[Coautores: Alberto Mesaque Martins[1]e Zaira de Andrade Lopes[2]]
O feminismo tem produzido não apenas uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimento científico, como também propõe um modo alternativo de operação e articulação nessa esfera.
Margareth Rago (2019)
As reflexões propostas neste ensaio visam refletir acerca das contribuições da teoria feminista para a produção de conhecimento em psicologia no campo das políticas públicas. Como profissional inserido no campo das políticas públicas da assistência social, fui responsável pelo acompanhamento do extinto Programa Bolsa Família, em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), de Campo Grande – MS. Naquele período, além de realizar alguns atendimentos, desenvolvi oficinas e palestras para as famílias beneficiadas, momento em que comecei a questionar: por que somente mulheres participavam? Por que apenas mulheres se responsabilizavam por suas crianças não terem a frequência necessária de presença escolar? Por que somente mulheres precisavam dar conta de explicar os gastos do benefício?
Apesar de avanços, ainda hoje, no Brasil, a formação de novas psicólogas e psicólogos encontra-se marcada por representações que contribuem para que a ciência psicológica esteja vinculada às práticas individualizantes e adaptativas. Tais práticas visualizam o sujeito como natural e individual, caracterizado com o comportamento causado e explicado por processos psicológicos resultantes da constituição biológica. Essa concepção sobre o fazer “psi” é reforçada por formações acadêmicas pautadas em teorias que desconsideram as implicações históricas, políticas e culturais sobre a subjetividade.
Na concepção de Maria da Graça Gonçalves (2010), no Brasil, a psicologia inicia sua trajetória no campo das políticas públicas através da educação e da saúde. Nessa inserção, foi tomada como auxiliar dessas áreas, especialmente a partir da produção de diagnósticos que, quando construídos de forma acrítica, naturalizam os fenômenos psicológicos e contribuem para práticas de adaptação dos indivíduos. Para Ana Bock (1997), esses conceitos de naturalização e adaptação estão vinculados a práticas psicológicas que priorizam a técnica para somente adaptar o homem e a mulher ao meio social, na redução do sofrimento e reconduzi-los ao modelo original do qual se desviaram. Bock (1997) ainda diz que, ao adaptar o indivíduo, as práticas psicológicas se caracterizam como uma ideia de ajuda ao próximo na finalidade de adaptá-lo à busca de felicidade e equilíbrio, impondo à(ao) profissional a tarefa de adaptar “o desregulado” aos padrões impostos. De acordo com essas concepções, as finalidades sociais e políticas estão distantes tanto da atuação profissional quanto da formação subjetiva dos indivíduos.
Desde o final do século XX, em meio ao processo de redemocratização do país, a psicologia vem sendo tensionada a repensar o seu papel social e refletir sobre a necessidade de apresentar-se como instrumento para a transformação social. Ainda segundo Gonçalves (2010), nesse momento articulam-se novas práticas e novos referenciais teóricos que possibilitam uma visão emancipadora e contribuem para a formação de consciência crítica. Ao longo dos seus 60 anos de profissão regulamentada no país, autoras como Ana Bock e Sílvia Lane vêm alertando para a importância da construção de uma atuação pautada no compromisso social, bem como para a necessidade de rompimento com as práticas individualizantes, adaptativas e naturalizantes, como aquelas desenvolvidas especialmente nos primeiros anos da profissão. Esse desafio torna-se ainda mais complexo ao se considerar o campo das políticas públicas que, nos últimos anos, vem se constituindo como um dos principais espaços de trabalho da psicologia. Tal complexidade se dá justamente por essa diversidade do campo em lidar com as concepções dos sujeitos, que, nas diversas formas de atuação, reproduzem ou não o paradigma expresso acima.
O reconhecimento da(o) profissional de psicologia no campo da política de assistência social se deu em meio ao período de reconhecimento de novas possibilidades de pensar os sujeitos, pelo trabalho com grupos e com os estudos da relação do indivíduo com a sociedade. Somente em 2005, com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), é que a psicologia foi reconhecida como parte integrante e básica das equipes de referências dos equipamentos de assistência social. Com isso, pensou-se estratégias que pautaram a atuação profissional distante da prática clínica e a necessidade de rompimento com a visão naturalizante dos sujeitos. Tais estratégias foram normatizadas em documentos, sendo um dos principais a “Referência Técnica para a atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS”, de 2007.
