Os políticos fascistas justificam suas ideias ao aniquilar um senso comum de história, criando um passado mítico para respaldar sua visão do presente. Eles reescrevem a compreensão geral da população sobre a realidade, distorcendo a linguagem da idealização por meio da propaganda e promovendo o anti-intelectualismo, atacando universidades e sistemas educacionais que poderiam contestar suas ideias. Depois de um tempo, com essas técnicas, a política fascista acaba por criar um estado de irrealidade, em que as teorias da conspiração e as notícias falsas tomam o lugar do debate fundamentado.[1]
O Brasil, nos últimos anos, tem sido palco de diversos movimentos que visam ao enfraquecimento da democracia e à instauração de políticas de cunho ultranacionalista, a exemplo do fascismo. À primeira vista, é possível que grande parte da sociedade brasileira não perceba como os Estados democráticos e as ideias liberais, pouco a pouco, vêm sendo seduzidos traiçoeiramente pelo “canto de sereia” de lideranças autoritárias. Por isso, faz-se necessário conhecer a natureza desses regimes, cujo objetivo é usurpar a soberania popular e reprimir o seu poder, bem como delimitar quais são as artimanhas utilizadas e os pilares de sustentação de políticas fascistas.
Na obra How Fascism Works: The Politics of Us and Them[2], publicada em 2018, Jason Stanley explica por que o termo “fascismo” voltou a ganhar o centro dos debates políticos em pleno século XXI, analisando qual é o pilar comum por trás dos recentes episódios em que Estados democráticos têm orientado suas políticas governamentais sob bases fascistas, nos quais o líder da nação não representa a voz do povo. À luz desses episódios, Stanley assenta 10 principais fundamentos fascistas, entre os quais destacamos: (i) a ideia de reviver um passado mítico, pautado na nostalgia de um passado glorioso cuja estrutura é sustentada pelas façanhas dos antigos líderes da nação; (ii) o uso de propagandas que utilizam a emoção do povo, não seu raciocínio lógico, a fim de minar as instituições democráticas; (iii) constantes ataques a universidades e pesquisadores, ignorando-os e os tachando pejorativamente de “marxistas” ou “feministas”, cujo objetivo seria apenas a balbúrdia e a baderna; (iv) forte concepção de “hierarquia de poder e dominância que contrariam categoricamente a igualdade de respeito pressuposta pela teoria democrática liberal” (STANLEY, 2018, p. 85).
Outro importante teórico a ocupar-se a respeito do papel desempenhado pela propaganda fascista foi Theodor Adorno, já em 1951, com o texto Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista[3]. Adorno, assim como fez Stanley em 2018, procura demonstrar como o método adotado por esses incitadores da turba segue um exaustivo padrão, previamente definido, cujo conteúdo vinculado às propagandas não é baseado na intenção de trazer seguidores por meio da expressão racional de seus objetivos políticos, mas em cálculos psicológicos que expressam aspectos da mentalidade fascista. Dessa forma, se revisitarmos as estratégias utilizadas pelos principais propagandistas que trabalharam na linha de frente para governos ultranacionalistas, a exemplo de Gregor Strasser, chefe da propaganda nazista do Reich na década de 1920, e de seu sucessor, Joseph Goebbels, veremos quão similares são esses discursos entre si e quão escassos são os argumentos lógico-racionais. Por esse viés, a psicologia da propaganda fascista é majoritariamente regida por manipulação, ou seja, por técnicas calculadas que visam trazer à tona a obscuridade do ser humano, obscuridade que se mostra na forma de ódio, nojo e desprezo a determinados seguimentos sociais.
Uma vez que seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos. (ADORNO, 1975, p. 20).
Em nosso país, esse ímpeto apelativo às massas por meio de propagandas com pouco ou nenhum argumento racional, apenas emotivo, fica claro em frases proferidas pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Não são poucos os slogans e as frases bolsonaristas que visam não dar voz a insatisfações políticas da população; pelo contrário, visam ao anti-intelectualismo, à desvalorização da educação e à disseminação de discursos de ódio a raças, classes, gêneros, orientação sexual e tudo que seja uma ameaça à política fascista. O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, proferido incansavelmente por seus apoiadores, remete-nos a uma forte política nacionalista de cunho nazista. Não nos espanta que na Alemanha hitlerista, um dos lemas mais entoados tenha sido “Deutschland über alles”, que em português significa “Alemanha acima de tudo”.
