Entre os anos 1999 e 2000, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) ministrou um curso de sociologia da arte, tendo como personagem central o pintor Édouard Manet (1832-1883).
Foi uma série de 18 aulas-conferência realizadas no Collège de France (nove aulas em cada ano, concentradas nos meses de janeiro, fevereiro e março), cujo conteúdo resultou no livro Manet – une révolution symbolique, publicado postumamente em 2013 (inédito no Brasil).
Com espírito de tendência revolucionária, Bourdieu desenvolveu técnicas e métodos e criou conceitos que influenciaram sociólogos das gerações seguintes em várias áreas de pesquisa, como educação, comunicação, política e cultura.
Ele escreveu livros importantes para o meio que se tornaram clássicos da sociologia da cultura, e, no começo da década de 1990, passou a focar seu interesse especificamente no campo da arte e da política. Suas aulas-conferências sobre política, no Collège de France, em Paris (1989-1992), se tornaram célebres e resultaram no livro Sobre o Estado.
O mesmo aconteceu com as aulas-conferências sobre Manet. Bourdieu pensava em publicar este livro ainda em vida, mas faleceu antes de concluir a empreitada, em 2002, vítima de câncer no pulmão.
Nada do que fez nesta longa e densa série de conferências, no entanto, foi em vão. Ele tinha consciência e clareza do que queria. Em 1992, publicara As regras da arte, para analisar e “compreender a gênese social do campo literário, da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que aí se joga, dos interesses e das apostas materiais ou simbólicas que aí se engendram”.
Com Manet, Bourdieu ampliou o escopo e garantiu a sistematização do campo artístico inteiro. A presente leitura é baseada na tradução para o inglês feita por Peter Collier e Margaret Rigaud-Drayton, Manet: a symbolic revolution (Cambridge: Polity Press, 2017, 576 páginas).
Na abertura do primeiro texto (primeira aula-conferência, portanto), Bourdieu já é categórico com seu propósito de falar sobre uma revolução bem-sucedida, iniciada por Manet, na metade dos anos 1860. “O que pretendo fazer é nos ajudar a entender o significado da revolução em si, nos mínimos detalhes, e das obras que provocaram esta revolução.”
Os detalhes não serão contemplados aqui com a dedicação que exigiria o sociólogo francês, obcecado por dados minuciosos das condições sociais do campo que analisa. Contudo, o volume de questões que ele levanta é tão espesso que os assuntos cruciais com os quais nos ocuparemos bastarão.
O primeiro desses assuntos é a revolução em si, que, por ocorrer no espaço simbólico, interconectando-se, portanto, nas relações sociais, na linguagem, no sentimento estético e na maneira de olhar para as coisas, ao ser conflagrada, estabelece novas estruturas cognitivas que vão se tornando invisíveis à medida que vão sendo assimiladas por todos os sujeitos num dado universo social.
Segundo Bourdieu, “nossas próprias categorias de percepção e julgamento – aquelas que usamos ordinariamente para entender as representações do mundo e o mundo propriamente – foram criadas por esta revolução simbólica”.
Não custa nada lembrar que, apesar de Bourdieu falar de mundo e sociedade, há aí um olhar lançado para as coisas do Ocidente, para a sociedade ocidental, mais particularmente, a francesa. E o campo artístico que se cria, levando em conta público, mercado, estética, as interações, as competições, as consagrações, é a construção metodológica da própria sociologia de Bourdieu.
Deve-se levar em conta também que no século XIX tudo estava sendo reorganizado, e a maior parte desta reorganização nascia com os novos paradigmas científicos originários na Europa, muitos dos quais, na própria França, como o nascimento da sociologia com Auguste Comte, ainda com o viés positivista, e a organização estrutural da medicina, analisada por Michel Foucault em O nascimento da clínica.
Rompendo as fronteiras
O mundo das artes também estava se movendo. Bourdieu então percebeu que poderia usar a sociologia para estudar esse mundo de modo diferente do que já haviam feito outros sociólogos, filósofos, historiadores e críticos literários.
O foco na produção de Manet se dá justamente porque o pintor de fato mudou a maneira de ver a obra de arte, cuja visão foi devorando o mundo em todos os cantos, fazendo os interesses girar em torno de um campo artístico estruturado de modo diferente do que existia. O olhar foi comprometido pela revolução, ou, para ser mais preciso, o olhar é a própria revolução.
A ideia de que a essência da estética é a transgressão, por exemplo, nasceu com a obra de Manet. Outra coisa criada por ele, que hoje é comum no universo da arte, não só das artes visuais, mas da literatura e do cinema, é o procedimento de inserir erros intencionais numa composição artística, os solecismos.
No quadro Almoço na relva (1862–1863), Manet causou transgressões e intencionais confusões de linguagem aos montes. Segundo Bourdieu, o artista rompeu as fronteiras de gênero, misturando as concepções conservadoras de arte maior e arte menor (esta, pertencente ao reino da natureza-morta, paisagens e imagens populares).
