforme o título do nono capítulo da parte II de seu livro, a radicalização do platonismo. A seção encerra essa segunda parte, intitulada A destruição da metafísica. O livro, aliás, tem três partes. A primeira é, para todos os efeitos, a parte mais próxima do que se poderia chamar de “comentário” da filosofia de Sartre e seus 16 capítulos são dedicados, em grande medida, aos temas de O ser e o nada (“de onde vem o nada?”, “a má-fé”, “a temporalidade” etc). A segunda parte é onde – para permanecer na pista aberta pelo já mencionado gracejo de meu orientador de doutorado – o comentário vira filosofia ao se transformar em interpretação. E isto se dá em razão de uma peculiaridade que se tornou muito incomum nos departamentos de filosofia, a saber, a de um autor escrever sobre um autor enquanto declara filiação ao pensamento de outro: Bornheim se considerava, antes de tudo, um heideggeriano[3].
É nessa perspectiva de heideggeriano que Bornheim apresentará a posição de O ser e o nada na história da metafísica. São apenas três os textos de Heidegger que constam nas indicações bibliográficas de Sartre, metafísica e existencialismo: Ser e tempo [Sein und Zeit], Caminhos de floresta [Holzwege] e Nietzsche. No meio da bibliografia sugerida, uma leitura desavisada não teria como suspeitar da importância central desses textos. Se, em Ser e tempo – que foi uma das principais influências de O ser e o nada –, Heidegger oferece um esboço de ontologia pós-metafísica desde a qual pretende recolocar a questão do ser esquecida de Platão em diante, no livro sobre Nietzsche, Heidegger desenvolve a tese de que a história da metafísica é a história de sua própria consumação. Nessa perspectiva, Nietzsche é um capítulo final de uma história de esquecimento do ser que se iniciara com Platão. Imbuído desse enquadramento heideggeriano, Bornheim mostra que “há um sentido da evolução da Metafísica do qual Sartre permanece caudatário” (p. 134). Para ilustrar o que quero dizer, retorno ao imaginário proposto pela pequena fábula que propus no começo deste texto.
Afirmei que as consciências surgiram como pontos luminosos no horizonte indistinto e indiferenciado do ser. Já na introdução de seu livro, Bornheim mostra como esse começo do filosofar pela certeza subjetiva mostra uma grande vinculação de Sartre com Descartes. Todavia, o conceito de consciência do qual Sartre se serve em O ser e o nada não é o de Descartes, mas o de Edmund Husserl. Em vez de substância pensante, a consciência é sempre relação com algo, consciência de algo, sempre transcendendo a si mesma na direção dos objetos. Nessa perspectiva, “ser” designa o estrato de densidade ontológica dos correlatos da consciência. Tudo aquilo que aparece para uma consciência é. A própria consciência, por sua vez, completamente definida pela relação que estabelece com objetos que se lhe apresentem, não é. Marcada por uma intencionalidade ininterrupta, definida pela perpétua atenção aos objetos que lhe aparecem, completamente constituída pela temporalidade da experiência que resulta de seu encontro com objetos, a consciência é intimamente habitada pelo não ser, pelo nada. É, portanto, um mergulho microscópico nesse pequeno feixe de luminosa atenção, lançado no horizonte da noite escura e indistinta do ser, que resulta no título da obra de Sartre e em suas centenas de páginas.
