[Coautores: Alberto Mesaque[1]e Jeferson Camargo Taborda[2]]
A identidade é como uma narração de um personagem que possui cenário, discursos, histórias e enredos, repletos de influências mútuas no que diz respeito à sua constituição. Faz-se necessário então considerar as variadas combinações que configuram as identidades como totalidade, mesmo sendo ela mutável, contraditória, múltipla.
Diversos são os exemplos de uso do termo identidade no cotidiano. Como cita Antônio Ciampa (1989, p. 59), um dos principais nomes da psicologia social: “os personagens televisivos costumam estar carregados de drama acerca de uma grande descoberta sobre sua identidade”, como, por exemplo, quando um determinado sujeito descobre ser filho de tal personagem. Isso porque se aquele desconhecido é seu pai, logo, o sujeito em questão é filho dele e não somente de quem pensava que era. Assim, a identidade do outro retrata a identidade daquele indivíduo.
Em sua maioria, o primeiro grupo social a que o sujeito pertence é o grupo da família, que lhe fornece um nome, nome este que será um substantivo que o nomeia, ou seja, algo que identifica as diferenças de um em um conjunto de variados outros. Tal percepção diz respeito à diferença e à igualdade, que podem ser vistas como um primeiro entendimento identitário, já que, conforme adquirimos nossas experiências de vida, vamos nos igualando e diferenciando de acordo com os grupos sociais aos quais pertencemos (CIAMPA, 1989).
No decorrer da vida, no âmbito da cultura, é recorrente que os indivíduos pertençam a diversos grupos sociais e se diferenciem ou se igualem, uma vez que a percepção sobre si é atribuída por um reconhecimento recíproco entre os indivíduos de determinado grupo social, repleto de tradições, interesses, normas e histórias. Podemos entender que, a partir do momento em que o sujeito se reconhece como grupo, suas relações passam a ser estabelecidas através de verbo e não mais como substantivo, visto que é pela maneira de ser que alguém se tornará algo.
Ainda conforme Ciampa (1989), a identidade do sujeito é um fato social e não natural. Podemos pensar no seguinte exemplo: um recém-nascido é inserido em uma família com expectativas já estabelecidas, ou seja, virá ao mundo rodeado de representações sobre o que deverá ser e como agir. Com o tempo, essa representação passa a ser entendida e apropriada pelo indivíduo, tornando-se algo pertencente a seus objetivos sociais. Tal concepção também pode ser exemplificada, para além da representação prévia que o grupo social tem do sujeito, quando, grupo e sujeito, ao experienciarem as relações em conjunto, com suas normas e funcionamentos, confirmam o papel identitário de todos ali pertencentes.
Fundamenta-se nisso o fato de que existe a expectativa sobre como alguém deve se comportar, partindo do reconhecimento do que o indivíduo é. As interações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo passam a ser influenciadas por múltiplos fatores, estabelecidos a partir do desenrolar das convenções sociais. Dessa maneira, as identidades refletem a organização social, em um processo recíproco, que mostra o grupo como também refletido na formação da identidade.
Nessa circunstância, em Ciência e Ideologia, texto do filósofo francês Paul Ricœur (1990), os critérios do fenômeno ideológico, em específico a função geral da ideologia, traz a ação social como aquela que entra em cena quando os comportamentos do sujeito são significantes para o individual e para o coletivo, caso em que a relação social é capaz de apresentar o ideal de que há uma certa estabilidade e previsibilidade no sistema de significados.
Assim, o grupo social tem necessidade de confirmar uma representação de si, partindo do princípio de não apenas diferenciar uma convicção para além de seus fundamentos, mas de ser capaz de transformar aquele princípio em grupal. Ainda, como caráter gerativo, a ideologia é também envolta no poder de fundação das instituições, de forma a fornecer a crença da ação que vai direcionar o sujeito (RICOEUR, 1990).
Também podemos notar, segundo Ricœur, a percepção da ideologia como esquemática e simplificadora, como a linguagem superficial de um grupo, história e mundo. A percepção que o grupo faz de si e seus componentes é resultado do esquema ideológico que, através da imagem, representa sua existência. Tal existência está reforçada pela linguagem, igualmente denominada como códigos interpretativos, vistos não exclusivamente como algo que os sujeitos sejam capazes de expressar, mas também algo em que o personagem reflete e vive (RICOEUR, 1990).
As representações da ideologia na sociedade em que vivemos seriam mesmo somente algo ruim? A concepção de identidade para a Psicologia Social poderia ser vista como uma forma de ideologia? Entendemos, a partir desta reflexão, que não. As representações ideológicas podem ser vistas como pertencentes ao processo de formação identitária. Isso porque, ao negar a existência de uma ideologia quanto aos seus próprios princípios, já há aí a afirmação de uma ideologia. Além disso, enquanto a formação de identidade acontece, concepções ideológicas são estabelecidas nesse processo.
Dessa forma, a noção de ideologia, que comumente é vista pelo ângulo da negatividade, como antidemocrática, sexista etc., e utilizada como sendo denominada a uma variedade de posições e reflexões que ferem os direitos humanos, pode ser pensada como um conjunto de ideias que aproximam determinado grupo social e fundamentam a visão de si e do mundo, seja ela qual for. Por isso, a concepção de identidade, como constituinte do ser a partir do meio social e cultural, está envolta no processo de ideologia presente na concepção que o grupo faz de si, de seus componentes e da maneira como eles se relacionam.
Referências
CIAMPA, A. C. Identidade. In: CODO, W; LANE, S (Org). Psicologia social: o homem em movimento, São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 58-75.
RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro, 1990
[1] Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde também atua como orientador no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Psicologia. E-mail: alberto.mesaque@ufms.br
[2] Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco. Professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Paranaíba. Atua também como orientador no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Psicologia FACH/UFMS. E-mail: jeferson.taborda@ufms.br
O artigo é o 13º da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.
- O padrão da propaganda fascista, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/15/o-padrao-da-propaganda-fascista/.
- Até que ponto tolerar?, de Natasha Garcia Coelho e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/29/ate-que-ponto-tolerar/.
Muito Bom gostei