“Aqueles que, como se costuma dizer, não têm futuro, possuem poucas possibilidades de formar o projeto, individual, de criar seu futuro ou de trabalhar no advento de um outro futuro coletivo”
Pierre Bourdieu
O termo “desencantamento do mundo” foi concebido por Max Weber, um dos pais fundadores da sociologia, mas cai muito bem na voz de Pierre Bourdieu, sociólogo que olhou para a sociedade com incansáveis olhos de contestação.
Ele tinha clareza sobre o impacto, de “horror ou furor”, que o resultado de seu trabalho suscitava no público leitor. É um “olhar desencantado”, é verdade, mas “sem ser de escárnio ou de cinismo”, dizia ele.
Bourdieu fez uma sociologia feroz e lúcida contra as grandes estruturas sociais de poder, da política à educação, da economia (tiranias do mercado) à cultura (distinção pelo capital simbólico), tentando sempre desfazer a “visão encantada, e mistificadora, das condutas humanas”.
Ele morreu em 2002 (de câncer no pulmão), aos 71 anos, já consagrado como um dos maiores pensadores sociais de sua geração, com contribuições genuínas e engenhosas, como os conceitos de campo (político, econômico, educacional, cultural, científico, burocrático).
Sua bibliografia em português vem aumentando nos últimos anos. Em 2021, a editora Perspectiva tratou de lançar a segunda edição, revisada e aumentada, de O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais (São Paulo, 240 páginas, tradução de Silvia Mazza). Publicação original de 1977, a primeira edição em português é de 1979.
Em formato de bolso, esta segunda edição não deixa de ser um presente para pesquisadores em sociologia, bem como para intelectuais e leitores diletantes, apreciadores do modo bourdieusiano de ver as relações sociais.
Nascido em 1930, em Denguin, vilarejo do Sudoeste da França que até hoje tem menos de 2 mil habitantes, numa família falante de bearnês, dialeto ligado ao gascão e ao occitano, Bourdieu desbravou o mundo com sua inteligência e destemor intelectual. “A sociologia é um esporte de combate”, costumava dizer.
Na década de 1950, já formado em filosofia pela prestigiosa Escola Normal Superior, de Paris, foi para a Argélia, no Norte da África, cumprir com sua obrigação ao serviço militar. E lá ficou.
Nesse momento, ele abandonou o projeto filosófico, que considerava teórico demais, e investiu numa pesquisa etnográfica, combinando teoria e prática, sobre os cabilas, camponeses da região de Cabília.
A partir daí, Bordieu começa a desenvolver seu próprio modo de pesquisa, voltando à França, quando estudou sua própria comunidade bearnesa, que resultou no livro O baile dos celibatários: crise da sociedade camponesa no Béarn.
Em seguida, apontou seu arsenal metodológico para o modelo de ensino superior na França, resultando no livro Os herdeiros: os estudantes e a cultura, que ele escreveu em parceria com Jean-Claude Passeron, operando o conjunto de conceitos que levaram seu nome ao topo da sociologia.
Quando morreu, era professor titular da instituição mais consagrada e cobiçada pela elite intelectual francesa, o Collège de France. Vários de seus livros são pontos centrais da sociologia contemporânea, como A dominação masculina; A distinção: crítica social do julgamento; A economia das trocas simbólicas; e A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos.
Perdidos no tempo
A coragem e a determinação com as quais Bourdieu empreendeu suas pesquisas na Argélia estão implícitas em O desencantamento do mundo, como guardiãs de sua vontade de oferecer à sociedade um novo instrumento de medição social, uma nova ferramenta de luta. Como ele mesmo disse em outro texto, “se o sociólogo tem um papel, será mais o de dar armas que o de dar lições”.
Neste livro, Bourdieu apresenta uma tese que podemos chamar de decolonialista, como viria a ser, de certo modo, seu pensamento sociológico. Segundo ele, não existe um homo economicus universal, tal como prega o capitalismo para levar seu “processus de adaptação à economia capitalista” ao mundo todo, invadindo as culturas que operam de modo diverso, e se apropriando de seus espaços sociais.
Existe um disparate entre as sociedades capitalistas em cujo seio o capitalismo se originou e as outras que foram sendo puxadas pela força econômica daquelas (império colonial), sendo obrigadas a girar em torno do poderio de produção e de naturalização de seu ethos.
Acontece que as sociedades originárias do capitalismo tiveram seu tempo de nascimento, crescimento e amadurecimento, criando estruturas econômicas dentro de uma estrutura temporal próprias. Assim, vão se desenvolvendo, mutatis mutandis, pela própria ordem de sua gênese, enquanto as outras sociedades que foram sendo obrigadas a entrar no sistema nunca vão alcançar isso, sempre ficarão para trás.
Segundo Bourdieu, isso ocorre porque, nesses países colonizados pelo sistema capitalista, “a organização econômica e social não é o resultado de uma evolução autônoma da sociedade que se transforma segundo sua lógica interna, mas de uma mudança exógena e acelerada, imposta pelo poderio imperialista”.
Como eles não têm “outra escolha senão adaptarem-se ao sistema importado”, até conseguem articular a estrutura econômica, mas fora, muito distante, da estrutura temporal. Por causa disso, “por não se transformarem no mesmo ritmo das estruturas econômicas, disposições e ideologias diferentes, ainda atuais ou já caducas, coexistem na sociedade global e, por vezes, nos mesmos indivíduos”.
