Pra falar a verdade, em poucas palavras, ele não sabia se era de manhã ou se à tarde. Mas dos tiros lembrava-se muito bem. Foram três pipocos. Pela proximidade, sabia de onde provinham. Num surto de curiosidade, correu em direção à rua. Outras pessoas o seguiram.
Todas chegaram quase juntas à porta da casa do pai do Zé, um pernóstico que posava de fidalgo porque tinha lastro econômico e exibia dólares como se fossem naipes de cartas de baralho.
Nessa época, a cena foi só mais uma entre tantas das que aconteciam no bairro; ali, atirava-se a esmo, como diversão, rixa, vingança. Se fosse reconstituída, essa cena daria um plano cinematográfico de caubói urbano.
O pai do Zé estava em frente ao muro de sua casa com o revólver ainda na mão, olhando o genro caído na calçada esvaindo-se em sangue, contorcendo-se, gemendo e insultando o sogro. Depois, sem gestos exagerados, calmo e triunfante, entrou na casa, fechou o portão e aguardou a polícia.
De forma nítida, porém, lembrava que foi à noite que ouviu o comentário de que o pai do Zé estava detido e o genro se salvara milagrosamente, embora os médicos não descartassem algumas sequelas. Sem querer, ouviu também alguns fragmentos de conversa:
“Ele tinha todo o direito de fazer o que fez.”
“O canalha, além de trair a mulher, ainda batia nela.”
“Para um pai, até que o velho segurou por muito tempo a sua revolta.”
Etc.
Durante dias, em vários lugares, o assunto predominante no bairro dizia respeito à tentativa de homicídio que quase presenciara.
Certo dia, estava na janela observando a rua e viu a irmã caçula do Zé passando do lado oposto à calçada. Ela carregava uma marmita e um prato amarrados a um guardanapo xadrez. Atravessados nesse embrulho, apareciam os talheres. Nesse instante, deduziu que ela levava o almoço para o seu pai na penitenciária.
Daí em diante, a colegial em flor passava todos os dias vestida com o uniforme da escola: meias brancas compridas, saia azul-marinho plissada com barra acima dos joelhos e blusa alvíssima. Ela não era só a irmã mais nova do Zé – era também muito bonita, a tal gostosona. O seu olhar, além de indiferente, era também circunspecto, como se apenas as pessoas mais elevadas socialmente merecessem a sua atenção. A esnobe impunha distâncias intransponíveis.
Após semanas de contínua observação, houve um dia em que ela não apareceu do outro lado da calçada. Ele não se preocupou com o fato, pois haveria o dia seguinte, o que, sob certo prisma, não era frustrante porque fazia-o ansiar mais ainda o momento de revê-la andando na calçada. Na véspera, ela não disse oi, nem no outro dia, nem nunca mais, pois sempre o ignorara.
A sua ausência afogava o seu coração com maus pressentimentos. Indagando aqui e ali, ficou sabendo que o pai do Zé fora transferido para outro presídio numa cidade distante e, com isso, toda família fora junto. Nunca mais teve notícias de nenhum deles, nem boas, nem más.
A despeito de tudo, tantos anos após aqueles estampidos, a casa de sua infância ainda continuava em pé, suportando o tempo e o desgaste, sustentando-se por causa das reformas eventuais. Era uma boa casa de adobe, com um pequeno pomar nos fundos.
Sem mais nem menos, de vez em quando, uma melancolia repentina sufocava o seu corpo. Nesse momento, como uma possessão que o arrastava para o passado, ele sabia que precisava ir até a casa, fechada para venda há muito tempo. Depois de conferir o estado geral do imóvel, observava a atuação das térmitas no madeirame; em seguida, debruçava-se à janela, como se tivesse ainda 15 anos, apoiando sobre a soleira os seus cotovelos pontudos – e procurava do outro lado da calçada a imagem da colegial carregando uma marmita envolta num guardanapo xadrez.