A inspiração heideggeriana de Gerd Bornheim permite que ele perceba, de imediato, os ecos de platonismo nessa estranha teodiceia na qual as consciências não são nem obras de um Criador nem centelhas emanadas de uma divindade, mas, pelo contrário, são irrupções absurdas e que emergem do nada, sem qualquer razão suficiente para seu surgimento. O primeiro traço platônico no esquema sartriano é o “dualismo invencível” (p. 137) dessa ontologia na qual esses dois domínios – ser e nada, objetos e consciência – jamais coincidirão ou, no limite, sequer estabelecerão qualquer comunicação ou comércio, permanecendo desde sempre e para sempre separados. Se os físicos gostam de realizar experimentos de pensamento por meio dos quais sugerem que habitantes de universos bidimensionais jamais poderiam ter qualquer compreensão da nossa intervenção tridimensional em seus universos, a diferença entre as consciências e seus objetos é ainda mais radical, pois é maior que a diferença ôntica entre entes de duas ou três dimensões, pois é ontológica. A diferença entre o ser em-si dos objetos e o ser para-si das consciências é de tal magnitude que é por sua radicalidade que não se compreende de que modo ou por qual razão surgem as consciências que produzem mundos de sentido por meio dos feixes de atenção significativa sobre o horizonte do ser em-si. Há – ou houve – esse acontecimento absoluto, esse fato irredutível, esse evento originário que inaugura o reino do sentido, do valor, das possibilidades e do âmbito propriamente humano da realidade. Para além do acontecimento, do evento, do fato, não é possível avançar.
Bornheim deixa claro que essa metafísica sartriana, disposta do jeito que é disposta, só pode admitir que um dos dois âmbitos seja considerado real, a saber, o em-si. Mesmo que a consciência o descubra incriado, gratuito, contingente, absolutamente desnecessário, mesmo que a consciência conceba que o ser poderia não ser, todavia, a consciência é duas vezes mais contingente e absurda que o próprio ser, pois é uma contingência que emerge sem razão na superfície de outra contingência. É verdade que a consciência é o estrato da realidade no qual emergirá a linguagem, a racionalidade, todo o domínio da necessidade lógica por meio do qual o saber se torna possível. Todavia, como na filosofia de Kant, a consciência não pode ultrapassar seus próprios limites e conhecer as razões nem de seu próprio surgimento nem do próprio haver ser a desvelar. De forma semelhante ao platonismo, o ser humano é portador da centelha que ilumina a realidade com inteligibilidade. Diferentemente do platonismo, não há possibilidade de uma dialética ascencional na direção do fundamento. Conforme Bornheim, “no caso de um Platão, a Ideia, a rigor, esgota a realidade do real, seu teor ontológico”, enquanto, “no caso de Sartre, o em-si esgota igualmente a realidade do real” (p. 140). Para Bornheim, “o existenciaslismo se situa numa linha integralmente platônica” e “tudo se passa, pois, como se o impasse a que chega Sartre fosse o impasse do próprio platonismo, da crise do todo da Metafísica Ocidental”, ainda que o drama cósmico do absurdo no existencialismo funcione “como se a Metafísica devesse ser possível” (p. 145). Bornheim vê Sartre “como um Platão levado, através de suas peripécias históricas, aos seus últimos desdobramentos” (p. 146).
A substituição da excelsa luminosidade da Ideia platônica pela noite escura do ser, todavia, não é sem consequências e Bornheim realça os contornos dramáticos dessa substituição. Enquanto tipo de ser próprio de todo e qualquer correlato da consciência, o em-si domina completamente o modo de a consciência se relacionar com a natureza, com as outras consciências e, enfim, consigo própria. Tudo se passa como se toda experiência consciente fosse perpassada por uma lei absoluta: diante de uma consciência, tudo é objeto. Tudo: outras consciências serão objetos para uma consciência e a intersubjetividade deixa de ser um âmbito do encontro com o outro para ser o horizonte do conflito entre consciências condenadas a existir numa condição mista entre Midas e Medusa, petrificando e objetificando outras consciências. Em Sartre, como observa Bornheim, “não se verifica a possibilidade de uma relação, digamos, positiva de um sujeito com outro sujeito, só há a relação sujeito-objeto” (p. 177). Essa lei da consciência atingirá sua relação consigo própria: qualquer tentativa de superar o caráter irrefletido da vivência distraída por meio da recuperação reflexiva de si produzirá um objeto distorcido, degradado, uma versão falsificada da própria consciência e que durante séculos, especialmente depois de Descartes, foi designado pela palavra “eu”. O “eu”, portanto, em Sartre, não é o portador da consciência, mas um resíduo degradado da tentativa da consciência acessar a si mesma enquanto consciência.