Manet colocou nesse quadro “um tipo de pastoral erótica, tema inferior por definição”, mas que poderia ser compensado pela elegância e pelo charme dos personagens. “No entanto, os personagens de Almoço na relva também são feios”, diz Bourdieu.
Além disso, as dimensões da pintura ignoram fronteiras de gênero, impondo um tamanho de tela apropriado para a arte maior a um trabalho que se assemelha, por solecismos, a uma arte menor. As fronteiras, explica Bourdieu, são delimitações consagradas na linguagem da arte.
As fronteiras existem tanto na realidade social,
como no caso dos limites entre masculino e feminino, ou do solado da porta que marca o fora e o dentro de casa, quanto na realidade das divisões inscritas em nossa mente, que são divisões objetivas incorporadas e que tomam a forma de princípios de visão e divisão.
A ideia de fronteira foi quebrada na pintura de Manet. Quando seus quadros foram expostos no Salon des Refusés, em 1865, eles causaram um furor na crítica e em certo público de salão, que o chamaram de charlatão, mero copiador, plagiador, criador de pastiche.
Almoço na relva nasceu se parecendo com obras clássicas, mas não é igual a nenhuma delas, tudo é novo em sua abordagem. “Se considerarmos que isso tudo é um fato social total, o quadro é o começo de uma nova página na história porque põe tudo em dúvida, questiona tudo.”
O conceito de fato social total foi emprestado do antropólogo Marcel Mauss (1872-1950), presente no livro Sociologia e antropologia, cujo significado o próprio Bourdieu explica: “É qualquer fato social dado que contém todo o sistema de relações fundamentais para a sociedade do fato em questão”.
Napoleão III ficou pasmo
Quase toda a produção de Manet, desses anos inaugurais, chocou o público, pela proposta transgressora. Toda a linguagem da arte com a proposta de interferir na realidade nasceu com Manet. Sem ele, não haveria Picasso e o cubismo, não haveria Duchamps e sua proposta de eliminar o gosto da obra de arte, por exemplo.
Outro quadro que causou espécie na sociedade parisiense foi Música nas Tulherias (1862). Segundo Julian Barnes, até Napoleão III se manifestou, chamando a obra de “‘uma ofensa contra a decência’, enquanto sua consorte, a Imperatriz Eugénie, fingiu que o quadro não existia”.
A reprovação de Napoleão III fez o Salon des Refusés, onde houvera a exposição, ser fechado, e os artistas independentes ficaram 20 anos sem espaço público para expor suas obras.
Mas nenhum quadro despertou tanta ira e desgosto nos apreciadores de arte quanto Olympia, de 1863, que cutucou fundo no sentimento estético e, mais do que isso, no embasamento moral do conservadorismo, a ponto de o público se sentir ameaçado na ordem familiar.
Segundo Georges Bataille, em Manet – biographical and critical study, o público parisiense quis pegar em armas contra Manet, “não num momento de aberração, mas porque compreendeu lucidamente que aquela pintura profanava tudo em que acreditava”.
O quadro é composto por uma mulher nua, com as pernas sobrepostas, pele alva, reclinada numa poltrona de lençóis brancos e um xale dourado, em primeiro plano, olhando diretamente para o espectador, tapando o sexo com a mão esquerda; na mão direita, usa uma pulseira dourada; tem flores no cabelo, um cordão no pescoço e brincos nas orelhas; aos seus pés, um dos quais está calçando uma espécie de tamanco, há um gato preto; enquanto sua criada, negra, aparece logo atrás, vestida, segurando um cesto de flores, observando a ama com olhos de espanto e admiração.
O catálogo Delphi da obra de Manet (2016) explica que o que chocou a audiência da época nesse quadro não foi a nudez da mulher, nem a presença de sua criada completamente vestida, mas o olhar frontal e a série de detalhes que a identifica como uma prostituta, “incluindo a orquídea no cabelo, o bracelete, os brincos de pérola e o xale oriental sobre o qual ela se reclina, símbolos de riqueza e sensualidade”. Além disso, completa o texto, o nome Olympia estava associado a meretrizes, na Paris dos anos 1860.
É interessante notar que a ruptura de fronteiras demonstrada por Manet ganha a literatura em obras revolucionárias como Ulysses (1922), de James Joyce (1882-1941), que também explode na narrativa a ideia de alto e baixo, misturando técnicas de romancistas consagrados pela crítica com técnicas de romances populares da época, à medida que vai mudando de uma parte para outra no interior do romance.
Um universo infinito de detalhes
Ao longo de seu texto, Bourdieu vai levantando as questões da arte e da revolução simbólica feita por Manet, argumentando de modo abstrato, com conceitos e teorias, e de modo prático, apresentando exemplos do que foi realizado naqueles anos 60 do século XIX.
A revolução de Manet se deu sobre um ethos artístico que havia engessado o mundo da arte num ritmo monótono, numa harmonia circulante de intenções que não ofereciam saída para a criatividade: a estética pompier, ligada às instituições acadêmicas e ao gosto oficial.
