O Livro das mil e uma noites (Globo, tradução direta do árabe de Mamede Jarouche, quatro volumes) é uma das coisas mais fabulosas da história da literatura, um espaço imenso de relatos a partir do século IX que atravessaram o tempo e nos fascinam ainda hoje.
Para além dos diversos tropos que podem ser encontrados lá (e há uma riqueza imensurável), eu gostaria apenas de comentar algumas curiosidades. Logo, o leitor já sabe de partida que o texto a seguir é só um aperitivo, clarão que indica uma certa entrada da floresta.
A primeira curiosidade tem a ver com toda a tradição de se ouvir e contar história, e é intrigante pelo fato de a irmã de Sherazade[1] permanecer no quarto, apreciando todas as narrações que esta faz ao rei, mas não só isso, o mais espantoso é que antes ela está debaixo da cama, ouvindo os saracoteios, tateios e outros meneios do sexo de nossa heroína com o marido uxoricida, ao longo das mil e uma noites de núpcias e chamegos, entre o gozo de um e o sacrifício de outra.
Todo mundo conhece a abertura dessa história. O rei Shariyar, soberano de vastas terras que se estendiam da Pérsia (atual Irã) à Indochina, tinha um irmão caçula chamado Shazaman, rei de Samarcanda (atual Uzbequistão), que andou levando uns chifres da mulher, e por isso a matou.
Logo depois, Shazaman viajou para o reino do irmão, e lá flagrou a cunhada praticando a mesma perfídia. Na calada da noite, ele viu que “um escravo negro pulou de cima de uma árvore ao chão e imediatamente achegou-se a ela; abriu-lhe as pernas, penetrou entre suas coxas e caiu por cima dela”.
Shazaman avisou Shariyar, que fez questão de ver com os próprios olhos, e o que viu não foi legal. Ficou traumatizado. Foi procurar entender o mistério da traição e descobriu pelo testemunho da escrava de um gênio (ifrit) negro que, “quando a mulher deseja alguma coisa, ninguém pode impedi-la”.
O rei, violento e machista, jurou que a partir dali se casaria com uma nova donzela, e depois da noite de núpcias passar-lhe-ia a fio de espada, e faria isso em todos os casamentos que teria, e se casaria com donzelas enfileiradamente. O encarregado de matar as moças era o vizir (conselheiro e jagunço) do rei Shariyar. O vizir era o pai das belas Sherazade e Dinarzad.
Três anos depois, um uxoricídio atrás do outro, ao perceber que a matança não ia parar, Sherazade interveio. Pediu ao pai que autorizasse seu casamento com o assassino. Ela tinha um plano para estancar as mortes. Quando Shariyar se casou com Sherazade, sua intenção era matá-la, porque na cabeça dele (além de chifres) havia a certeza de que as mulheres iriam traí-lo irresolutamente.
Memória ecoica
É aí que entra a curiosidade intrigante na trama armada por Sherazade. Leitora voraz e eclética, havia lido tudo quanto era tipo de livros, da poesia à medicina, da aventura ao drama, das narrativas eróticas aos textos mais moralistas. Ela então decidiu que ia usar os poderosos fios da palavra para amarrar a intenção assassina do rei. O verbo se tornaria grades magnéticas produtoras de desejo.
Os dois se casaram. Sherazade chamou a irmã e disse:
“Minha irmãzinha, preste bem atenção no que vou lhe recomendar: assim que eu subir até o rei, vou mandar chamá-la. Você subirá e, quando vir que o rei já se satisfez em mim, diga-me: ‘Ó irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma historinha’. Então eu contarei a você histórias que serão o motivo da minha salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de matar suas mulheres.”
A primeira noite chegou. O rei levou Sherazade para a cama. Quando começou a acariciá-la, ela chorou e pediu a presença da irmã:
“Gostaria que pudéssemos nos despedir nesta noite, antes do amanhecer”. O rei então mandou chamar Dīnārzād, que se apresentou e dormiu sob a cama. Quando a noite se fez mais espessa, Dīnārzād ficou atenta e esperou até que o rei se satisfizesse na irmã e todos ficassem bem acordados. Assim, no momento oportuno, Dīnārzād pigarreou e disse: “Minha irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas com as quais costumávamos atravessar nossos serões, para que eu possa despedir-me de você antes do amanhecer, pois não sei o que vai acontecer amanhã”. Šāhrāzād disse ao rei Šāhriyār: “Com a sua permissão eu contarei”. Ele respondeu: “Permissão concedida”. Šāhrāzād ficou contente e disse: “Ouça”.