Talvez isso explique o fato de vermos mui enfaticamente um exército de gente pobre no Brasil que está numa outra estrutura temporal de organização do próprio ethos, mas que intui ou percebe o funcionamento da estrutura econômica e acha que pode chegar lá, e por isso defende um sistema que lhe é frontalmente ofensivo.
Obviamente, neste livro Bourdieu não está falando exatamente da observação que fiz acima, mas analisando o fato histórico-cultural de um povo coeso e inteiro, os argelinos da Cabília.
De acordo com seu pensamento sociológico, “todo sistema econômico é ligado à existência de um sistema determinado de disposições em relação ao mundo, e mais precisamente em relação ao tempo”.
É em cima dessa percepção que Bourdieu analisa a estrutura da consciência temporal dos cabilas, que, como as de todas as culturas fora do eixo fundador do capitalismo, está “associada à economia pré-capitalista”.
A premissa do tempo é a de que, enquanto a economia industrial (capitalismo) produz pensando num acúmulo futuro, operando, portanto, numa linha de tempo retilínea, que se estende infinitamente para frente, as culturas de economia agrícola pré-capitalistas, como a dos cabilas, operam num tempo circular, em que o tempo do trabalho não é o mesmo tempo de produção.
Fora do jogo
Na economia capitalista, tempo é dinheiro. Na economia agrícola dos cabilas, tempo é alimento e satisfação com a vida, vendo a família usufruindo da produção daquele ano, cujo excedente é trocado por outras produções.
A produção capitalista, segundo Bourdieu, exige uma racionalidade onde tudo é pesado e medido com o objetivo de poupar tempo e, consequentemente, poupar dinheiro, não porque não se sabe quando chegarão os anos das vacas magras, mas para obter riqueza e poder. A produção agrícola dos cabilas, como qualquer economia pré-capitalista, é constituída pela intuição e pela prática, sem visar lucro, mas apenas bem-estar.
“Os cabilas guardam o trigo ou a cevada em grandes jarras de barro furadas em diversos níveis de altura, e a boa dona de casa, responsável pela gestão das reservas, sabe que quando o nível do trigo está abaixo do furo central chamado thimit (o umbigo) é preciso controlar o consumo: o cálculo, como se vê, é feito por si só, e a jarra é como uma ampulheta que permite perceber a cada instante o que não mais existe e o que resta”, analisa o sociólogo.
Quando a economia capitalista se sobrepõe a essa outra economia, o que ocorre é que a mentalidade precisa ser mudada para outra estrutura que carrega dentro de si um modus operandi e um tempo que se diferem da estrutura subjugada. O modus operandi é captado, mas o tempo não, este é algo mais subjetivo e muito mais difícil de ser refeito dentro de uma cultura.
E o que acontece? Ao entrar na nova economia, o produtor, o homem que põe a mão na massa, que outrora era agricultor (estamos falando de processos de substituição; olhemos, portanto, para os países capitalistas submetendo os outros países a seu sistema de produção econômica), não tem mais o controle da produção. Ele recebe um salário.
E, aí, Bourdieu comenta: “a tentação é grande, com efeito, de converter o salário que acabou de ser recebido em bens reais, alimentos, roupa branca, mobília, e não era raro, cerca de cinquenta anos atrás, ver trabalhadores agrícolas gastarem em poucos dias o rendimento de um mês de trabalho”.
É claro que jogadas, ou nascidas pobres, no mundo capitalista, as pessoas são exploradas de várias maneiras, e nunca sabem direito por que estão na miséria. Contemporaneamente, há a questão da publicidade que insufla vontades, estimula o desejo de consumo em todo mundo, em quem tem dinheiro, em quem tem pouco e em quem não tem nada. Mas não é só isso.
Não estar estruturado pelo mecanismo do tempo e da racionalidade, necessária para estar nesse jogo social, é fatal. E isso é uma questão histórico-social. Joga bem quem está estruturado pelo habitus do jogo econômico e social, um traquejo que parece fácil, mas que requer a vivência do jogo. Quem nasce fora dele, para entrar, é mais difícil ou quase impossível.
Em outro livro seu, Razões práticas: sobre a teoria da ação, Bourdieu oferece uma analogia importante para entender essa questão. “Como um bom jogador de tênis, estamos localizados, não onde a bola está, mas onde ela vai cair; estamos localizados, e no lugar, não onde está o lucro, mas onde ele vai ser encontrado”. Esse é o espírito do capitalismo, e seu habitus.
Os textos de Bourdieu são sempre um tipo de “manual de ginástica intelectual”, como ele mesmo gostava de dizer. Por isso, o leitor tem muito o que explorar em O desencantamento do mundo. É um livro extremamente rico e inovador no jeito de pensar as estruturas sociais por meio do conceito de campo social.
Além do texto principal, que se divide em quatro capítulos, o livro é composto por uma rica apresentação de Elisa Klüger, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que contextualiza a obra e seu autor, bem como outros dois textos de Bourdieu sobre os cabilas: “O senso de honra” e “A casa cabila ou o mundo invertido”.