O quinto episódio da terceira temporada de Monty Python’s Flying Circus, que está disponível na Netflix brasileira, traz uma peça, em sua singularidade, genial. A esquete reproduz uma espécie inusitada de gincana de programa de auditório: The All-England Summarize Proust Competition, ou, em vernáculo, “O Campeonato Inglês de Resumir Proust”.
Os participantes do quadro devem sintetizar Em Busca do Tempo Perdido no prazo de improrrogáveis 15 segundos. Aquele que chegar mais longe na história de Marcel, assim, será o vencedor da prova. Basta, para capturar o humor nonsense que é marca dos cômicos britânicos, dizer que a obra é divida em 7 volumes, os quais reúnem cerca de 4.200 páginas, que, por sua vez, totalizam em torno de 1.200.000 palavras. Monumental como a vida, o romance não é passível de síntese, como demonstrará o elenco pitoresco de competidores.
Por outro lado, à guisa de reflexão mais profunda, é preciso dizer que Em Busca… tematiza os variados efeitos do tempo e, no bojo do tempo, as idas e vindas da memória, verdadeira força motriz da narrativa – por assim dizer, a personagem mais cara ao enredo. Proust, nesse sentido, trata de ensinar que a memória condiciona o tempo ao espírito de quem a armazena, pois não há passado sem lembrança. Esta, a seu turno, raras vezes condiz com a realidade dos fatos, sendo um produto humano por excelência, suscetível às sensações do momento e, por isso mesmo, acionada pelos gatilhos mais insuspeitados e íntimos – um cheiro, um sabor ou um som específico é capaz de despertar o turbilhão sentimental impiedoso que é rememorar o que já passou.
Ora, de volta à esquete do Monty Python, diga-se que resumir é submeter o todo às suas partes mais significativas, segundo as quais ele estará representado de maneira geral. Em última análise, é justamente encargo da lembrança pinçar tais excertos, sob maior ou menor arbítrio de quem resume. A memória tem o condão de condensar as experiências vividas em um ou dois pontos que, enganosamente ou não, sintetizam-nas – e é esse um dos aspectos fatais da “equação proustiana”, como quis Samuel Beckett.
Pois bem. O primeiro dos participantes do Campeonato Inglês de Resumir Proust é um caxias, que, dada a largada à sua performance, alonga-se num introito de 14 segundos a respeito dos principais temas de Em Busca… com rigor acadêmico. Todavia, sobrando-lhe um segundo para adentrar de fato a obra, só consegue dizer “No primeiro volume, Swann, o amigo da família…”, quando soa o gongo e o “proustômetro” revela seu fracasso: em que pese a verborragia, resumiu apenas uma página do primeiro livro do romance.
Ato contínuo, tudo indica que o competidor seguinte é desleixado. Em sua vez, esquece-se do que dizer e, nervoso, resta-lhe balbuciar coisas, aparentemente, sem nexo, como “Swann! Tem uma casa e… é de manhã!”, para continuar com “Não! É de noite… e tem um jardim. E um cara entra…”, arrematando com “Qual era o nome dele? Acabei de dizer!” Para grande surpresa e humor, finalizados os 15 segundos, revela-se que o homem desmemoriado teve capacidade de resumir três volumes inteiros da obra de Marcel Proust. Com efeito, o método dele fora o mais natural de todos – porquanto limitara-se àquilo que efetivamente permanecera em sua lembrança automática. É o mais bem-sucedido da competição, portanto. Essa personagem mostra a profusão de significados da esquete, razão pela qual é singular e genial. Talvez o que despertou-lhe fora o barulho do sino que dera início à sua performance, e dali jorrou-lhe a memória involuntária do que havia lido no romance, ao passo que a madeleine mergulhada em chá reverbera no protagonista de Em Busca… sua infância em Combray. Como não houve espaço e tempo de elaborar e organizar as lembranças tão bem quanto o francês manejou na obra, ficou o procedimento representado em 15 segundos e alguns termos gaguejados, e não em 4.200 páginas e 1.200.000 palavras eloquentes.
É lícito dizer que o Monty Python, em 1972, levou Marcel Proust à época do TikTok ou dos stories de qualquer rede social. A afirmação dá azo a nova consideração, a respeito da eternidade da memória de Em Busca… e a absoluta impermanência do passado na pós-modernidade.
Todavia, o leitor, quem sabe, queira assistir ao terceiro e último competidor que irá resumir o monumento proustiano, um grupo de coral de Bolton. Adianta-se que, ao final do campeonato, o mestre de cerimônias fica muito insatisfeito com todos os participantes, que não chegaram sequer à metade da tarefa proposta. Resolve, então, entregar o troféu à mulher de maiores seios presente no auditório.
Muito divertido.
Se, de acordo com Paulo Manoel, o Monty Python, em 1972, levou Proust pro Tik Tok, provavelmente o TiK TOK agora deixou o humor do grupo sofisticado demais, pra mim pelo menos , digo. Lembro de na minha adolescência correr pro cinema do Cine Ouro pra assistir ao filme ” O Sentido da Vida,” do MP, sem conseguir, pois, com a morte repentina do Henry Fonda, tinham colocado “Num Lago Dourado” no lugar. Agora cato essa sugestão maravilhosa de “Monty Python’s Flying Circus”. Obrigada.