E aí, começa a aventura absolutamente fabulosa de histórias incríveis que Sherazade passa a contar. Mas duvido que o leitor, do lado de cá, deixe de pensar nos gemidos, na apreciação de oitiva do movimento da cama do rei com a nova esposa. Por um segundo que seja, sempre que Dinarzad se arrasta de debaixo da cama para pedir a Sherazade que termine a história da noite anterior, o leitor evoca uma memória ecoica de desejos recebidos pelos ouvidos da jovem irmã.
Todas as manhãs, quando o sol aponta no horizonte, quando a aurora alcança Sherazade, ela lança uma virada na trama e para de narrar. Nesse momento, Dinarzad sempre diz para a irmã: “Como é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e Sherazade responde: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.
O rei passa centenas de noites pagando pra ver o que ocorrerá na noite seguinte, curioso para saber o desdobramento da história. Quer matar a mulher, mas, diante de uma história de amor, por exemplo, só consegue pensar: “Por Deus que não a matarei até ouvir os prodígios que ocorreram aos dois, e só então a matarei, como as outras de sua igualha”.
Dois pilantras numa noite árabe
Para dar sequência nesta rápida apreciação de um livro com tantas entradas – mil e uma noites dialógicas de um desejo lúdico e de sacanagens narradas em meio aos dramas, ao riso, à violência, ao realismo mágico e à luta das mulheres, ao poder dos homens, ao racismo, ao cinismo, à vida pulsando entre os princípios de prazer e de realidade –, darei uma leve pincelada nas picardias muito comuns na literatura brasileira, principalmente na tradição nordestina da literatura de cordel e nas narrativas de Ariano Suassuna, por exemplo.
Entre as diversas histórias de picardias, sobretudo no terceiro volume, há a do coletor de impostos que quando ia cobrar as taxas devidas tomava tudo do comerciante e depois, em público, devolvia metade do que havia tomado, e todo mundo testemunhava o ato de “um homem bom” que devolvia o dinheiro do povo.
Além dessa, há também a história dos “dois ladrões que fizeram artimanhas um contra o outro”, uma das mais emblemáticas e mais parecidas com as dos pícaros nordestinos, como Pedro Malazartes, João Grilo e companhia.
Os dois sacanas das Mil e uma noites se gabavam, um (o mérvida, natural de Merv) de vender cocô de ovelha como se fosse uva-passa, e o outro (o rázi, natural de Array) de vender cocô de cabra como se fossem figos secos. Até que um dia, os dois se encontram, com suas respectivas mercadorias e, claro, percebem no ato o que ambos são.
Mesmo assim, um comprou a mercadoria do outro, numa vã esperança de que pudessem encontrar algo mais valioso do que merda. Ao perceberem os ardis mútuos, em vez de se estranharem, se aliaram e saíram pelo mundo enganando trouxas, mas sem perder a vontade de trapacear um ao outro.
Há de fato uma influência direta desse fabuloso universo pícaro sobre a literatura brasileira, sem passar pelos grandes centros irradiadores de estética. Talvez, se cavássemos nossa própria história, chegaríamos aos malês, africanos de língua árabe e de religião mulçumana que vieram escravizados para o Brasil, como origem dessa influência. A literatura ibérica tem essa mesma influência jocosa, podendo ser vista no clássico Dom Quixote, mas também em Lazarillo de Tormes.
Realismo mágico
Quando eu era bem jovem li Versos satânicos, do perseguido Salman Rushdie, numa versão de Portugal, porque o livro era proibido de ser publicado no Brasil. Li um exemplar da biblioteca do Sesc (obrigado, Sesc!), em Goiânia, intitulada Os versículos satânicos, e fiquei impressionado com a carga de realismo fantástico do livro. Na minha ignorância, era influência de García Márquez. Só algum tempo depois, lendo declarações do colombiano sobre a influência do Livro das mil e uma noites sobre sua literatura é que a ficha caiu. E quando li o livro árabe, então, entendi a força mágica de suas narrativas.
