O texto a seguir é de autoria de Jean-Fabien Spitz, professor da Université de Paris I Panthéon-Sorbonne, publicado originalmente com o título Liberté, égalité, les soeurs ennemies?, na revista Sciences Humaines, em novembro de 2015, e traduzido por Rosirene Müller Salomão, graduada em Filosofia pela UFG, e Wagner de Campos Sanz, professor da Faculdade de Filosofia da UFG.
O princípio da igualdade é frequentemente percebido como um freio à liberdade individual. Erradamente, porque esquecemos que as desigualdades graves são obstáculos à possibilidade de que cada um possa se realizar livremente.
A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 proclamava: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Desde então, igualdade e liberdade frequentam os frontões das prefeituras francesas, as duas noções não parecem muito amigas, mas sim rivais. O debate político contemporâneo é frequentemente apresentado como um espectro de posições definidas pelas escolhas que as partes fazem quando se trata de arbitrar entre liberdade e igualdade. Esse espectro poderia ir desde um absolutismo da liberdade, afirmando que a capacidade de agir como se quer nunca deve ceder às exigências da igualdade, até um absolutismo da igualdade, afirmando que a igualdade é tão importante que permite todas as restrições indispensáveis à sua realização. De fato, ninguém defende realmente nem o anarquismo radical, ao qual seria preciso se submeter para satisfazer ao absolutismo da liberdade, nem a socialização integral das condutas, exigida para alcançar o absolutismo da igualdade. É preciso observar que temos a tendência, entre esses dois extremos, a situar as posições políticas de acordo com a importância que dão a um ou a outro desses dois valores.
Desse modo, nós postulamos que elas são não apenas diferentes, mas também incompatíveis e que elas variam necessariamente na razão inversa uma da outra. Os exemplos desse antagonismo são inúmeros. A igualdade de oportunidades em matéria de educação parece opor-se à possibilidade, para as famílias, de escolher o estabelecimento onde elas desejam escolarizar suas crianças. O Código do Trabalho e os acordos coletivos asseguram igualdade de tratamento dos assalariados pelos seus empregadores, mas eles restringem também a sua faculdade de negociar compromissos mútuos ao seu bel-prazer. A discriminação positiva, que tem por objetivo restaurar a igualdade de oportunidades para categorias desfavorecidas, obstaculiza a liberdade dos membros da maioria de ter acesso sem impedimentos a cargos e empregos a que aspiram. A tributação progressiva, que impõe maiores taxas sobre os maiores rendimentos, assegura certa redistribuição dos recursos, mas restringe a liberdade de acumular fortunas significativas através do trabalho ou da herança. A igualdade de acesso à saúde pressupõe certa restrição da possibilidade de recorrer ao setor médico privado.
Uma política econômica que privilegie a igualdade sobre a liberdade será dita “de esquerda”, ao passo que uma política de direita é considerada mais favorável à liberdade dos atores à custa das medidas destinadas a reestabelecer entre eles um certo equilíbrio. Mas isso não é verdade em todas as situações, pois certos partidos claramente classificados à direita militam abertamente, em nome da igualdade, pelo apagamento das diferenças ou das dissidências culturais dentro do espaço social e não hesitam em restringir a liberdade que os indivíduos poderiam ter de cultivar essas diferenças culturais, sexuais ou outras.
Podemos, assim, afirmar que a igualdade e a liberdade são valores fundamentalmente opostos? Para resolver a questão, perguntemo-nos o que entendemos por “liberdade” e qual é o conteúdo deste valor.
Reconheçamos primeiro que nem todos os nossos desejos podem ser satisfeitos: há coisas que sabemos serem impossíveis se nós quisermos viver em harmonia com os outros, pois nós compreendemos que isso transformaria a sociedade num campo de batalha. Por outro lado, aspiramos ao respeito: esperamos das instituições políticas, do poder e dos nossos concidadãos que admitam e reconheçam que nós temos o direito de ser aquilo que nós somos desde que não prejudiquemos os outros. Em outras palavras, queremos que a nossa independência moral seja reconhecida, que ninguém julgue a nossa conduta nem a condene em nome de ideias e representações que não partilhamos e que não são as nossas.
Mas qual é a medida desse respeito? Obviamente, nós pedimos unicamente para não sermos discriminados, para sermos reconhecidos como possuidores de um valor igual ao dos outros. Então, o que nós queremos não é a “liberdade” em geral, mas as liberdades necessárias à realização dessa igualdade de direitos. Nós aspiramos a viver em uma sociedade e a ser governados por instituições que deem às nossas vidas a mesma importância que é dada a de outros, e onde os fins que são os nossos, desde que não prejudiquem a ninguém, não sejam menos merecedores de ser buscados e que não sejam considerados menos dignos de ser respeitados do que os de outros.
