[Coautores: Weiny César Freitas Pinto[1]e Lucas Ferraz Córdova2]
Existe algum conhecimento não ideológico? Será que a ideologia também está presente nas ciências? O filósofo francês Paul Ricœur (1913-2005) estabelece uma reflexão em sua obra Interpretação e Ideologias (1990) que responde a essas questões. O fato é: não existe conhecimento sem ideologia, logo, também a ciência é ideológica. Independentemente de sua natureza epistemológica (relativista ou dogmática), todas as teorias e ciências comportam conteúdo ideológico, e negar esse fato não é uma saída promissora e nem mesmo necessária, pois, segundo o filósofo, embora a ideologia tenha aspectos negativos – a dominação e a dissimulação –, ela também possui aspectos positivos: a mediação e a integração social.
Segundo essa perspectiva, quando uma ciência nega o seu conteúdo ideológico, verificam-se duas armadilhas: 1) ela detém-se apenas em seu poder explicativo e/ou 2) ela pretende-se uma ciência sem sujeito. Assim, alegar exclusivamente o grande poder explicativo de uma ciência não é garantia de sua cientificidade, isso é uma armadilha epistemológica, uma vez que leva a crer que o fenômeno da explicação é isento de subjetividade. Ora, excluir a subjetividade do poder explicativo de uma ciência é promover uma epistemologia sem sujeito, é supor que o cientista está isento de qualquer viés; e aí está a segunda armadilha, pois um discurso sem sujeito se apresenta como sofisma (argumento falso cuja finalidade é persuadir, em vez de dizer “uma verdade”) e leva a um enfraquecimento dos critérios de falseabilidade, constituindo, portanto, um dogma (RICŒUR, 1990).
Mas como evitar essas duas armadilhas epistemológicas? Queremos propor que a análise do comportamento (AC), abordagem da psicologia ancorada no behaviorismo radical (BR), pode auxiliar-nos nessa tarefa.
Na atualidade, pode-se afirmar que muitas coisas são oriundas das ciências, por exemplo, o computador, a lâmpada, a massa de tomate, os métodos didáticos da escola, entre outras incontáveis invenções. Construir metodologias, tecnologias, entre outros suportes importantes para a vida humana, requer um conhecimento sistematizado e seguro. Nas ciências psicológicas, por exemplo, há a construção de diferentes abordagens e epistemologias, isto é, diversas justificativas que sustentam determinados modos de produção de conhecimento (FIGUEIREDO, 1991).
Conhecimento é “uma crença verdadeira e justificável”, afirma a clássica definição de Platão. Logo, a epistemologia, que é o estudo acerca da natureza do conhecimento, possui grande importância para o desenvolvimento das ciências, pois cabe a ela analisar e sustentar justificadamente as afirmações científicas, ou seja, indicar evidências e confirmações de um determinado objeto ou fenômeno (CID; MARQUES, 2020). A justificativa pode se dar a partir de dois eixos. O primeiro é o eixo da evidência, que possui caráter objetivo e, por ser assim, faz com que os objetos do conhecimento sejam capturados tais como são, focalizando no sensível (cinco sentidos) e não no perceptível (interpretação/integração do que foi sentido) (ABBAGNANO, 2007). O outro eixo é o da verificação, a confiabilidade, que, ao considerar as evidências a partir da sensibilidade humana, agrega a essa fonte de conhecimento elementos perceptivos, atribuindo padrões de confiabilidade aos processos cognitivos que deram origem às evidências. Um bom exemplo, que traz tanto a noção de confiabilidade como a de evidência, é o do termômetro, que mede por meio de métodos como a responsividade do mercúrio à variação térmica, a temperatura febril observada pela sensibilidade humana.
Isso posto, voltemos à nossa questão: como não cair naquelas duas armadilhas epistemológicas descritas por Ricœur (1990)? As estratégias de construção do conhecimento analítico comportamental, seja no campo empírico, seja na construção conceitual, apresentam soluções promissoras.
Referente à armadilha do “poder explicativo”, o conhecimento deve ter critérios de verificação. Na AC, a forma de verificabilidade se fundamenta no operacionismo, que estabelece as operações empíricas como elemento central na formulação conceitual. Assim, o operacionismo busca fazer com que o conceito científico afete todos os cientistas da mesma forma, garantindo uma interpretação única (BAUM, 2018). Por isso, Skinner prefere o termo “comportamento verbal” e não “linguagem”. O primeiro termo traz a compreensão de que a verbalização é um comportamento explicado a partir da relação entre o responder verbal e variáveis ambientais, históricas e presentes. Sendo assim, pode ser diretamente observado. Já o termo “linguagem”, por ser um termo inserido no discurso cotidiano, contempla uma variedade enorme de interpretações, podendo inclusive ser concebido como um fenômeno inato, como, aliás, faz Chomsky em sua teoria da linguagem para distanciar-se do behaviorismo (GLENDAY, 2010). O problema é que isso gera confusões especialmente quando o termo é muito difundido e proporciona entendimento múltiplos, próprios de uma “língua viva”, ou seja, sofre variação ao decorrer do tempo e dos campos sociais nos quais estão inseridos (COSTA, 1996).
