No desafio diário de ser cidadão – seja sob os constrangimentos que o Estado nos impõe, seja em nome de um engajamento estético, seja por outra vontade absurda –, sempre incluí filmes, livros, músicas, óperas, países, museus e pessoas como o meu centro de interesse. E os gatos, claro, não posso esquecê-los nunca, esses bichanos que afiam as unhas nos tapetes.
Esse aprendizado cumulativo, porém, não significa um triunfo, mas uma tentativa vã de conhecer o possível numa existência tão curta – esse possível que escorre misterioso pelas bordas da matéria que sedimenta a Arte e a vida.
Entre as sensações que me são proporcionadas na aprendizagem – esse complexo de informações que causam desvios, crises, culpas, epifanias, desprezos, alegrias –, eu guardo aquela que, como uma pérola enfermiça, há muito tempo, desperta em mim o medo infantil de perder a visão.
Como não sou Beethoven, a perda da audição seria um mal menor, embora ele tivesse composto a Nona em completa surdez; a perda da visão, contudo, considerando os ângulos, as cores, as luzes e todas as coisas que posso ver, seria uma catástrofe, pois, com essa desordem sem lastro, a existência poderia tornar-se um abatimento insuportável.
Para mim (para os meus olhos), ver o mundo é um modo de, ao mesmo tempo, detestá-lo e tentar compreendê-lo, além de admirá-lo – um conflito esquizofrênico que não exclui certamente o prazer, esse prazer erótico que está em toda parte e em tantos objetos e tantos seres, inclusive no mármore que Michelangelo cinzelou.
Sob nenhuma hipótese, com respeito aos cegos famosos (eu penso em Borges), jamais gostaria de andar de óculos escuros, apoiar-me numa bengala e ser conduzido por um labrador.
Se olho bem para todos os lados, quando flano pela cidade, não vejo ceguinhos andando pelas avenidas e ruas, mas quando encontro um deles – um desses que circula com a sua bengala branca, localizando obstáculos e tateando um rumo – lembro das bênçãos da minha querida tia Aldenora.
“Santa Luzia vos proteja!” – e, pelo seu afeto, nunca deixei de considerar carinhosamente o voto que fazia. Além de ser minha madrinha, era uma devota fiel dessa virgem infeliz de Siracusa, que pertenceu a uma rica família siciliana e doou os seus bens aos pobres. Um pretendente que foi recusado denunciou-a como cristã. Uma vez conduzida à prisão, foi depois assassinada a golpes de espada, não antes de sofrer tentativas frustradas de violentação.
Quando me despedia depois de uma visita, sempre me recomendava:
“Meu filho, reze e acenda velas para santa Luzia.”
Por falta de fé, é evidente que não rezava nem acendia velas, embora soubesse que a minha tia, em sua imensa bondade, intercedia junto à santa a favor das minhas aflições.
A despeito do receio de perder as imagens do Universo e de não reencontrar as páginas dos livros que amo, continuo insistindo nas leituras e nos filmes, com a mesma velha dedicação. E, segundo uma consulta que fiz ao oftalmologista, o diagnóstico foi o de que os meus olhos estão em bom estado: eles permanecem ainda vendo o que sempre viram, talvez vertendo mais algumas lágrimas.
Como gosto de especular, e sem querer me intrometer na clínica do dr. Freud, esse temor infantil pode estar associado à noite em que, sob a candeia de azeite que iluminava precariamente o quarto onde dormia, de repente, tudo escureceu e deixei de acompanhar a disputa entre o inseto que tentava escapulir e a lagartixa que o perseguia.
Nessa noite da minha distante infância, quando respirei o hálito das trevas, senti-me um náufrago na escuridão enorme e profunda, como alguém que, ao invés de uma tábua, procura uma nesga de claridade. Até os albores, conheci o escuro e passei a temê-lo, tal como o camponês da Idade Média receava o início da noite.
Desde então, tento conviver com esse temor de perder a visão, embora não acredite que as preces de minha madrinha tenham sido atendidas. Mesmo sem contar com proteção sobrenatural, sei que é preciso combater pelo menos uma cegueira, a única que realmente importa – aquela que nos impede de ver o mundo quando o enxergamos em sua insanidade e em seu esplendor.
Grande Luis, um Tirésias com olhos atentos!
Belíssima, que Santa Luzia continue a te alumiar, e Freud a esclarecer e confundir.
Maravilha de texto! Iluminador