A abordagem heideggeriana que Bornheim faz de Sartre deixa, vez ou outra, que apareçam seus ferramentais teóricos. É o Nietzsche de Heidegger que Bornheim menciona para dizer que “Heidegger tem plena razão quando afirma que Metafísica, idealismo e platonismo são palavras que dizem, no fundo, a mesma coisa” (p. 182). É dessa história heideggeriana da entificação do ser – isto é, da tomada confusa de um ente (Ideia, Causa sui, Espírito, Vontade de Potência, etc.) como se fosse o ser de todos os entes – que Bornheim lança mão para dizer que na metafísica “a finitude do finito é esquecida”, dando origem à “onto-teo-logia” por meio da qual “o teor ontológico do mundo permanece suspenso numa teodiceia” (p. 182). Como é possível perceber na filosofia de um Spinoza – e, depois de Kant, nas de um Hegel e de um Nietzsche –, “a Metafísica tende a se resolver em termos de participação absoluta, em termos de monismo ou de panteísmo”, nos quais “a separação é o ponto de partida […] que deve ser superado, e isso de tal maneira que o separado se converta à unidade perfeita” (p. 183). É precisamente essa unidade perfeita que comanda, das alturas de um horizonte inatingível, a ontologia de Sartre: o ideal do ser em-si-para-si, de uma existência que possuísse a densidade ontológica das coisas sem perder a prerrogativa da experiência consciente.
É essa posse beatífica de uma essência duradoura e estável como a das coisas do mundo que motiva, todos os dias, cada ser humano a perseverar em seus propósitos. Definido por sua existência consciente temporalmente desagregada pela entropia do tempo e do nada, o ser humano deseja a superação da angústia, do mal-estar, da tarefa de Sísifo de ter de se fazer quem e o que é. O nada que infesta a consciência – portanto, que infesta o coração da realidade humana – produz um insaciável e irrealizável desejo de ser. Um desejo de ser de tipo muito específico: um desejo de ser Deus, pois só Deus poderia gozar dos atributos do ser – e estar a salvo da entropia do tempo – e do nada – ou seja, possuir consciência de si. Mas, conforme observa Bornheim, a síntese entre ser e nada torna “Deus” um conceito contraditório no horizonte da ontologia fenomenológica e “o existencialismo pode ser interpretado como o desespero de Deus”, algo que “o próprio Sartre reconhece” enquanto autor de uma filosofia que “recebe sua seiva da impossibilidade da teologia” (p. 185). A herança platônica no existencialismo é tamanha e a similaridade estrutural da metafísica velada de Sartre com a metafísica de Platão é tão grande que Bornheim se permite dizer que “se Platão dissesse que a Ideia é radicalmente inatingível para o homem” – como Deus é inatingível e contraditório em Sartre – “Platão seria sartriano” (p. 186).
O heideggerianismo de Bornheim faz com que sua apresentação de Sartre seja fatalmente parecida com a apresentação que Heidegger faz de Nietzsche: como o irracionalista alemão, o existencialista francês é um sacerdote do niilismo. Não por capricho, nem por necessidades estéticas do existencialismo: Sartre seria um sacerdote do niilismo porque sua ontologia permanece onto-teo-lógica, dependente da manutenção heurística da ideia de um Deus que, mesmo impossível, dirige por sua ausência o drama cósmico das consciências abandonadas. A onto-teo-logia fenomenológica de Sartre, assim, é mais um capítulo da história da metafísica e a história da metafísica é a história de sua consumação, de sua autodestruição. “A Metafísica é consubstancialmente idêntica ao niilismo”, dirá Bornheim. Todavia, se a divindade do mundo ideal em Platão drena para si a realidade, o sentido e o valor que faltará ao mundo material, em Sartre, a solidão radical de um sujeito insulado entre objetos espalhados ao longo do horizonte de uma noite escura sem Deus faz desse sujeito solitário a fonte de todo sentido e de todo valor de um mundo sempre insuficientemente real. Bornheim mostra como o homem sartriano, com sorte, pode no máximo gozar da lucidez de um ilusionista que tenta, em vão, entreter a si mesmo com truques que não podem enganá-lo. O ser e o nada é, portanto, um tratado de onto-teo-logia que “permite, de um modo privilegiado, a compreensão dos pressupostos fundamentais da Metafísica Ocidental” (p. 193) na medida em que mostra que “o subjetivismo niilista apresenta-se como o termo ao qual tende toda a História da Metafísica” (p. 202). Sartre é metafísico e platônico porque além do fato de que ele próprio admita, no final de O ser e o nada, que o Outro do ser só poderia ser adequadamente concebido como consciễncia, conforme Bornheim, “de Platão ao existencialismo […] trata-se sempre da mesma recusa da finitude do finito, e sempre da reiterada tentativa de divinizar o real e especialmente o homem” (p. 215). É por isso que “com a crise da onto-teo-logia o homem torna-se uma paixão inútil porque a própria Metafísica não passa de uma paixão, em certo sentido, inútil” (p. 217).
