Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907) foi a primeira análise publicada de uma obra literária escrita por Sigmund Freud. Em tal obra, Freud demonstra o seu interesse pelo livro Gradiva, uma fantasia pompeiana (1902), de Wilhelm Jensen, o qual narra a história fictícia de Norbert Hanhold, um jovem arqueólogo alemão que se apaixona, durante uma visita a um museu em Roma, por uma gravura, datada do século II, de uma jovem caminhando com vestes esvoaçantes, e passa a admirá-la devotamente, sonhando com a sua graciosidade e, em especial, com o detalhe dos pés levemente inclinados.
Apesar de ser possível relacionar os delírios da personagem principal em relação a Gradiva com alguns aspectos da teoria freudiana, como a interpretação dos sonhos e o retorno do conteúdo recalcado, aqui faremos um exercício de também relacionar essa narrativa com a busca masculina – ainda bastante atual – de um ideal de beleza feminino, nem sempre alcançável. No romance, Norbert é apresentado como um jovem órfão e solitário que não convive com mulheres e não gosta de participar de eventos sociais. Seria sua situação diferente da de muitos rapazes ao redor do mundo de hoje, isolados, especialmente ainda em tempos de pandemia, e confinados às suas fantasias?
Ao se apaixonar pela figura representada em um relevo de mármore, Norbert compra uma miniatura dela em gesso na loja de presentes do museu para levá-la consigo ao seu apartamento na Alemanha. São os pés de tal figura feminina que chamam a sua atenção e fazem com que ele passe a chamá-la de Gradiva, do latim “aquela que avança”. De maneira semelhante, há hoje um mercado em ascensão de produtos desenvolvidos para o prazer contemplativo ou interativo masculino, relacionado ao apego de muitos homens por figuras femininas representadas em videogames, HQs, mangás e desenhos animados.
A plasticidade da figura de Gradiva fascina o jovem Norbert, a ponto de fazê-lo desejar incessantemente tal objeto, assim como, hoje, há também ampla variedade de recursos que mulheres podem adquirir ou incorporar para tentarem se aproximar dos objetos idealizados pelo desejo masculino: lentes de contato coloridas, capazes de simular aumento da íris dos olhos, perucas, fantasias e, em casos mais extremos, cirurgias plásticas. A busca do corpo ou rosto perfeito sempre apresentou perigos e gastos financeiros para mulheres, mas quando tal busca não se desenvolve baseada em medidas e padrões humanos, em um campo considerado humanamente factível, torna-se ainda mais arriscado – e por que não cruelmente insano? – ansiar por uma anatomia que não é humana, com tamanhos e simetrias insustentáveis.
No livro de Jensen, não muito tempo após o despertar do interesse por Gradiva, Norbert conduz uma investigação com o objetivo genuíno de descobrir se alguma mulher é capaz de caminhar da mesma forma que a figura o faz. Ele passa a observar, sem sucesso, os pés das mulheres que andam nas ruas, irritando e assustando algumas das moças. Em determinado momento, ele avista, ao longe, de sua janela, uma mulher cujo movimento o faz recordar de Gradiva. Ele a persegue pelas ruas, novamente sem sucesso, e, ao voltar para casa, decide fazer uma viagem para o exterior. Freud, em sua análise, chama a atenção para essa passagem, pois Norbert decide ir para longe justamente no momento em que encontra uma mulher semelhante a Gradiva. Seria essa uma tentativa da personagem de fugir do mundo real e adentrar ainda mais em seus devaneios?
Durante sua viagem, Norbert irrita-se com os casais em lua de mel com os quais se depara. Não estando acostumado à convivência entre os dois gêneros e às relações amorosas, o jovem desenvolve aversão aos casais e às carícias que eles trocam. Tal repulsa à dinâmica dos casais e as suas demais atitudes descritas ao longo da obra – por exemplo, não cumprimentar pessoas que haviam estado em reuniões sociais, mesmo sabendo que isso poderia fazê-lo não ser convidado novamente e prejudicá-lo com as mulheres – mostram o desejo de permanecer em uma vida solitária e fazem com que Norbert assemelhe-se aos jovens japoneses que apresentam a chamada “síndrome de celibato”, isto é, o desinteresse, observado em diversos homens e mulheres, por relações sexuais, amorosas e, consequentemente, pelo casamento.
É, aliás, ao fugir dos casais em lua de mel que Norbert acaba se dirigindo espontaneamente para Pompeia. Este é outro ponto analisado em detalhes por Freud, uma vez que as coincidências e as situações inesperadas descritas por Jensen são entendidas, pelo psicanalista, como frutos de desejos inconscientes.
