[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
A mãe de Moisés Oliveira Alves
Minha mãe tem perdido
a memória das coisas.
A minha mãe.
Sou órfão de uma mãe que já foi
e ao mesmo tempo filho legítimo
de uma mulher que estranho o rosto.
Quando nos abraçamos
formamos um aparato químico-amoroso
que serve só para esse tipo de coisa.
Nossas mãos de antigamente
de antes da primeira imagem sobre a terra
são velhas.
Minha mão nasceu antes de mamãe
e vem rolando nos espaços
como uma irradiação de poema em poema.
A gente tenta manter o céu
sobre nossas cabeças. Nem sempre ganhamos.
Melhor: nem sempre se ganha uma perda.
Diante da mesa ficamos sem assunto.
Tudo quente e não temos conversa.
É alarmante.
A cidade ferve.
Objetos em movimento lento
e com uma estrutura estável
são arrastados pelo vento.
Mãe é onde estamos
Qualquer campo aberto
Mãe.
Viemos no grito.
Fomos espirrados por ele.
Toda nuvem é formada por gritos desviados,
como uma placenta é nuvem condensada. No caminho,
pelo menos seis famílias pediram socorro num país
cujo orçamento soma três trilhões de reais.
A terra é ainda um lugar de grandes possibilidades.
Convido mamãe para escrever um livro
com tudo aquilo que foi brutalmente esquecido
além de bulas de remédio, contas de energia, papéis de pão,
surtos, provérbios, palavras à deriva no ouvido,
confeitado de glacê por cima e um pouco de trigo.
A gente esquece do livro.
Só há tempo para habitar a vida.
Nosso amor ao presente triunfa.
Minha mãe exercita-se
em outras relações sintáticas.
A alma é um bem público.
Todo mundo tem uma na cara.
Quero chorar por ela. Não consigo.
Por nossa alma que também se amplia,
se retrai, alastra-se para fora de nossa casa.
Alma perdida.
O futuro nunca chega
de forma esperada
e em geral não estamos
poeticamente disponíveis.
Batemos a porta no susto.
Ela fica tão leve
sem o peso dos passados
que um dia desses
tenho medo
que confunda a porta de saída
e se desprenda da terra.
A pipa do filho esvoaça.
Mamãe aproveita.
É uma pipa sem rabo
desabando sobre outro endereço
como uma benção.
Que dia esse.
Mangue (2021)
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[2]
carlete jazz band
ouvi na fila
do açougue
que tutano antes
servia para passar
no cabelo
quando deixam
a gente se lambuza
na força alheia
nossa violência é muito
antiga nossa fome também
aliás
violenta-se porque há
variáveis espécies de avidez
eu por exemplo
já cortei com navalha de barbeiro
alguns homens
bichas putas
michês
embora o amor não se corte
a gente espalha o que tem
para outro beco onde o vento sopra
outro norte
e a vida passa outra vez
a vida passa
sem drama e com algumas contas
e subitamente
a gente oferece a mesma coisa
de outra forma
ou vice-versa
desculpa
não sei
com a faca na mão
nem isso que você quer
dá um passo sem te rasgar
de trás para frente
tentam lhe tirar
o direito ao boi
mas esse boi é seu
a história dos pastos
petróleos das mesas
dos subsolos museus
da cama onde você treme
tem a mesma história
da boca que te arrasta
para onde
para quem
Mangue (2021)
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[3]
dinossauro
aos 65 anos
e com quarenta e cinco
de vida militar e depois
civil de polícia do estado da bahia
certamente meu pai
ainda lembra das finitas posturas
que um corpo conquista
isso sentado
isso deitado
ou esse esforço ininterrupto
de mantê-lo na vertical
única verticalidade vital
é um corpo de pé
desde quando eu era chamado
de criança adulta
meu pai sempre foi elogiadíssimo
pelos marginais
justamente por não vê-los
como marginais ou talvez por
ver a si mesmo como um deles
um desviante do bando
um homem na trave
impedindo que o adversário
aniquile sua festa
meu pai disse
após 35 minutos
de conversa no telefone
nunca eu e ele conversamos
a sós por tanto tempo
só pra saber como estamos
meu pai está com medo
não da morte
essa que todos nós portamos
em alguma parte insuspeitável do corpo
mas de perder o samba
no beco do mota
quase no largo do pelourinho
que virá imediatamente após
essa revolta animal da terra
Mangue (2021)
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[4]
meio quilo
assim como uma forma dá
a si mesma mais volume de carne
fazendo o que faz
devoro porcos que outros homens matam
com vinte reais se compram alguns bifes
tem dias que eu sou o porco
um suíno de classe
que um soldado da polícia militar da bahia
se esbalda
tem dias que sou
um dos bichos cercando a caça
Mangue (2021)
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[5]
a pergunta devolvida
fazer
assim uma perda
que sempre escapa
dissimulada
não consigo
reter essa perda
conquistar essa terra estrangeira
retê-la
para pôr no incêndio
das paredes
das caveiras
um resto
de perda
que vem e vai
atlética
tenho fissura
em reconstituir
o que ela pode
o que uma perda faz
inacabada
aberta
uma cartografia das sensações mal qualificadas
um bêbado me dizia
a perda é apenas um acesso
sublime violento
de grande pulsão e beleza
você diz
isso se esbarra na gente
nos carrapata
como um beijo
não consigo responder a coisa nenhuma
apenas devolver a pergunta
indo no que nela queima
Mangue (2021)
Perfil
Moisés Alves nasceu em Salvador (BA) em 1982. É professor adjunto de Literatura do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e dos cursos de Letras e Cinema e Audiovisual da Unijorge. Fez doutorado em teoria e crítica da literatura e cultura na Universidade Federal da Bahia. Em 2018, foi agraciado com uma bolsa do Goethe-Institut para uma temporada em Berlim, onde apresentou seus poemas. Pela editora Circuito, do Rio de Janeiro, publicou Cadernos de artista: poemas (2017), Onde late um cachorro doido (2017), Escrito e dirigido por Moisés Alves (2018), Coisas que fiz e ninguém notou mas que mudaram tudo (2018). Em 2021, publicou pela martelo casa editorial, de Goiânia, mangue, livro de poemas. Apresentou e traduziu poesias de Elke Erb, autora alemã, para a revista Cult. Os seus poemas foram publicados no Jornal Rascunho e em vários sites dedicados à poesia. Segundo Miguel Jubé, em nota editorial, mangue percorre “espaços entre uma ‘antibiografia’ e um querer devorar o mundo de imediato”. Em tom assemelhado, na apresentação, Alberto Pucheu afirma que “é um livro em que as pessoas da vida e a vida das pessoas se misturam a seus lugares de proveniência, infiltrando-se genealogicamente umas nas outras, levando-nos a crer que ‘tudo caminha junto’, na intimidade e em público, muitas vezes de maneira trágica, ainda que ‘sem máscaras gregas de proteção'”.