[Coautor: Alberto Mesaque Martins[1]]
Ainda hoje, as discussões acadêmicas e sociais sobre a temática das drogas se dão num contexto de polêmicas e disputas. No Brasil, é possível observar que esse debate, com frequência, apresenta aspectos ideológicos, no que diz respeito aos argumentos encontrados, dividindo a discussão entre grupos que pregam o combate e a guerra às drogas, assim como as propostas de abstinência total e, de outro lado, pesquisadores que defendem um olhar crítico, pautado no reconhecimento da autonomia das pessoas que utilizam essas substâncias e na proposta da redução de danos (PASSOS; SOUZA, 2011). Diante desse cenário, este ensaio tem como objetivo apresentar reflexões sobre os processos ideológicos que perpassam as discussões sobre a atenção em saúde às pessoas usuárias de substâncias psicoativas, especialmente o álcool e outras drogas, lícitas ou não.
No Brasil, as ações voltadas para a prevenção, o tratamento e a reabilitação das pessoas que utilizam substâncias psicoativas encontravam-se sistematizadas e orientadas pela Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, instituída em 2003, e da Política Nacional de Redução de Danos, de 2005 (BRASIL, 2004). Apesar do seu status de política pública, essas propostas vêm sofrendo intensas críticas, sobretudo por movimentos conservadores e religiosos que defendem a abstinência como única proposta de tratamento e a retomada da guerra às drogas. Nesse sentido, desde 2019, medidas vêm sendo implementadas pelo governo federal, configurando-se como grandes retrocessos, como a extinção da Política Nacional de Redução de Danos, o aumento nos investimentos em comunidades terapêuticas e, ainda, na ampliação de conselhos antidrogas.
Na contramão das políticas de guerra às drogas, a redução de danos constitui-se como uma estratégia de saúde coletiva que objetiva o controle do uso de substâncias psicoativas e o tratamento de usuários, garantindo a liberdade, autonomia, inclusão social e a cidadania dos usuários e seus familiares (LOPES; GONÇALVES, 2018). Além disso, essa proposta não tem como meta a abstinência total, mas busca construir e pactuar com os próprios usuários estratégias alternativas como a diminuição do consumo, priorizando a liberdade e a autonomia, já que nem todo usuário deseja se abster totalmente do uso (CARDOZO, 2014).
Vale lembrar que o estatuto que defende o combate às drogas, instituído no final do século XIX, reduz a temática ao campo moral, penal e religioso, dividindo de maneira arbitrária substâncias ditas como “aceitáveis” e, portanto, lícitas, e outras “inaceitáveis”, consideradas ilícitas. Assim, substâncias psicoativas de grande utilização, como a cannabis, são mantidas sob interdição e sujeitas a penalidades jurídicas, enquanto outras drogas, como o álcool, tem o uso e comercialização permitidos e incentivados por meio de campanhas publicitárias, mesmo reconhecendo possibilidades de danos à saúde e do risco de dependência (LOPES; GONÇALVES, 2018).
Também é preciso reconhecer que algumas substâncias, como os medicamentos, os anabolizantes e esteroides, nem sempre são vistas como drogas, passando a ser consideradas como “terapêuticas” e comercializadas pela sociedade. Assim como as drogas ilícitas essas substâncias são procuradas com o objetivo de “resolver” problemas da população no que diz respeito à saúde mental, como os sintomas de ansiedade e depressão, bem como a busca por maior desempenho e produtividade. Nesse contexto, o uso dessas substâncias deixa de ser percebido como sinônimo de violação da lei e revela certas circunstâncias nas quais a utilização de drogas passa a ser incentivada e tolerada, inclusive com o respaldo sanitário e do Estado (PASSETTI, 2005). O proibicionismo, então, marca a divisão existente entre as substâncias psicoativas, ditas como aceitas e não aceitas de um ponto de vista, na maioria das vezes, médico, deixando de considerar outros pontos de vistas que auxiliem na busca de soluções para o problema da toxicomania.
Segundo Bardi (2017), nas últimas décadas, a guerra às drogas foi fortemente impulsionada pelo capitalismo, que arrecadou ganhos configurando um mercado que atende diversos objetivos de ordem econômica e o próprio Estado, que por sua vez, defende a bandeira de combate às drogas. A ligação do combate às drogas ao ganho de poder é debatida por alguns autores que consideram a marginalização de algumas drogas fruto da violência e das desigualdades sociais (ROMANINI; ROSO, 2013). Além disso, reconhece-se a presença de discursos ideológicos no controle e nas penalizações do consumo, de modo que há uma coerção maior, sobretudo a policial, com uso de violência, nos grupos mais pobres e marginalizados, como a população preta, indígena e periférica. Parte deste combate está fortemente alinhada com a criminalização da pobreza, que consiste basicamente em selecionar um tipo de população e tachá-la como problema.