Já em Pompeia, Norbert e os leitores são surpreendidos pelo momento de virada da obra: a aparição de Gradiva caminhando pelas ruas. Norbert a persegue e a procura novamente no dia seguinte, e nós, leitores incrédulos, o seguimos ansiosos por uma explicação. Ainda que o rapaz pareça perdido em seus delírios, Freud afirma que qualquer pessoa, mesmo dotada da mais viva inteligência, poderia reagir de forma insana e acreditar em acontecimentos absurdos para satisfazer seus impulsos emocionais.
Embora existam explicações para os delírios cada vez mais extravagantes e reais com Gradiva – o sol quente da Itália e o vinho, por exemplo –, os encontros se tornam diários, e Norbert passa a conversar com a moça, em alemão, de forma natural e agradável. O primeiro pedido de Norbert a Gradiva é que ela demonstre o seu modo de andar, o que polidamente ela o faz, após o rapaz explicar-lhe que tem sonhado com ela.
Norbert passa a sentir saudade de Gradiva após os seus encontros e anseia por vê-la no dia seguinte. Há um momento em que o rapaz chega a sentir ciúmes ao imaginar se ela não teria tido um companheiro em sua vida passada, enquanto ainda estava viva, momento em que mesmo os casais em lua de mel já não o incomodam mais, pelo contrário, ele desenvolve uma admiração por um novo casal hospedado em seu hotel e passa a admirá-los, de longe, durante as refeições.
Esse casal inaugura de maneira abrupta o segundo ponto de virada da obra. Durante um de seus habituais encontros ao meio-dia, Norbert cria coragem para verificar se Gradiva é realmente um fantasma e a estapeia na mão para assustar uma mosca que lá pousara. Gradiva se assusta e pergunta com raiva se Norbert havia perdido o juízo, e é neste momento em que surge o casal em lua de mel. A mulher cumprimenta Gradiva, chamando-a de Zoe, momento em que tanto Norbert quanto o leitor tomam conhecimento de que Gradiva é uma mulher real, vizinha e amiga de infância de Norbert. Para Freud, não houve coincidência, foi o inconsciente de Norbert que o levou até a mulher que ele desejava, mesmo sem saber, mostrando que “a fuga é o instrumento mais seguro para se cair prisioneiro daquilo que se deseja evitar” (FREUD, 1996, p.45-6).
Zoe (em grego zōḗ, “vida”) Bertgang (nas raízes alemãs, “a que brilha ao avançar”) e Norbert foram companheiros quando crianças – momento no qual, segundo Freud, teria iniciado o fetiche do rapaz pelos pés da moça – e afastaram-se na juventude. Embora Norbert tivesse se esquecido de Zoe e tenha precisado que ela o conduzisse por um calmo caminho de rememoração, tornam-se claros os sentimentos amorosos e de ternura que ela continuou a cultivar por ele durante todos esses anos – e não seria a fidelidade uma das virtudes femininas mais exaltadas?
Na conclusão do livro, Freud analisa mais um ideal feminino: a mulher compreensiva e calma diante de um homem desestruturado. Zoe utiliza técnicas semelhantes às da psicanálise durante o processo de cura de Norbert e vai além do que qualquer analista é capaz de fazer. Ela não apenas o conduz a tornar conscientes o conteúdo e o amor que foram reprimidos, mas também pode corresponder a esse amor que passou do inconsciente à consciência, tornando-a uma psicanalista ideal – ao mesmo tempo em que se torna esposa de Norbert.
O paciente de Zoe/Gradiva tenta escapar da realidade mais uma vez ao receber o choque de tal descoberta, mas acaba ficando preso junto a sua analista, devido à forte chuva que os surpreende. Norbert supera o seu delírio e encontra-se completamente curado ao final da conversa com Zoe, propondo a ela uma lua de mel na Itália, e tornando-se, no fim, ironicamente, parte de um daqueles casais que antes tanto o irritavam. Por outro lado, seria interessante pensar nos desdobramentos da trama, caso o livro fosse escrito nos dias atuais. Será que com a possibilidade de encomendar on-line uma boneca de Gradiva em tamanho real ou um jogo que simulasse seus passos, teria Norbert ido a Pompeia ou apenas esperado os 15 dias de frete?
Referências
FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996
JENSEN, Wilhelm. Gradiva – uma fantasia pompeiana. Trad. Ângela Melim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987
O artigo é o sétimo da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
Gostei professor ,…muito bom !