Sartre, metafísica e existencialismo foi originalmente publicado em 1971 – época em que Sartre ainda estava vivo e escrevendo, vale dizer. De lá para cá não apenas Sartre e Bornheim nos deixaram, mas a própria arte filosófica do comentário e da interpretação sofreram profundas transformações não só estéticas como também – e principalmente – hermenêuticas e institucionais. O enquadramento heideggeriano da história da metafísica – um enquadramento metafísico, em um sentido muito especial do termo, da história da metafísica – que era praticado não só por Bornheim mas por diversos intelectuais no Brasil e fora dele[4] perdeu apelo, prestígio, relevância e, hoje, jaz meio datado em livros pouco retirados nas bibliotecas das faculdades. Esse ano, aliás, tive a oportunidade de encontrar, em uma biblioteca da UERJ, O idiota e o espírito objetivo. Em mais um livro sobre Sartre, o heideggeriano Bornheim apresenta um belo ensaio sobre a monstruosa obra derradeira do filósofo francês, a saber, sua maníaca biografia de Flaubert, com quase 3 mil páginas. Eu mesmo, que nunca tive o fôlego necessário para encarar o calhamaço de Sartre sobre Flaubert, me deliciei em uma leitura rápida de mais um precioso texto de Bornheim sobre Sartre. Infelizmente, não fiz a leitura mais detida que o texto merece. Percebi, nessa leitura rápida, uma maior ênfase em elementos de história social do que de história da metafísica. Mais ou menos como se pode perceber em algumas palestras do professor Bornheim, finalmente disponíveis na forma de vídeo na internet[5]. Há quem considere a perspectiva de Bornheim sobre Sartre demasiadamente aguda, demasiadamente crítica ou, simplesmente, em razão de sua filiação ao pensamento heideggeriano, demasiadamente herética. Tendo a pensar na perspectiva diametralmente oposta: O ser e o nada é um tratado por meio do qual compreendemos melhor a crise da humanidade contemporânea não só porque Sartre acerta muito quando descreve nossa situação e condição, mas também porque Bornheim acerta muito quando interpreta Sartre enquanto observatório privilegiado de uma longa crise da qual, como do platonismo, permanecemos caudatários. Bornheim enfatiza a vitalidade agônica do pensamento existencialista e acerta ao dizer, com uma sagacidade hoje cada vez mais rara que, em certo sentido, somos todos sartrianos.
BIBLIOGRAFIA
BORNHEIM, Gerd. O idiota e o espírito objetivo. Rio de Janeiro: Uapê, 1998.
BORNHEIM, Gerd. Sartre, metafísica e existencialismo. 3. ed. São Paulo – SP: Editora Perspectiva S. A., 2000.
BORNHEIM, Gerd. Sartre revisto. Transcrição, apresentação e notas de Gaspar Paz. Rapsódia, s/d.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário, Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1996.
FELL, Joseph. Heidegger and Sartre: an essay on Being and Place. New York: Columbia University Press, 1979.
