Em um artigo publicado originalmente em 1953 na revista Partisan Review, intitulado “Compreensão e política”, Hannah Arendt define a compreensão como um processo complexo, que não tem como objetivo chegar a resultados concretos e definitivos. Pelo contrário, o exercício de compreensão é uma atividade recorrente e interminável, cujas conclusões, sempre provisórias, estão sujeitas invariavelmente a novos questionamentos. Esse esforço, no entanto, embora possa parecer desanimador por nos proporcionar mais dúvidas do que umas poucas, e precárias, certezas, é o meio, conforme Arendt, por meio do qual “aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo”.
O processo de compreensão é infindável porque ele é a nossa maneira “especificamente humana” de estar vivos, uma vez que todos nós somos movidos pela premência de nos sentir em casa neste mundo em que nascemos como um estranho e assim permaneceremos, em nossa “inconfundível singularidade”. Assim, o processo de compreensão é o significado que buscamos para a vida ao longo dela, “à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos”. Nesse sentido, Arendt interpreta a prece de Salomão em que ele roga a Deus para lhe dar “um coração compreensivo” como o sinal da sabedoria política do rei bíblico que tinha consciência de que só a compreensão pode tornar suportável a convivência, neste mundo, com outras pessoas, todas elas carregando vida afora a sua inerente estranheza.
Procurando traduzir a linguagem bíblica, Arendt associa o dom do “coração compreensivo” pelo qual suplica o Rei Salomão à faculdade da imaginação. Diferente da fantasia, com seus devaneios que funcionam como uma válvula de escape da realidade, a imaginação atua, para usar as palavras do poeta William Wordsworth citadas pela autora, como uma “visão mais clara, a amplidão do espírito”. Pela imaginação, é possível ver as coisas em suas perspectivas próprias – ela nos põe a uma distância mais segura daquilo que está próximo demais para que possamos compreender suas implicações, livres de tendências ou preconceitos, e também nos permite transpor os abismos para alcançar e buscar entender o que se apresenta como muito longe de nós.
A imaginação é, desse modo, uma espécie de “bússola interna”, por meio da qual nos orientamos no mundo.
Em outro texto, este publicado postumamente e denominado Lições sobre a filosofia política de Kant, Arendt associa a imaginação, definida aqui por ela como o ato de tornar presente o que está ausente, à “mentalidade alargada” ou ao “pensamento alargado”, apropriando-se das definições de Kant na Crítica do juízo. Pensar com “mentalidade alargada” é pensar levando em consideração os pontos de vista dos outros. Essa forma de exercer a atividade de pensar consiste, aliás, na essência do pensamento crítico, porque, para que este possa se desenvolver, ele precisa se abrir às opiniões alheias. E a forma de fazer isso é imaginar, iste é, buscar tornar presentes para si, pela imaginação, os outros que estão ausentes fisicamente, movendo o pensamento em meio a esse espaço potenciamente público.
A atividade da mentalidade alargada, entretanto, não pode ser confundida com o ato de pura e simplesmente se curvar às perspectivas alheias, assumindo uma posição passiva diante dos outros. Arendt usa a metáfora de que o pensamento “sai em visita”, neste exercício do pensar alargado, justamente para reforçar a ideia de que usar a imaginar implica percorrer, viajar, passear por concepções e visões de mundo diferentes da nossa, e não tentar ocupar esses “lugares” pertencentes a outros. Caso contrário, estaremos apenas trocando os nossos preconceitos pelos preconceitos de outrem. A filósofa lembra que pensar, de acordo com a compreensão kantiana do Iluminismo, significa pensar por si mesmo, a máxima de uma razão nunca passiva. Para Kant, o preconceito equivale a tornar a razão passiva, e o Iluminismo representa precisamente a liberação do preconceito.
Em suma, o pensar alargado é procurar pensar visando alcançar aquela amplidão do espírito proporcionada pela imaginação, citada no início deste texto. Para isso, é preciso se libertar dos preconceitos e prejulgamentos próprios e alheios, dos interesses mesquinhos que nos aprisionam, para atingir essa amplitude. Por todos esses aspectos, ter um coração compreensivo, ou seja, exercer a atividade de compreensão, que requer o exercício do pensamento alargado e da imaginação, é, para Arendt, uma das mais altas qualidades do estadista.
No seu diário filosófico, a pensadora escreve, em uma anotação de setembro de 1953, que compreender, em política, “não significa jamais compreender o outro […] mas compreender o mundo da forma como ele aparece ao outro”. E completa: “Se há uma virtude (sabedoria) própria ao estadista, é a faculdade de considerar uma coisa sob todos os seus aspectos, quer dizer, de vê-la da maneira como ela aparece a todos que se interessam por ela”.
O estadista é, portanto, aquele que vê o mundo não a partir de uma única perspectiva, estreita e limitada. Mas que escuta, pensa e imagina abrindo-se à mais ampla pluralidade de pontos de vista possível e sempre tendo em vista o interesse público que diz respeito ao mundo em comum que todos compartilhamos.
Excelente texto
Lucidez!
Esperamos de Lula essa posição de estadista, já que o anterior foi na contramão do que esclarece Hannah Arendt: compreender o mundo da forma que ele aparece ao outro. Não é pouco, não é fácil, mas a tragédia da barbárie que tentou destruir nossa democracia e seus símbolos encontrou a esperança na fala de Lula aos governadores. Que venha o estadista, que a compreensão fortaleça a autocrítica tão necessária ao nosso amadurecimento político e social.