Ainda nesse cenário, Ferrugem (2020) destaca o ódio de classe e o racismo existentes nas políticas de controle do uso e do comércio de drogas. O autor descreve dois princípios existentes neste contexto de combate às drogas. O primeiro afirma a concepção de que o uso dessas drogas é essencialmente nocivo, ocasionando estrago e, portanto, não poderia ser aceitável. Essa perspectiva nega a presença histórica das substâncias psicoativas em diversas culturas, de modo que a discussão sobre o consumo é reduzida à dimensão fisiológica, dando ênfase aos efeitos nocivos à saúde física e mental. Além disso, essa vertente destaca as consequências sociais negativas dessas substâncias, desconsiderando os determinantes sociais que contribuem para que os sujeitos se tornem dependentes dessas substâncias. Elas também desconsideram os fatores psicossociais que perpassam o uso dessas substâncias.
A análise feita por Fiore (2012) aponta que essa concepção ideológica contribui para políticas e práticas punitivistas e segregacionistas por parte do Estado, que passa a perseguir e punir os pequenos traficantes e consumidores, na intenção de banir a circulação e o consumo de determinadas drogas. Por outro lado, estudos têm demonstrado um papel seletivo das instituições de segurança pública, de maneira que as sanções e as estratégias de controle do uso de substâncias psicoativas são mais brandas quando aplicadas a grupos socialmente mais favorecidos, como pessoas brancas e de classe média alta. Além disso, dada a constituição do tráfico de drogas, é recorrente que os traficantes varejistas, em geral, pessoas pobres, pardas e negras, sejam encarcerados, enquanto os grandes produtores e comerciantes dessas sustâncias gozam de liberdade.
Nesse contexto de discursos antidrogas, é fato recorrente a palavra ideologia ser utilizada como elemento que supostamente desacreditaria as políticas de redução de danos, acusando-as de interesses nefastos de grupos específicos, muitas vezes ganhando tons de teorias conspiratórias. Assim, a ideia de ideologia é empregada como condizente com discursos que destacam qualquer outro ponto de vista que vá em direção contrária às opiniões pessoais, sem consistência ou fundamentos, e que irão causar piores resultados quando comparados a outros posicionamentos.
Esse contexto reprime a possibilidade de uma intervenção mediadora, ou seja, não torna capaz uma discussão de um ponto de vista positivo da ideologia, exibindo apenas seu objetivo de alienação. De acordo com Ricoeur (1990), a ideologia dita como mediadora sempre será insubstituível e fundamental. O autor destaca a teoria da motivação social como essencial às ideias e aos pensamentos defendidos por cada indivíduo e cada demonstração de razão empregada. Quando partimos do pressuposto de que alternativas possíveis não são aplicáveis ou que não demonstram confiabilidade, favorecemos o discurso dito como “científico”, porém visto desde a sua implementação como um sistema falido e que de nenhuma maneira está resolvendo questões emergentes.
Fiore (2012) ressalta que os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam o seu impedimento e, ao condenar a fabricação, o comércio e o consumo, o Estado enriquece um mercado clandestino e cria novos problemas. Diante desse quadro vemos as seguintes alternativas: 1) valorizar o autocuidado e os valores sociais; 2) descriminalizar o consumo e estipular critérios objetivos e seguros para controlar o consumo; 3) planejar ações de acordo com as especificidades de cada droga, reconhecendo que nem todo usuário é dependente.
Referências
BARDI, G. Droga e ideologia: um debate sobre as “soluções ofertadas”. 5º Encontro Internacional de Política Social, 12º Encontro Nacional de Política Social, 2017. Disponível em: <file:///D:/Downloads/lgarcia,+Droga+e+ideologia%20(1).pdf>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
BRASIL. Ministério da Saúde (MS). A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: MS; 2004.
CARDOZO, A. R. Aproximações entre redução de danos e dependência química. Porto Alegre; s.n; 2014. 29 p. Tese em Português | Coleciona SUS. Disponível em: <https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/sus-32201>. Acesso em: 14 de julho de 2022.
FERRUGEM, D. Guerra às Drogas? Revista em pauta, v. 18, n. 45, pp. 44-54, 2020.
FIORE, M. O lugar do Estado na questão das drogas: O paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos CEBRAP, n. 92, p. 9-21, 2012.
LOPES, H. P.; GONCALVES, A. M. A política nacional de redução de danos: do paradigma da abstinência às ações de liberdade. Pesquisas e Práticas psicossociais, v. 13, n. 1, p. 1-15, 2018.
PASSETTI, E. Abolicionismo penal, medidas de redução de danose uma nota trágica. Verve,v. 7, p. 75-85, 2005.
PASSOS, E. H. S.; & Tadeu, P. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 1, pp. 154-162. 2011.
RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990.
ROMANINI, M. ROSO, A. Midiatização da cultura, criminalização e patologizaçãodos usuários de crack: discursos e políticas. Temas em Psicologia, v. 21, n. 2, p. 483-497, 2013.
[1] Psicólogo (UNA), especialista em Psicologia da Saúde (CFP), mestre e Doutor em Psicologia (UFMG). Professor Ajunto na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde também atua como orientador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. E-mail: alberto.martins@ufms.br
O artigo é o décimo da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.