ROCHA, Ronai. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire. São Paulo: Contexto, 2017.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 16 ed., tradução de Paulo Perdigão. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
STEIN, Ernildo. Melancolia: ensaios sobre a finitude no pensamento ocidental. Porto Alegre: Movimento, 1976.
[1] Trata-se do prof. dr. Noeli Dutra Rossatto (UFSM), a quem saúdo com gratidão não só pelo doutorado mas pelos já quase 20 anos de generosa partilha intelectual.
[2] Trata-se do prof. dr. Adelar Conceição dos Santos, amigo a quem saúdo com gratidão pela alegre contingência do encontro e da generosidade da sugestão que, por me acompanhar até hoje, justificou a existência deste texto.
[3] É certamente uma idiossincrasia do campo filosófico que, no dizer de Ronai Rocha (2017, p. 53), o fazer filosófico nas universidades assuma a forma de produção de textos “em favor do idioleto de algum falante […] relevante, que induz a um vocabulário especializado e excludente”. Essa idiossincrasia é talvez um dos traços essenciais de uma produção acadêmica amplamente centrada no comentário, por meio da qual a pesquisa termina centrada não na investigação de temas ou problemas, mas, antes de tudo e sobretudo, na exegese reconstrutiva – e eventualmente, com sorte, um pouco interpretativa – dos textos escritos por alguém. Essa forma da prática da pesquisa e da produção de textos faz com que se perca a oportunidade um filosofar vivo em detrimento de uma espécie de monumentalização das obras. Esse, porém, é um tema e um problema que exigiria outro ensaio. Em vez de desenvolvê-lo, prefiro passar a palavra ao próprio Bornheim, em datiloscrito transcrito por Gaspar Paz, sobre sua condição heterodoxa de heideggeriano que tanto escreveu sobre Sartre. Diz o autor: “Permito-me, para concluir, e a título de mera obrigação intelectual, duas palavrinhas sobre a minha própria produção em torno de Sartre. É que publiquei um livro sobre o filósofo, outro meio livro, e mais algumas miudezas, como esta aqui exposta. E sói acontecer, com relativa frequência, que encontro pessoas que me tomam por sartriano, e nem me levam a sério se as desminto. Entretanto, nunca fui sartriano, nem mesmo nos possíveis ardores dos modismos das primeiras degustações. Porquanto, se meu livro apresenta, em sua primeira parte, principalmente uma exposição introdutória ao pensamento de Sartre, segue-se uma crítica, nas partes subsequentes, que continuo considerando em tudo essencial. De resto, qualquer leitor, mesmo medianamente avisado, percebe de imediato que meus comentários oferecem uma índole de natureza nitidamente heideggeriana. E ainda hoje, não vejo em que poderia modificar aqueles comentários defendidos já lá vão três décadas – ao contrário, de tempos em tempos, ao sabor das circunstâncias, volto a desenvolvê-las e aprofundá-las. Isso não significa que recuse Sartre – Sartre é um raro pensador necessário, um filósofo que soube, talvez como ninguém, incorporar ao seu pensamento as mais profundas contradições do mundo contemporâneo. E é por esses caminhos que ele deve ser tomado. Mas, avançando isto, já me embrenho em novo excurso, que deixo para uma próxima ocasião” (s/d, p. 19).
[4] Menciono, por “semelhança de família”, os ensaios do prof. Ernildo Stein, sobre Heidegger, em especial seu Melancolia (1976), no qual o autor também conta, a seu modo, uma breve história da metafísica por meio de ensaios heideggerianos. Em língua inglesa e infelizmente pouco apreciado no Brasil, se destaca o impressionante Heidegger and Sartre, de Joseph Fell (1979). O espaço deste ensaio infelizmente não permite o desdobramento das profundas semelhanças entre as análises que Bornheim faz de Sartre e as que Fell faz por meio da comparação entre Heidegger e Sartre.
[5] Dado que hoje – diferentemente de 15 anos atrás, quando a hospedagem de vídeos na rede era uma singela fração do que é hoje – é muito fácil encontrar as palestras de Bornheim, deixo como sugestão apenas uma sugestão: https://www.youtube.com/watch?v=gfGALxobMVo.