Depois que Bolsonaro declarou ao The New York Times que comeria um índio numa boa, que não teria problema em comer carne humana, foi aí que a porteira escancarou. Passa tudo além da boiada do Sales. A voracidade mostrou sua cara. O bicho-papão abre a goela profunda e sai de braço dado com o Fantasma do Comunismo que como todo mundo sabe gosta de comer criancinhas.
Viva o canibalismo? Canibalismo para todos? Seria democrático. A forma arcaica de identificação descrita por Freud estaria em ascensão no Brasil? Nossos tribunais, nossos togados andaram bem em mandar retirar da campanha do Lula o vídeo em que Bolsonaro dá provas de uma sinceridade absoluta. Abaixo a hipocrisia, mas, sem ela, a guerra de todos contra todos terminaria por falta de combatentes. Ou será que só se pode comer índios? Invasão de terras, de latifúndio, não, porque só se pode invadir terra dos índios? Vingança porque comeram o Bispo Sardinha?
Uma coisa é comer carne humana numa situação-limite em que não há alternativa de sobrevivência , como ocorreu num célebre desastre de avião que caiu nas geleiras dos Andes. Outra é mostrar que GOSTA, “numa boa”.
O bom e velho Vocabulário da Psicanálise, de Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis, ainda que cometa algumas injustiças contra Lacan por não citá-lo devidamente, é uma excelente ferramenta para compreendermos um aspecto significativo do mecanismo da identificação a que estamos todos os falantes submetidos. E de quebra pode nos atualizar para o debate político.
Dada a relevância do tema, vou citar na íntegra o verbete “Canibalesco”:
– Termo empregado para qualificar relações de objeto e fantasmas (fantasias) correlativos da atividade oral, por referência ao canibalismo praticado por certos povos. O termo exprime de modo figurado as diferentes dimensões da incorporação oral: amor, destruição, conservação no interior de si mesmo e apropriação das qualidades do objeto. Fala-se por vezes de fase canibalesca como equivalente da fase oral ou, mais especificamente, como equivalente da segunda fase oral de Abraham (fase oral-sádica).
– Embora se encontre na edição de 1905 dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade uma alusão ao canibalismo, é em Totem e Tabu (1912-1913) que a noção encontra o seu primeiro desenvolvimento. Freud sublinha nessa prática dos “povos primitivos” a crença que ela implica: “[…] ingerindo partes do corpo de uma pessoa, no ato de devorar, dá-se igualmente uma apropriação das propriedades que pertenceram a essa pessoa.
– A concepção freudiana do “assassínio do pai” e da “refeição totêmica” confere a esta ideia um considerável alcance: “Um dia os irmãos […] reuniram-se, mataram e devoraram o pai, pondo desse modo fim à horda primitiva […] No ato de devorar realizaram a identificação com ele, pois cada um se apropriou de uma parte da sua força.”
– Qualquer que seja o valor da perspectiva antropológica de Freud, o termo “canibalesco” assumiu na psicologia psicanalítica uma acepção definida. Na edição de 1915 dos Três Ensaios, em que Freud introduz a ideia de organização oral, o canibalismo caracteriza essa fase do desenvolvimento psicossexual.
– Na sequência de Freud, fala-se às vezes de fase canibalesca para designar a fase oral. Quando K. Abraham subdivide a fase oral em dois períodos, período de sucção pré-ambivalente e período de mordedura ambivalente, é o segundo que ele qualifica de canibalesco.
– O termo “canibalesco” sublinha determinadas características da relação de objeto oral: fusão da libido e da agressividade, incorporação e apropriação do objeto e das suas qualidades. As relações estreitas que existem entre a relação de objeto oral e os primeiros modos de identificação (ver: Identificação primária) estão implicadas na própria noção de canibalismo.
Por sua vez, o Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, destaca o papel da “incorporação” nos processos identificatórios:
– Incorporação é um termo introduzido por Sigmund Freud, em 1915, para designar um processo pelo qual um sujeito faz com que um objeto penetre, fantasisticamente, no interior de seu corpo.
– Próxima do termo introjeção, introduzido por Sandor Ferenczi em 1909, a incorporação está relacionada com o envoltório corporal. É o interior do corpo que é visado, com três objetivos: dar prazer a si mesmo através da penetração do objeto em si, destruir o objeto e assimilar as qualidades do objeto. O termo incorporação foi amplamente retomado por Melanie Klein e sua escola.
Roudinesco e Plon deixam claro que a incorporação implica a penetração do objeto no corpo (seja ele índio, gay, criancinha, preto, trans, mulher, o que for, ainda que limitada ao plano fantasístico, digo eu). A porca torce o rabo quando se dá a “passagem ao ato”, para além das meras fantasias ou fantasmas.
Poderíamos lembrar o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade como um sinal inspirador e característico da cultura brasileira no dizer de MDMagno:
– Heterofagia é devorar o Outro. Trata-se de comer o Outro. Uma coisa muito cara aos brasileiros. Acho que o verbo mais importante no Brasil é o verbo comer, sobretudo quando se trata de comer um outro. Brasileiro é vidrado em comer, em vários sentidos. Há uns passando forme, outros gulosos, afora esse tesão nacional que se oraliza a cada momento, sempre dito, sempre explicitado, da musiquinha de carnaval à piadinha de rua, do grande texto teatral à paquera comezinha. E há uma oralidade, me parece, muito importante, muito vigorosa, no seio da nossa cultura. (Revista Revirão, nº 2, p. 225).
Lembro também na mesma revista o artigo de Belmiro F. de Salles F.º intitulado “O canibal e a engenhoca”, carregando por subtítulo “Ou tudo o que você queria saber sobre antropofagia e nunca se atreveu a perguntar por medo de ser comido”.
E mais não lembro pelo adiantado da hora que o segundo turno das eleições vem aí: canibais na cabeça?