Esta reflexão, desenvolvida pelo filósofo americano Ronald Dworkin (1931-2013), nos conduz a admitir que a igualdade é, num país livre, um valor tão central, que ele a nomeia “virtude soberana”. Ela não exige tanto a igualdade material em todas as coisas, mas que o Estado e a maioria não julguem os nossos valores e os nossos comportamentos como menos merecedores de consideração do que os de qualquer outra pessoa.
Em contrapartida, em uma sociedade teocrática, onde a religião prevalece sobre todas as outras considerações, o Estado e a maioria privilegiam objetivos religiosos e discriminam indivíduos que aderem a valores não religiosos. Em um Estado totalitário, aqueles que reivindicam o direito de pensar de uma forma diferente daquela dos homens no poder não dispõem de direitos que lhes permitiriam fazê-lo sem risco: eles veem, portanto, as suas ideias e as suas aspirações tratadas como sem valor, como desprezíveis, como subordinadas a considerações de ordem, de grandeza nacional ou mesmo de progresso econômico.
A igualdade, segundo Dworkin, é, portanto, o valor essencial. A falta de liberdade nada mais é do que a consequência da negação da igualdade: somos tratados pelos detentores do poder como inferiores, subalternos e pessoas cujas aspirações a sociedade não reconhece como igualmente dignas de serem buscadas. Essa injustiça pode ser resultante do poder, por si mesmo, mas também dos atores privados, quando o Estado falha no seu dever de nos proteger contra as empresas dominantes, garantindo efetivamente os nossos direitos. O raciocínio de Dworkin modifica a nossa perspectiva de partida. As restrições à nossa liberdade individual, mencionadas mais acima, aparecem, a partir de agora, como indispensáveis ao igual respeito ao qual aspiramos.
Limitar a faculdade de fazer contratos no mercado de trabalho e garantir um salário mínimo é essencial para que os assalariados disponham de recursos indispensáveis à busca do modo de vida que faça sentido aos seus olhos. Seria, de fato, difícil reivindicar que um país é livre se ele não concede atenção aos meios de que dispõem os indivíduos para perseguir seus objetivos, como se o simples direito de buscá-los fosse suficiente para estabelecer a igualdade de respeito para todos. Como fazer de conta, com efeito, que a pobreza não é um obstáculo à liberdade, quando uma sociedade permite a alguns dos seus membros reduzirem outros a um estado de privação indecente em termos de habitação, educação, saúde e rendimento?
Uma sociedade onde alguns estão, por assim dizer, assegurados não só de nunca poderem alcançar seus objetivos, mas até de não poder buscá-los, enquanto outros dispõem de todos os recursos necessários para isso, estaria respeitando as liberdades comuns? Resulta que, em certos casos, uma limitação da possibilidade de recorrer ao setor médico privado é necessária para garantir a igualdade de acesso aos cuidados médicos, pois, quando os dois setores coexistem, os hospitais públicos perdem a cotização dos cidadãos mais ricos e não podem oferecer um serviço de boa qualidade aos menos ricos[1].
Como fingir que uma sociedade concede efetivamente igual valor à vida e aos projetos do conjunto dos cidadãos se a qualidade dos cuidados médicos à qual cada um tem acesso está condicionada pelo nível dos seus rendimentos e pela sua origem social?
Vista sob este ângulo, a liberdade é menos um valor independente do que um componente da igualdade: a nossa liberdade consiste na capacidade de fazer tudo aquilo sem o qual seria impossível afirmar que a sociedade nos atribui igual respeito. As liberdades fundamentais de pensamento, de consciência, de expressão, de escolha da profissão devem estar igualmente garantidas a todos, porque a independência moral de cada um não pode ser garantida sem elas. Mas os recursos também devem ser igualados, em certa medida, para que a igual capacidade de todos de buscar seus valores e projetos não seja apenas um desejo piedoso, mas uma realidade concreta, e isso supõe uma limitação não da liberdade – pois não há liberdade de impedir os outros de conduzirem uma vida dotada de sentido ou de agir de uma forma que tornem os outros incapazes de conduzir uma vida dotada de sentido – mas da licença, da capacidade de agir como se bem entende, sem qualquer interferência, por exemplo, sobre o mercado de trabalho.
A liberdade é um valor – a não subordinação a outros – e não é consequentemente possível qualificar como liberdade um modo de agir que leva, ao contrário, à subordinação de certas existências a outras.
[1] NdT: na França, há um sistema de saúde pública, custeado por todos os contribuintes. Essa imposição é necessariamente assim, porque, se fosse permitido aos que não desejam o atendimento público, mas o atendimento particular, não participarem do seu financiamento, o sistema público então perderia receitas importantes para sua manutenção, ou seja, ele perderia a capacidade de cuidar daqueles que não têm poder para contribuir.
Artigo atualíssimo para fundamentar a discussão na política brasileira.