Ao passo que retomamos a nossa problemática inicial, sabe-se que, no modelo de sociedade vigente, a visão natural da mulher ainda predomina em diversos discursos que transitam desde o senso comum até o ambiente acadêmico, científico e profissional. Essa visão é marcada por conceber a mulher como a responsável pelo espaço doméstico, de cuidados com o lar, com os filhos, companheiros e demais familiares, como mediadoras de conflitos e da educação dos filhos, com a possibilidade de trabalhar fora de casa, mas ainda sim ter que ser a responsável por toda a organização. Tais visões e concepções de mulher são tão naturalizadas que atuações profissionais não conseguem se desfazer dessa lógica.
As autoras Silvana Mariano e Cássia Carloto (2009) ressaltam que as ações desenvolvidas através das políticas de assistência social muitas vezes acabam reforçando os papéis tradicionalmente ocupados pelas mulheres dentro do ambiente familiar. Nesse sentido, aliada às jornadas duplas de trabalho, à desigualdade salarial, aos abusos morais e sexuais, é recorrente que as mulheres continuem sendo cobradas como as principais responsáveis pelas tarefas domésticas, assim como pelas adversidades vivenciadas na família. Diante desse cenário, marcado pelo patriarcado, a teoria feminista e os estudos de gênero vêm se revelando como importantes aportes epistemológicos capazes de produzir reflexões para um novo fazer em psicologia.
Margareth Rago (2019) considera que é necessário prestar atenção ao que se propõe o projeto feminista de ciência, pois, na tentativa de romper com a produção científica dominante – predominantemente masculina –, o feminismo é proposto como participante crítico da cultura, da teoria e das concepções de verdade que se apresentam.
Estudos apontam que, na primeira metade do século XX, o movimento feminista se firmou como um dos mais importantes movimentos sociais da contemporaneidade. O movimento provocou debates, questionamentos e criou modelos teóricos que buscam compreender as relações sociais, ou seja, os processos identitários de constituição dos femininos e masculinos. E nesse sentido é possível destacar que diferentes campos das ciências precisaram rever bases epistemológicas, especialmente o campo da psicologia.
Denise Rodrigues Prehn e Simone M. Hüning (2005, p. 66) salientam que:
No que diz respeito especificamente a esta ciência [psicologia], seu impacto tem sido bastante significativo, provocando revisões de suas metodologias e conceitos, e levando a novas formas de abordar cientificamente os sujeitos e suas relações.
Desse modo, o movimento feminista, além de proporcionar conquistas de direitos sociais – direito ao voto, leis específicas, políticas públicas etc. –, assegura a inserção de mulheres na produção de conhecimento. A construção de conhecimento pela teoria feminista visa contar a história das mulheres na busca de compreender as origens de crenças, valores e práticas opressivas, desclassificatórias e estigmatizantes (RAGO, 2019).
Tais estudos, críticas e construções teóricas foram caracterizados como uma epistemologia feminista, que propõe a investigação do papel de gênero nas produções de conhecimento, considerando que existe um preconceito com a produção feminina, que é sempre minimizada nas áreas do conhecimento, sendo as experiências das mulheres esquecidas e apagadas, assim como as questões de relações de gênero. Desse modo, a proposta dessa epistemologia está no questionamento e na explicação desses preconceitos (KETZER, 2017).
Para essa epistemologia, a(o) cientista é inserida(o) no mundo do objeto com a sua particularidade e, utilizando de diálogo crítico, altera teorias e hipóteses, apontando outros pontos de vista, sem a pretensão de se tornar a única possibilidade de interpretação (RAGO, 2019). Angela Arruda (2002) salienta que a epistemologia de uma teoria feminista realiza uma crítica ao binarismo estabelecido na ciência, afirmando outras dimensões na construção do saber, tais como: subjetiva, afetiva e cultural. Além disso, a autora afirma que a teoria feminista propõe o conhecimento entre relações – tema/objeto e seu contexto. No caso do gênero, é preciso considerar as relações de poder, da subjetividade e do saber concreto.