Outra estratégia utilizada por propagandistas e líderes fascistas é a identificação de um inimigo comum ao Estado. Nas vésperas das eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo em sua página no Facebook [4], declarou: “Vamos unir o Brasil pela vontade de nos afastarmos de vez do socialismo, do comunismo, nos vermos livres desse fantasma do que acontece na Venezuela”. Frequentemente, Bolsonaro identifica esquerdistas ou petistas como bandidos inimigos da pátria, sendo merecedores de punição. Assim, Bolsonaro promete “defender o país do comunismo e curar lulistas com trabalho”[5]. Baseados nessa mesma ideologia fascista, os alemães nazistas retrataram o povo judeu como um povo preguiçoso, que só pensava em altos lucros, sem oferecer nenhum trabalho mental ou físico, um povo que tinha por objetivo roubar o dinheiro de arianos trabalhadores. Esse povo, segundo a política fascista, só poderia ser curado da preguiça por meio do trabalho duro. É por isso que nos portões dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald era exibido o slogan “Arbeit Macht Frei”, ou seja, “o trabalho liberta”.
Esse tipo de política é o que Stanley chama de “a política do nós e eles”, retratando certa noção de pureza social e demonstrando que, na ideologia fascista, quando há tempos de crise, o Estado reserva apoio para os membros da nação escolhida, ou seja, para o “nós” e não para o “eles”. A justificativa para isso é fundamentada no fato de que “eles” são preguiçosos, carecem de uma ética de trabalho, e não lhes podem ser confiados fundos estatais, uma vez que “eles” são criminosos e querem viver somente da generosidade do Estado (STANLEY, 2018, p. 153).
O segredo da propaganda fascista pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens pelo que eles são […]. A propaganda fascista tem apenas que reproduzir a mentalidade [já] existente para seus próprios propósitos. […] Ela se apoia absolutamente na estrutura total tanto quanto em cada traço particular do caráter autoritário que é, ele mesmo, produto de uma internalização dos aspectos irracionais da sociedade moderna .(ADORNO, 1975, p. 21).
Portanto, o objetivo central da propaganda política fascista é mascarar os ideais claramente problemáticos de políticos ou de movimentos políticos, ocultando-os com ideias amplamente aceitas pelo senso comum. Dessa maneira, a propaganda fascista visa, sobretudo, unir as massas em torno de objetivos que, de outra forma, seriam fortemente contestáveis. Em outras palavras, ela carrega em sua gênese uma ideia fundamentalmente baseada na não democracia, por meio da qual Estados fascistas buscam desarticular “o Estado de direito, com o objetivo de substituí-lo pelos ditames de governantes individuais ou chefes de partido” (STANLEY, 2018, p. 40).
À vista disso, é tempo de invocar os mais diversos seguimentos sociais a resistir à indiciosa invasão do fascismo, cujas sorrateiras artimanhas têm por objetivo minar Estados democráticos, fazendo-os padecer sob a influência de políticos de cunho fascista. É tempo de identificar os elementos inflamáveis da propaganda política fascista e fazer resistir os pilares da democracia e da soberania popular. É tempo de fazer a hora e não esperar acontecer[6].
Referências
ADORNO, Theodor. “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”. Psychoanalysis and the social sciences. Traduzido por Francisco Rüdiger. Frankfurt: Editora Surhkamp Verlag, 1975.
BOLSONARO, Jair. “Bolsonaro faz última live antes do dia das eleições”. YouTube, 06 de out. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9a5OzgmyxQ8.
GERALDO VANDRÉ – TEMA. “Pra não dizer que não falei das flores”. YouTube, 14 de jan. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KdvsXn8oVPY.
MACHADO, Adriano. “Bolsonaro diz defender país de comunismo e “curar” lulistas com trabalho”. In: Revista Exame, 06 de out. 2018. Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-diz-defender-pais-de-comunismo-e-curar-lulistas-com-trabalho/.
OS EDITORES. [Orelha do livro]. In: STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Trad.: Bruno Alexander. Porto Alegre [RS]: L&PM, 2ª ed., 2019.
STANLEY, Jason. How Fascism Works: The Politics of Us and Them. New York, Random House, 2018. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Trad.: Bruno Alexander. Porto Alegre [RS]: L&PM, 2ª ed., 2019.).
[1] STANLEY, J., 2018, p. 16.
[2] O leitor pode encontrar a versão desta obra traduzida para o português sob o título: Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.
[3] Texto que conta com a colaboração de Max Horkheimer.
[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9a5OzgmyxQ8.
[5] Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-diz-defender-pais-de-comunismo-e-curar-lulistas-com-trabalho/.
[6] Referência à canção “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KdvsXn8oVPY.
O artigo é o 11º da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.