Além do operacionismo, a AC também se fundamenta na verificação por meio das replicações experimentais. Ela não trabalha com as concepções de causa e efeito, e sim de identificação de regularidades e padrões comportamentais a partir da frequência com a qual a ação acontece, facilitando assim a possibilidade explicativa e verificativa. Essa verificação se apoia na variação da ordem apresentada de um comportamento específico, isto é, os organismos possuem padrões comportamentais aprendidos, mas esses padrões são mutáveis; este detalhe possibilita observar a frequência com que uma reposta está sendo emitida no ambiente. Por exemplo, uma pessoa sempre dirigia tranquilamente um carro para ir ao trabalho, porém, após se acidentar, percorrendo o mesmo trajeto, passa a evitar dirigir por medo de acontecer novamente. Nesse caso, constata-se a variação de um padrão comportamental antes estabelecido, logo, a AC vai se deter nessas variações da frequência de uma ação específica.
Temos acima um exemplo da variação comportamental de um sujeito. E o fato de alguns dos experimentos acontecerem com poucos sujeitos, apesar de seus limites para a generalização, não significa que é infrutífero, pois as leis que regem os comportamentos são semelhantes para todos os organismos (rato, pessoa, pássaro), por isso as replicabilidades dos trabalhos são de suma importância (CHIESA, 2006). Dessa forma, constata-se que a possibilidade de verificação na análise do comportamento nos auxilia a desviar da primeira armadilha epistemológica indicada por Ricœur, pois as hipóteses de pesquisas são postas à prova da verificação e da refutabilidade.
A respeito da segunda armadilha epistemológica – o fetiche de uma ciência sem sujeito, como se o pesquisador fosse isento de ideologias –, a saída apontada pela AC se baseia na sua proximidade com o pragmatismo, corrente de pensamento que se baseia na instrumentalidade do conhecimento, não partindo da concepção de verdadeiro ou falso, mas sim de ideias que possam ser mais ou menos verdadeiras, a depender da vantagem que proporcionam (BAUM, 2018). Desse modo, Skinner se distancia de uma concepção realista de mundo, buscando no pragmatismo o fundamento epistemológico da AC. Isso facilita que a teoria seja discutida pelo viés do resultado prático, o que necessariamente implica a existência ideológica de um sujeito.
Este ensaio não defende que a AC seja o principal método ou a melhor abordagem psicológica, apenas quisemos mostrar que ela é uma opção promissora para responder ao problema da dupla armadilha epistemológica apresentada por Ricœur. A análise do comportamento produz resultados que não se apoiam somente no “poder explicativo” das teorias, recorrendo ao verificacionismo e, ao mesmo tempo, não desconsidera a existência do contexto ideológico do sujeito pesquisador.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, v. 4, 2007.
BAUM, William. Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Artmed Editora: Porto Alegre, 2018.
CID, Rodrigo Reis Lastra; MARQUES,Luiz Helvécio Segundo. Textos selecionados de epistemologia e filosofia da ciência. [Recurso eletrônico] Pelotas: NEPFIL Online, 2020.
CHIESA, Mecca. Behaviorismo radical: a filosofia e a ciência. Brasília: Celeiro. 1ª Edição, 2006.
COSTA, Vera. A importância do conhecimento da variação lingüística. Educar em Revista. [online] 1996, n. 12, pp. 51-60. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0104-4060.157.> Acesso em: 9 jul. 2022
GLENDAY, Candice. Chomsky e a linguística cartesiana. Trans/Form/Ação. Marília, v.33, n.1, p. 183-202, 2010. Disponível em:< https://www.scielo.br/j/trans/a/678sSgk7YYdhkhJt4kxqsPq/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 11 jul. 2022
FIGUEIREDO, Luis. Matrizes do pensamento psicológico. Rio de Janeiros: Editora Vozes, 20ª edição, 1991.
RICOEUR, Paul.Ciência e ideologia. In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990.
[1] Professor do curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: weiny.freitas@ufms.br
2 Professor do curso de Psicologia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: lucas.cordova@ufms.br
O artigo é o 15º da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.
- O padrão da propaganda fascista, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/15/o-padrao-da-propaganda-fascista/.
- Até que ponto tolerar?, de Natasha Garcia Coelho e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/29/ate-que-ponto-tolerar/.
- Como compreender a identidade?, de Luana Medeiros de Sá Lucas, Alberto Mesaque e Jeferson Camargo Taborda, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/05/como-compreender-a-identidade/.
- Pesquisadores e/ou ativistas, de Pedro H. C. Silva e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/12/pesquisadores-e-ou-ativistas/.