[Coautora: Amanda Malerba[1]]
Epistemologia e política, conhecimento e ação, saber e poder, compreensão e crítica, pesquisa e ativismo são modos de expressar a diferença entre duas esferas ou dimensões antropológicas mais presentes em nossa vida: logos e práxis. Tratando-se especialmente das ciências humanas, tais diferenças parecem ser indissociáveis. O empreendimento epistemológico pode tornar-se ideológico, isto é, sectário e dissimulatório, quando, por exemplo, perde sua função de objetividade explicativa, metodologia compreensiva e verificação factual e passa a reverter sua tarefa para suprir as necessidades de um grupo partidário específico por meio de narrativas identitárias.
Quando a objetividade argumentativa da pesquisa teórica é desbancada pela narrativa ideológica partidária, há inversão e sobreposição das esferas e, portanto, em última consequência, extinção de ambas. Dessa forma, é preciso nos perguntarmos: a tarefa epistemológica do pesquisador das ciências humanas é uma argumentação crítica, fundamentada racionalmente ou é a do ativismo ideológico com discursos partidários? Antes de realizarmos a práxis emancipatória, tecendo uma crítica social, podemos reconhecer nossas próprias ambições e ilusões e distingui-las do nosso empreendimento teórico mediante uma autocrítica? Podemos diferenciar epistemologia e política, traçando uma solução de relação complementar entre as duas esferas? A abordagem estruturalista, a partir da exposição de Francis Wolff, em Nossa humanidade: de Aristóteles às neurociências (2012), e a hermenêutica crítica de Paul Ricœur (1913–2005), em Ciência e Ideologia (1983), serão apresentadas como um caminho de esclarecimento diante das confusões no interior das ciências humanas entre epistemologia e política, pesquisa e ativismo, conhecimento e crítica.
O “sujeito sujeitado”, conforme Wolff explora em sua obra, é a fórmula de uma perspectiva antropológica que preserva a humanidade do objeto e a objetividade do método para satisfazer a cientificidade e a humanidade que devem habitar as ciências humanas. Partimos de sua análise, portanto, para reconhecer as ilusões do sujeito pesquisador, que potencialmente tende ao ativismo ideológico e imperceptivelmente perde de vista o empreendimento teórico. A abordagem estruturalista elucida os fatores enganosos que dissimulam e confundem a tarefa epistemológica do pesquisador. De acordo com a condição do “homem estrutural”, o indivíduo fica à mercê de suas próprias ambições partidárias e ilusões discursivas, uma vez que pensa ser sujeito de seus atos e pensamentos, mas só o é de suas crenças, residindo assim apenas na ilusão. Ademais, segundo Wolff, o “sujeito sujeitado” é o “homem estrutural”, no qual a consciência tem a ilusão de crer-se sujeito de suas ações e raciocínios, que, no entanto, são independentes dela. Nesse sentido: “a ilusão não é acidental, ela pode, portanto, ser objeto de ciência” (WOLFF, 2012, p. 89, grifo nosso), ou seja, podemos analisar as ilusões do sujeito pesquisador e distingui-las de sua tarefa epistemológica, mediante o reconhecimento de que o “sujeito é sujeitado” pelas suas crenças.
Semelhantemente, em seu exame hermenêutico crítico das ideologias, Paul Ricœur nos direciona a três proposições que apresentam uma solução dialética entre ciência (epistemologia) e ideologia (política). Primeira proposição: pertencimento contextual. A possibilidade de um saber crítico absoluto ou de um discurso subversivo radical é impraticável devido à pertença do sujeito ao seu contexto temporalmente finito, historicamente factível e existencialmente contingente. Segunda proposição: interesse fundacional indissociável. O interesse que fundamenta qualquer tipo de conhecimento ou crítica resulta na não completude epistemológica, em outras palavras, o desenvolvimento teórico é indissociável de sua pretensão ideológica primária, logo, não pode ser totalizante. Terceira proposição: distanciamento pessoal. O distanciar-se de si possibilita uma análise parcial e relativa por meio da hermenêutica, para criticar as ilusões ou ideologias do pesquisador. O distanciamento pessoal, analisando a disjunção relacional entre “ciência e ideologia” (epistemologia e política), é a condição hermenêutica da autocrítica. Segundo o filósofo, o distanciamento é: “um distanciar-se de si, um distanciamento de si a si mesmo. […] Este trabalho implica organicamente uma crítica das ilusões do sujeito” (RICŒUR, 1983, p. 93).