Segundo Bourdieu, a Academia Real de Pintura e Escultura de Paris, fundada em 1816, tinha uma visão hierárquica do sistema artístico, e avaliava a qualidade de uma pintura a partir de critérios emprestados da literatura, como verossimilhança e unidade de ação, advindos das poéticas teatrais. Ou seja, as artes plásticas não tinham um regulamento interno de avaliação e criação.
A Academia era uma instituição puramente honorífica, composta por 40 membros vitalícios eleitos pelos pares. Era uma espécie de sol em torno do qual os ateliês giravam. E nos ateliês, os artistas aprendizes tinham de seguir rigidamente os ensinamentos dos mestres, que eram as figuras proeminentes de suas respectivas casas.
Desse modo, os novos artistas aprendiam todos as mesmas coisas, sem margem alguma para o novo. Entre os mestres da época havia nomes como Gustave Moreau (pintor), Jean-Léon Gérôme (escultor), William-Adolphe Bouguereau (pintor), Gustave Boulanger (pintor), cujas opiniões “eram amplamente emuladas”.
A estética pompier dominava os salões e, portanto, o gosto da sociedade francesa. Tudo se apresentava de modo simétrico, higiênico, sem qualquer sinal de boemia ou gestos fora de seu ethos.
Quem ingressava nos ateliês eram jovens artistas vindos do interior, de origem obscura, filhos de novos-ricos, dóceis e cabisbaixos o suficiente para aceitarem insultos, bullying e a disciplina rígida e engessante do meio aristocrático de Paris. Os parisienses pequenos-burgueses ou os filhos de famílias bem-nascidas se rebelavam contra tamanha violência simbólica, para usar um conceito caro ao próprio Bourdieu.
Manet, por exemplo, parisiense, era filho do chefe de pessoal do Ministério da Justiça com a filha de um diplomata lotado em Estocolmo, afilhada do futuro rei da Suécia. A juventude que revolucionou as artes plásticas na França girava em torno deste universo, como os colegas impressionistas de Manet, Edgar Degas (filho de banqueiro), Claude Monet (filho de comerciante, pequeno-burguês) e Paul Cézanne (filho de banqueiro).
Manet e a literatura
A literatura foi importante para Manet. Ele não só percebeu que o processo de criação literário estava mudando como estava-se criando uma nova estruturação estética e de poder em torno dela. Os agentes deste campo eram Gustave Flaubert, Charles Baudelaire, Théophile Gautier.
Ao decidir que mudaria seu jeito de pintar, deixando de copiar os mestres espanhóis que ele admirava, como Diego Velázquez (1599-1660) e Francisco de Goya (1746-1828), Manet passou a usar tintas puras, fortes, recriou o cotidiano, inserindo, como já foi dito, elementos que chocassem a moralidade e os princípios estéticos, além de executar pinceladas rápidas e livres no corpo da tela.
Segundo Bourdieu, o escritor realista Émile Zola (1840-1902), que acompanhara o início dessa revolução simbólica, publicou o romance A obra, de 1886, com base nas caraterísticas da pessoa e da obra de Manet, explorando assim “um intrigante enigma sociológico neste livro”.
A obra é o 14º dos 20 romances da série A saga dos Rougon-Macquart. As características do protagonista Claude Lantier foram compostas a partir de Manet, mas também trazem traços de Claude Monet, além do prenome.
A leitura do romance de Zola chamou a atenção de Bourdieu e o fez pesquisar todo o movimento artístico daquela época, colocando Manet no centro do campo. Em suas pesquisas, ele encontra um texto do então jovem poeta Stéphane Mallarmé (1842-1898), demonstrando identificação com o trabalho do pintor. Junto com Arthur Rimbaud, Mallarmé seria o grande responsável por uma revolução na linguagem poética, o simbolismo.
Quatro décadas depois, a revolução de Manet estava tão consolidada que mereceu citação em um dos romances mais importantes do século XX, também considerado uma revolução em seu campo, Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (1871-1922).
No terceiro volume da heptalogia, O caminho de Guermantes, o narrador diz. “Estive o outro dia com a grã-duquesa no Louvre e passamos pela Olympia de Manet. Agora ninguém mais se espanta com aquilo.”
Ou seja, as estruturas cognitivas estavam tão acostumadas que a novidade de outrora já havia se tornado invisível. O quadro Olympia está hoje no Museu d’Orsay, em Paris, mas entre 1907-1914, fez parte do acervo do Louvre.
Por esta ocasião, o campo artístico já estava consolidado na França, irradiando iluminação para outras geografias, como Nova York, que viria a ser, a partir do começo do século XX, a nova meca das artes, já levando em conta os aprendizados franceses de que “os artistas, críticos e marchands, que agem como árbitros de suas disputas internas, é que dão dinâmica ao próprio campo”.
Todo o material que Bourdieu usa para desenhar o campo artístico é de seu universo íntimo, da língua francesa, mas as estruturas do campo, os vetores, as orbitais como instrumento de análise, as pás que cavam o chão social para revolver laços antigos que esclarecem as intenções do artista, tudo isso é universal, tudo pode ser usado sobre qualquer lastro social.
Resenha editada do texto apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa, ministrada pelo professor Jordão Horta Nunes, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (Mestrado) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em novembro de 2021.