Na construção de pesquisas com recortes em gênero, Joan Scott e Judith Butler são duas pesquisadoras que se destacaram entre os estudos de gêneros no país. Tais pesquisadoras suscitam reflexões sobre o papel da construção da mulher que são elementos importantes na reflexão da prática com essas mulheres. Scott (2019, p. 67) define gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Assim, entende-se que a categoria gênero é uma construção social que se desenvolve a partir da atribuição de significados aos elementos e características que constituem os sentidos do ser masculino e do feminino. Para Butler (2019), o gênero se constitui em uma performatividade, na qual não podemos pensar na constituição imutável, ou seja, não se “é algo” definido, mas se caracteriza pelo movimento – performance – que surge na relação com momentos históricos e sociais nos quais o sujeito está inserido.
Tais apontamentos das autoras nos ajudam a refletir sobre o que se espera das mulheres, qual mulher a política de assistência social quer atender em seus equipamentos e, principalmente, como a política de assistência social contribui para a transformação social das mulheres na sua vida cotidiana. Assim, destacamos que o aporte teórico feminista propõe: estudar a experiência subjetiva dos sujeitos e grupos marcados pelas suas relações em sociedade; promover novos diálogos; discutir as relação binárias existentes; estabelecer propostas emancipatórias; não construir uma verdade universal. Cabe ressaltar que a proposta não consiste em estabelecer metodologias sentenciadoras de verdades, mas de tensionar o campo a aprofundar aquilo que foi esquecido e fazer surgir assim novas possibilidades de conhecimentos, de vivências, de experiências.
A proposta de ampliar a discussão sobre os estudos de gênero e de mulheres dentro da especificidade da política de assistência social é de caráter fundamental para a superação das vulnerabilidades produzidas pelas discriminações. Não se fala somente de acesso a benefícios e renda, mas sim de aquisições subjetivas que promovam a garantia de direitos, autonomia e empoderamento, lugar propício para a atuação profissional da psicologia.
Referências
ARRUDA, Angela. Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 127–147, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/T4NRbmqpmw7ky3sWhc7NYVb/abstract/?lang=pt. Acesso em: 04 abr. 2022.
BOCK, Ana Mercês Bahia. Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 17, n. 2, p. 37–42, 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/8wMf9sFXZtQcdnY5xvMVpsF/?lang=pt. Acesso em: 21 jul. 2022.
BUTLER, Judith. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução de Pê Moreira. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
GONÇALVES, Maria da Graça. Psicologia, subjetividade e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2010.
KETZER, Patricia. Como pensar uma epistemologia feminista? Surgimento, repercussões e problematizações. Argumentos Revista de Filosofia, Fortaleza, ano 9, n. 18, p. 95-106, jul./dez. 2017.
MARIANO, Silvana Aparecida; CARLOTO, Cássia Maria. Gênero e combate à pobreza: programa bolsa família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, p. 901–908, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/8MqwKGBKhNYpn4C4gss5Rkm/abstract/?lang=pt. Acesso em: 03 abr. 2022.
PREHN, Denise Rodrigues; HÜNING, Simone M. O movimento feminista e a psicologia. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 42 p. 65-71, jul./set. 2005.
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
[1] Psicólogo, doutor em Psicologia, professor adjunto do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PPGPsico da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: alberto.mesaque@ufms.br
[2] Psicóloga, doutora em Psicologia Social, professora associada do curso Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PPGPsico/UFMS. Coordenadora do grupo de Estudo Genpsi – Gênero e Psicologia e Grupo de Estudos e Pesquisa em Aspectos Psicossociais, históricos e culturais na constituição da subjetividade – GEPAHCS, vinculado ao Diretório do CNPq. E-mail: zaira.lopes@ufms.br
O artigo é o 16º e último da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.
- O padrão da propaganda fascista, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/15/o-padrao-da-propaganda-fascista/.
- Até que ponto tolerar?, de Natasha Garcia Coelho e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/29/ate-que-ponto-tolerar/.
- Como compreender a identidade?, de Luana Medeiros de Sá Lucas, Alberto Mesaque e Jeferson Camargo Taborda, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/05/como-compreender-a-identidade/.
- Pesquisadores e/ou ativistas, de Pedro H. C. Silva e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/12/pesquisadores-e-ou-ativistas/.
- Um possível desvio de armadilhas epistemológicas, de Larissa dos Santos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Lucas Ferraz Córdova, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/11/19/um-possivel-desvio-de-armadilhas-epistemologicas/.