Da janela do seu apartamento, as venezianas abertas numa noite de calor tíbio, eu olhava para o lado de fora através das frestas e via as luzes acesas em dezenas de postes e janelas de edifícios espalhados pela elevação do terreno, e, mais distante, a rodovia com a sua silhueta magra, sobre a qual os faróis intermitentes dos veículos passavam como serpentes de fogo, de um lado para o outro, e cujos motoristas talvez buscassem um travesseiro metafísico – aquele no qual desejamos sonhar o começo e o fim das coisas.
Essas luzes e a paisagem noturna que eu descortinava a partir da janela do terceiro andar aberta na direção sul, tudo somado, requeriam um observador mais perspicaz – não a descrição desfocada de um cronista meio cego e meio sem jeito, um aprendiz que tateia as nádegas do gênero.
Com admiração e inveja, pensei então em Hopper, o mestre dos espaços abertos e enclausurados, dos tons escuros, mas por vezes solares e aveludados, das mulheres solitárias que observam o exterior. Como um poeta das descrições da intimidade e da singeleza das paisagens norte-americanas, Hopper nos ensinou a enxergar as formas de outros ângulos. A sua geometria não erra.
Na poltrona onde me encontrava, de onde nutria por meio dessas frestas o mundo esquivo lá fora, via também em volta de mim a leveza clean dos móveis, a taça de vinho tinto repousada sobre a mesa de centro à minha frente, enfim, o excesso de cordialidade que imantava a superfície dos objetos que povoavam a sala – e sentia enorme prazer de ouvir a música que o aparelho derramava delicadamente.
Logo depois, o meu devaneio foi quebrado pela mulher que anunciou com a sua voz macia e levemente rouca, ao mesmo tempo em que aparecia na sala:
“É hora de trocar de roupa, baby. Em um minuto, estarei pronta.”
Depois que o seu aviso tirou-me da féerie, a minha atenção foi agora envolvida pelo calor de sua voz. Respondi como se fosse uma personagem de novela:
“Quinze minutos, só isso, e trate de aparecer bem bonita!” – brinquei, como se eu não soubesse há muito tempo que a sua graça tinha a atração das divas eróticas de Milo Manara.
Ali na sala, enquanto procurava imaginar a realidade e a fantasia de Hopper, admirava o vaso de flores que estava em cima do aparador e pensava, sem confiança no raciocínio, que uma casa estará sempre salva do escárnio se tiver gerânios, num belo vaso, respirando em algum canto.
A música que vinha das caixas mesclava o encontro de virtuoses, o disco que só os amantes de jazz sabem cultivar: Thelonious Monk e John Coltrane em concerto no Carnegie Hall, em novembro de 1957. Não se sabe por qual mistério essa gravação ficou desaparecida durante várias décadas e, por acaso, foi redescoberta na década de 1980.
Como que para quebrar a minha atenção, lá do fundo do apartamento, gastando o seu francês, ela anunciou que estava terminando de se arrumar.
“Trois minutes, si tant!”
Quando ouvi a resposta, fiquei rindo porque toda aquela situação só me lembrava mais ainda de Hopper, como se eu tivesse sido transportado para dentro de uma de suas telas. Entre a música e o panorama que continuava estimulando a minha visão lá fora, eu levei a taça mais uma vez aos lábios.
Naquele momento, ninguém era mais feliz e merecia tanto essa dádiva noturna.
Depois de Blue Monk, ela surgiu do fundo do apartamento e perguntou, sem mais delongas, em pé no corredor, devolvendo-me à noite que enfim nos esperava lá fora, com todas as suas ameaças, surpresas e alegrias:
“Estou bonita?”
Tomei o último gole do vinho e saímos de mãos dadas, apalermados pela sexta-feira que nos redimia de todos as angústias da semana.