Há uma diferença entre realismo fantástico e realismo mágico, é verdade. García Márquez era prodígio no primeiro gênero, mas sua fonte é o realismo mágico das Mil e uma noites, como esta cena que se segue, num ritmo alucinante de perseguição:
Então a jovem filha do rei pegou uma faca de ferro com um nome gravado em hebraico, traçou um círculo perfeito no centro do palácio, escrevendo no interior desse círculo um nome em caligrafia kūfī e outras palavras talismânicas; em seguida, fez invocações e esconjuros. Logo vimos o mundo ser coberto de sombras e a atmosfera tingir-se de negro, e isso diante dos nossos olhos, com tal intensidade que chegamos a cogitar que o mundo se fecharia sobre nós. Estávamos nessa situação quando vislumbramos o ifrit, já pousando no solo em forma de leão, tão grande quanto um boi, e nos enchemos de medo. A jovem lhe disse: “Fora daqui, seu cachorro!”. O gênio respondeu: “Você atraiçoou a mim e ao juramento! Não tínhamos combinado que um nunca desafiaria o outro, sua traidora?”. Ela disse: “E por acaso eu juraria alguma coisa para você, seu maldito?”. O ifrit respondeu: “Então tome o que lhe trouxe!”, e, arreganhando as mandíbulas, correu em direção à jovem, mas ela rapidamente arrancou um fio de cabelo, balançou-o na mão, balbuciou algo entredentes, e o fio se transformou numa espada afiada com a qual golpeou o leão, cortando-o em duas partes. As duas partes saíram voando, mas restou a cabeça, que se transformou em escorpião. A jovem por sua vez adotou a forma de uma enorme serpente, e por algum tempo travou violenta luta com o escorpião, mas logo o escorpião se transformou em abutre e voou para fora do palácio; então a serpente virou águia e voou no encalço do abutre, desaparecendo por algum tempo. Mas logo o chão se fendeu, dele saindo um gato malhado que gritou, roncou e rosnou; atrás do gato saiu um lobo preto; lutaram no palácio por algum tempo, e então o lobo derrotou o gato; este gritou e se transformou numa larva, que rastejou e entrou numa romã jogada ao lado da fonte; a romã inchou até ficar do tamanho de uma melancia listrada, ao passo que o lobo se transformou num galo branco como a neve. A romã saiu voando e caiu no mármore da parte mais elevada do saguão, espatifou-se e seus grãos se espalharam todos; o galo avançou sobre eles e começou a comer os grãos, até que não restou senão um único grão escondido ao lado da fonte; o galo se pôs a cacarejar, gritar e bater as asas, fazendo-nos sinais com o bico que queriam dizer “ainda resta algum grão?”, e, como não entendêssemos o que dizia, ele deu um berro tão estrondoso que imaginamos que o palácio desabaria sobre nós. De repente o galo deu uma olhada e, vendo o grão ao lado da fonte, correu para ele a fim de engoli-lo.
E a aurora alcançou Šāhrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.
Longe de se esgotar nessas referências, o Livro das mil e uma noites tem muitas voltas. Sempre haverá algo para dizer dele, por isso mesmo, é fonte de grandes mestres da literatura ocidental, como Jonathan Swift, Dostoiévski e Marcel Proust. Além disso, quando você o lê, você sente necessidade de compartilhar as inúmeras histórias. Enquanto lemos, somos uma espécie de Dinarzad.
Sherazade é uma libertária, e tudo que ela sabe, aprendeu nos livros. Neste sentido, um elogio a ela é um elogio à literatura, e, por extensão, à arte, à resistência. A arte salva o mundo. Contamos histórias para adiar a morte. Enquanto houver arte, haverá esperança e a possibilidade de reconfiguração da vida.
[1] Na edição da Globo, certamente por orientação do tradutor, os nomes são grafados de modo diferentes e mais complicados, como Šahrāzād, para a protagonista, Dīnārzād, para sua irmã, Šāhriyār, para o rei, e assim por diante. Procurei simplificá-los com uma grafia usual, mas também consagrada.