O encontro frutuoso do fotógrafo Luiz Elias com Cora Coralina foi um retorno ao ventre materno de sua mãe na cidade de Goiás, um mergulho de respeito e devoção. E, como lhe é natural, de alegria.
Quando o Elias me pediu que escrevesse sobre as suas fotografias há tempos guardadas, a memória distante lembrou-me do artigo de John Updike, Nadar’s Swift Tact, no qual o escritor americano lançou luzes sobre o fotógrafo francês Félix Nadar – que traduzi, não tanto literalmente, como O compasso ágil de Nadar para a edição da coleção Carlos Leal originalmente publicada pela editora Francisco Alves. O texto para Goiás de Portas Abertas, bem menos alentado, não pretendeu alcançar a análise cortante de Updike, nem poderia.
Se os tempos oitocentistas de Nadar eram ainda mais heroicos, o acervo histórico do Luiz – agora que lá se foi, nas brumas do passado, o século 20 – tanto abarca a sociedade goiana de então como contempla, como nenhum outro, personagens como os Kalunga, Cora Coralina, artistas, povos tradicionais e cidadãos goianos – a ponto de termos ali um tesouro escondido no tempo. Ou o tempo escondido no tesouro.
Coralina, a doceira que desafiou as convenções de seu tempo na juventude, e ainda tornou-se poeta ao ultrapassar a barreira dos 70 anos de idade – sendo assim identificada e louvada por Carlos Drummond de Andrade –, tem o alcance que poucos merecem. Imagino que Cora consagrou-se porque seus poemas cantam a cultura da terra goiana, sua sociedade, sua aldeia universal, e contêm sabedoria humana, porque seriam uma espécie de sabedoria oral que foi escrita, passando, é claro, pela existência e pelo filtro genial da mente de Cora. Quando uma linha contém séculos.
Lembro, a propósito da oralidade, que as obras de Homero subsistiram por tradição oral, e que séculos depois, segundo o historiador Arnold Toynbee em A Humanidade e a mãe terra, em torno de 750 a. C. os gregos receberam dos sírios o alfabeto fenício, o que transformou o seu destino na história humana.
Reza o ditado que uma imagem vale mais do que mil palavras. Não é bem assim, os diferentes meios e, como se diz hoje, suportes, carregam em si lá as suas capacidades e limitações. Mas, com efeito, as imagens instantâneas e as “fotos paradas”, como dizem em inglês, fazem parar, olhar e quem sabe pensar.
As fotografias de Cora no baú do Elias saltam aos olhos. São instantâneos de um tempo distante que se comunica ao presente. Cora, doce doceira, se não foram suas anotações em forma de poemas que trouxeram o seu mundo para quem tem a sorte de a ler? Os poemas, como as fotografias, num átimo mostram, recortam, enquadram, sugerem; são janelas com que se divisa o mundo.
Poeta da imagem que não se constrói, que não invade, destrói ou disseca, Luiz Elias é um fotógrafo raro. Desses que não se inventa. Luiz desvela.
Ele é fotógrafo desprovido daquela atitude olímpica preocupada com a própria arte – seja em uma ótica autocentrada, egocêntrica, discursiva, metafísica, filosófica, política ou esteticamente revolucionária. A sua arte não é quadrante, não é quadrado, não é espelho. As suas fotografias não são teoria, manifesto, alter-ego, pós-isso ou neoaquilo. Ele não vê do ponto de vista de um partido, não se projeta.
Luiz está interessado é nos outros! Quando ele clica – e num processo fotossensível captura a luz e a existência – busca a pureza do olhar. A câmara clara e o puncto de Roland Barthes – um autor e referência que aprecia – que é o centro de atenção de cada fotografia, espécie de ímã do olhar.
O fotógrafo alcança o olhar limpo, na empatia da alteridade e no respeito pela luz, na alegria singela que sente na colheita de uma boa foto. E satisfeito com poucas delas, vai embora, feliz e contente.
Assim, em suas fotos, tal clareza, alimentada pela leveza cristalina do ar do Cerrado, é sem igual. Na tessitura, na composição e – não custa repetir – na ausência de si e de intervencionismos. Dito de outro modo: o tecido de suas fotos é a simplicidade. Por suas imagens, a existência nos assoma.
E os outros: o artista, o político, o artesão, o vizinho, a família, o cidadão. O fotógrafo não faz distinção. Suas fotos não procuram tratamentos, redundâncias, desvios. Mantêm-se íntegras, independentes dos sujeitos com quem se relacionam. Porque Luiz é pai, é menino. Tem compaixão budista, formada na escola da vida, de sofrimento e paixão, na qual o valor da vida não se mede por hierarquias.
Em seu percurso, Luiz busca a paz e o respeito pelo seu ofício no caminho da vida. Ele segue atento e sabe o valor do engajamento e do encontro. E a janela da lente traduz o olhar do fotógrafo em poesia, na pureza que é devota de Coralina.
*Este texto foi construído com adições a partir do original para Goiás de portas abertas.