[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
Aqueles que fazem uso de redes sociais já devem ter se deparado com a seguinte publicação ou algo aproximado: uma frase cativante para os olhos, atribuída a certo pensador. Os atentos também devem ter notado a falta de demais explicações, normalmente sem a devida citação de onde provém tal frase. De relance, é possível até confundir com uma citação pré-montada, como aquelas que se ensinam para fazer dissertações na escola. Na realidade, é algo ainda mais problemático. São recortes de filosofia deixados à deriva no meio digital para serem reproduzidos. Não há questionamento sobre as consequências que essas publicações têm para a construção do que significa ler e fazer filosofia nos tempos atuais.
Com uma busca de palavras-chave nas maiores redes sociais, encontra-se uma numerosa quantidade de páginas que constantemente publicam recortes filosóficos. É possível traçar características recorrentes nessas publicações, tais como: frases curtas, impactantes e que desafiam ou, em episódios particulares, reafirmam noções do saber comum. Essas vêm geralmente acompanhadas, quando o meio permite, de imagens ou retratos dos filósofos a quem a frase é atribuída, sem a devida menção do perfil e, mais vezes do que esperado, nem ao menos trazem o nome do próprio filósofo. Dos casos observados, eram recorrentes as frases de filósofos com maior presença dentro do imaginário popular, como Platão e Heráclito, e também os famosos por terem produzido filosofias provocantes, como Nietzsche e Schopenhauer.
Mesmo nos posts que traziam o nome do autor da frase, a maioria carecia de devida citação de fonte e poucos se prestavam a comentar sobre ela, sem conceituá-la ou direcionar o leitor a procurar mais a respeito da teoria filosófica, no máximo complementando com outra citação de um autor diferente. Claro que não é uma tentativa intencional, por parte da página, de descaracterizar a frase do autor, entretanto essas publicações podem, evidentemente, comprometer o conhecimento do leitor a respeito da filosofia.
As consequências de um saber que satisfaz apenas os olhos não podem ser quantificadas em sua totalidade, porém alguns males são mais evidentes. Antes mesmo de se debruçar sobre o teor pedagógico, é necessário salientar a falha mortal dessas publicações: a falta de direção para o leitor, pois se tal falha fosse reparada, outras poderiam ser evitadas. Ao ler uma publicação com uma frase solta de um filósofo, sem apontar mais que nomes, o que o leitor deve absorver? E mesmo que subsista a curiosidade, por onde ele deve começar? A falta de caminhos para a obtenção de conhecimento parece ser o maior obstáculo na era da informação e, semelhantemente, isso se deve à facilidade da propagação de informações falsas ou maliciosas. Essas se proliferam em toda esfera digital e os retalhos filosóficos não escapam disso. Muitos continuam atribuindo a frase “os fins justificam os meios” a Nicolau Maquiavel, sem saber que é um verso do poema Heroides, de Ovídio. Persistem ainda aqueles que dizem que Sócrates falou com humildade “só sei que nada sei”, mesmo que tudo indique que é uma suposição incorreta[2]. É justo pensar que a perpetuação desses sofismas tenha origem em falhas nos níveis primários da educação, mesmo assim é inegável que publicações imprecisas aumentam os casos de reprodução de pensamentos errados.
Essa facilidade que a informação tem de se reproduzir é da natureza das redes sociais: o algoritmo parece dar preferência para o conteúdo que a maioria das pessoas consegue absorver de forma rápida, quiçá instantânea. É até incerto que se possa chamar de “processo” esse consumo, em vista da tamanha rapidez na qual se passa uma publicação efêmera seguida de inúmeras outras. Não é um problema se algo não for do apetite do leitor, pois logo depois virá outra. Em sua obra mais famosa, Modernidade Líquida, Bauman (2001, p. 118) afirma que em uma sociedade absorvida pela instantaneidade não resta espaço para aquilo que requer tempo, o transitório torna-se o objetivo final. A filosofia, por sua vez, floresce na discussão continuada, no estudo das obras e no exercício da reflexão por extensos períodos. Mesmo as obras mais diretas devem ser lidas de forma a interiorizar o conteúdo em toda sua capacidade, pois o tempo é a essência da absorção filosófica. Onde se situa então a filosofia nos tempos em que o imediatismo sufoca a atividade de longo prazo? Parece um claro embate entre o caráter das redes sociais e a natureza da filosofia.
Entretanto, não parece certo reduzir essa interação apenas como um contraste. É correto que a filosofia instiga o leitor com sua própria natureza, seja pelo charme do questionamento, seja pelo rigor lógico ou pela vasta gama de conteúdo abordado. Então, poderiam as redes sociais fornecer uma nova porta de entrada para futuros leitores de filosofia? Utilizar as ferramentas digitais para induzir a curiosidade nos indivíduos, incentivá-los a buscar por mais, é algo que, caso bem aplicado, poderia mudar o olhar das novas gerações sobre a filosofia. Antes disso, é preciso que não se cometam os mesmos erros que fazem com que os recortes filosóficos falhem nessa arena.
Uma publicação deve conter dados corretos, indicar a fonte do que está sendo compartilhado, mostrar o autor e outras obras para aqueles interessados e, caso haja possibilidade, levantar uma discussão referente ao assunto tratado. Os recursos midiáticos das redes sociais já são utilizados como ferramentas para fins educativos; perfis do Instagram como andre.filosofia[3] e a conta oficial da editora Boitempo[4] compartilham informações, indicações e discussões de forma breve, porém de modo a instigar o leitor por mais. A fala filosófica excede em outros campos que não necessariamente a própria filosofia, como a arte nos demonstra de inúmeras formas. Então, é promissor supor que plantar sementes do saber filosófico nas redes sociais pode dar frutos futuramente.
Os recortes filosóficos são problemáticos e não há como ignorar os erros mantidos por esse tipo de publicação; porém, parece haver a possibilidade de uma simbiose entre a rede e a filosofia. A era digital acarretou alterações estruturais na formulação, na obtenção e, talvez de forma mais acentuada, no compartilhamento do saber, não existe meio de negar as novas possibilidades suscitadas pela interação na rede. Não há filosofia em publicações de trechos das obras de filósofos, no melhor dos casos, não passam de filosofemas, mas essa resposta satisfaria à pergunta do nosso título? Parece que é necessária, agora, uma extensão da própria questão: até onde a filosofia iria para se adaptar à conjuntura atual da sociedade?
Referências
BAUMAN, Z. Vida instantânea. In: Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 116-122
[1] Doutor, mestre e graduado (licenciatura plena) em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Participa do Grupo de Pesquisa Subjetividade, Filosofia e Psicanálise (UFMS) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em hermenêutica de Paul Ricoeur (UFPI). E-mail: costavhr@gmail.com
[2] Na Apologia de Platão é dito que a oráculo de Delfos caracteriza Sócrates como o mais sábio entre os homens. Este coloca a afirmação em dúvida e procura aqueles que alegavam ter sabedoria e os questiona até provar que nada sabem. Sócrates percebe a ignorância posada de sabedoria e conclui que, diferente dos outros, sabe mais por não supor o que não sabe.
[3] Disponível em: https://instagram.com/andre.filosofia?igshid=YmMyMTA2M2Y=
[4] Disponível em: https://www.instagram.com/boitempo/.
O artigo é o quarto da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.