Nesse sentido, resgatando o estruturalismo, podemos: “preservar ao mesmo tempo a humanidade do objeto [reconhecendo as ilusões subjetivas do pesquisador] e a objetividade do método [exercendo a autocrítica]” (WOLFF, 2012, p. 83). Na hermenêutica, a objetividade explicativa e a metodologia compreensiva são concernentes ao pertencimento contextual, que, no entanto, consiste em certa autonomia, pois: “o momento crítico que o constitui é fundamentalmente possível, em virtude do fator de distanciamento [pessoal] que pertence à relação de historicidade” (RICŒUR, 1983, p. 92). O pertencimento contextual, como condição hermenêutica para a compreensão histórica – factível –, exclui a reflexão total para uma crítica social absoluta. No entanto, somente através do distanciamento pessoal, pertencente à historicidade, é possível a constituição de uma condição autocrítica de nossas próprias ilusões.
Com efeito, de um lado, se o conhecimento proporcionado pela epistemologia – ciências naturais e humanas – resulta em objetividade explicativa e metodologia compreensiva mediante a robustez argumentativa e a verificação justificada, de outro, a crítica social através de narrativas identitárias, proporcionada majoritariamente pelo campo político, desenvolve, por sua vez, a polarização partidária, com potencialidades ideológicas, ocultando as ambições pessoais do indivíduo. Desse modo, uma distinção delimitada ou uma relação complementar entre epistemologia e política deve ser traçada, pois conforme Ricœur: “O saber está sempre em vias de se arrebatar à ideologia” (RICŒUR, 1983, p. 94). No entanto, “[…] como respeitar ao mesmo tempo o discurso dos indivíduos estudados e as obrigações de sua própria discursividade?” (WOLFF, 2012, p. 90).
Nossa contribuição para responder à distinção e à complementaridade relacional entre as duas esferas consiste em uma intersecção dialética. Uma complementaridade distintiva entre epistemologia e política. Intersecção, pois epistemologia e política se interpenetram, mas não se confundem, podem conectar-se, mas não se sobreporem. Há pontos de contato, quando a pesquisa teórica necessita da práxis emancipatória, e colisões frontais, quando a tarefa epistemológica está minada de militância ideológica. Dialética, pois há oposição direta entre as esferas, podendo haver uma união limitada, culminando satisfatoriamente na complementaridade mútua. Funções e características distintivas, dependência disciplinar e auxílio na completude relacional: intersecção dialética.
Portanto, ao mesmo tempo em que trabalhamos como sujeito e objeto de nossa pesquisa, devemos reconhecer as ambições que nos motivam. Exercendo a autocrítica preservaremos a precisão e o rigor dos resultados teóricos científicos. A fim de reconhecer nossas ambições e ilusões, indicar uma relação complementar entre as esferas e melhorar o exercício das tarefas sociais e epistêmicas, propomos para a epistemologia das ciências humanas uma hermenêutica estrutural junto à intersecção dialética. O distanciamento pessoal hermenêutico do “sujeito sujeitado” estrutural possibilitaria as condições epistemológicas para a justificação argumentativa proveniente da objetividade explicativa, e as condições críticas para uma metodologia compreensiva do exercício autocrítico, valorizando assim a diversidade temática do pesquisador das ciências humanas. A pesquisa e o ativismo podem andar juntos, desde que sejam conduzidos por esses requisitos. A relação complementar entre as esferas deve ser explorada, mas não confundida e sobreposta. As ciências humanas são envoltas pela interdisciplinaridade, mas tratando-se de epistemologia e política, pesquisa e ativismo, conhecimento e crítica, é necessária a intersecção dialética entre as esferas, mediante a autocrítica do distanciamento hermenêutico que o “sujeito sujeitado” realizaria.
Referências
FREITAS, Weiny. As ciências humanas em questão. Revista Badaró. 12 jun. 2020. Disponível em: https://www.revistabadaro.com.br/2020/06/12/as-ciencias-humanas-em-questao/. Acesso em: 03 jul. 2022.
RICŒUR, Paul. Ciência e Ideologia. In: RICŒUR, Paul. Interpretação e ideologias. Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 63-95.
WOLFF, Francis. O homem estrutural: o “sujeito sujeitado”. In: WOLFF, Francis. Nossa humanidade: de Aristóteles às neurociências. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012. p. 69-105.
[1] Mestra em Filosofia (UNIFESP). E-mail: unifesp.amanda@gmail.com
O artigo é o 14º da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.
- O padrão da propaganda fascista, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/15/o-padrao-da-propaganda-fascista/.
- Até que ponto tolerar?, de Natasha Garcia Coelho e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/29/ate-que-ponto-tolerar/.
- Como compreender a identidade?, de Luana Medeiros de Sá Lucas, Alberto Mesaque e Jeferson Camargo Taborda, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/05/como-compreender-a-identidade/.