Três malandros se encontraram numa esquina pra beber e lerar. Saíram do ar abafado do botequim pé-sujo e pegaram rumo de um outro boteco que de tão pequeno só tinha uma portinha por onde o dono atendia os clientes na calçada, daí seu nome Bunda de Fora.
– Eu sou que nem o Aldir Blanc, bebo um pouquinho pra ter argumento – disse o sofista. – Pouquinho o caralho, tu é um pau d’água retado, retrucou a puta coçando a buça. A noite ia alta quando saíram de outra casa de birita, a Academia da Cachaça. Já fedendo de tanta pinga, começaram a se equilibrar, um tocando no outro pra não se estabacarem no asfalto. – Eeee, tô tontinho, tô tontinho, dizia o analista. Tudo girando, girando, parecia que eles curtiam era essa de ficar num estado de desafio à gravidade, desequilíbrio quase total, como descer de uma escada de avião em plena crise de labirintite. – Foi o que aconteceu comigo – lembrou o analista – não sei como cheguei ao banheiro do aeroporto e vomitei todas.
– És um porco, riu o sofista, comes de tudo, por isso que tu é gordo desjei, cumé que dizem esses frescos refinados sofisticados, opa, essa palavra comigo não. Cumé mermo? Onívoro. Para com isso, cara, vais morrer de tanta gula, garganta profunda.
– Gozar, o lance é gozar, retrucou o analista. Morrer de tanto gozar. Só esses veadinhos é que não sabem aproveitar a vida, esses analistas que não trepam com as clientes, cada menina gostosa que eu nem aguento, tem umas que eu dispenso, muita areia pro meu busão. Cobro caríssimo pra elas desistirem.
– E as mina ainda te pagam?, perguntou a puta. Mas é muita cara de pau. Tu ainda diz que vai na casa delas pra, como é mesmo que diz, dar assistência? Assistência em domicílio, a domicílio, como é mesmo que os grã-finos falam? Porra, que serviço bão, milhor que o meu, que não dá prestígio, somos lata de lixo, latrina do mundo, arrimo da moral e dos bons costumes, do casamento, tudo pelo amor de Deus, Pátria e Família.
– Reclama não, aparteou o sofista. – Vocês agora não podem chiar, têm sindicato, são reconhecidas como trabalhadoras, prestadoras de relevantes serviços à saúde física e mental da escumalha. Vão pra televisão, dão entrevistas, até universidade já fazem, saem de lá “deplomadas”, quaquaqua, essa vaselina da lei de cota, vocês tem que agradecer é a mim, mestre do discurso, que vendi meu saber pra vocês entrarem na política, se elegerem, defenderem seus interesses no Congresso, agora estão aí enchendo a boca com as virtudes do “diálago”, essas burras demoram tanto a aprender a falar. Melhor, passa a grana que eu ensino.
– Devagar, cara, disse o analista. Não é porque a gente sabe que só existe uma profissão, a prostituição, e não simplesmente que ela seja a mais antiga, não é por isso que se deve esculachar, que nem a “abordagem” de um tira gozando no baculejo. Mas vai com calma, manera.
– Tu tá dizendo que a tua profissão é igual à minha, gente fina?
– Ah, os inocentes… amo eles, continuou o analista, dando mais um gole. Olha aqui, seus ignorantes. Capitalismo, o lance. Sempre existiu. Sempre existiu e só ele existe, não existe outro, não adianta mimimi, é só mi, myself and I, como queria a Billie Holiday. – Billie o quê?, perguntou a prostituta, deu o quê? – É uma cantora, que também teve que … prostituição… – Ela foi obrigada, teve que?, indagou o sofista, não acredito nisso . – Não vale, você não acredita em nada mesmo. Não sabe aquela história numa redação de jornal o editor pediu a um redator que fizesse uma matéria sobre Jesus Cristo e aí o cara responde perguntando: “Contra ou a favor?” E era na Semana Santa…
Foi a vez da prostituta: – Não mexe com Deus, não, Deus é pai. – Aí é que mora o perigo, querida – interveio o analista. – Pra mim, não, disse o sofista, tanto faz, a questão é quanto eu vou ganhar com isso. – Isso me serve, o teu relativismo, inclusive em termos políticos – disse o analista, pois quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro ou não tem arte. Não vem com esse papo de utopias, distopias, atopias, chupa essa manga: só há, sempre houve, e só haverá capitalismo. Te vira. – Por mim, tudo bem, tanto faz, desde que farinha pouca meu pirão primeiro, concordou o sofista, enquanto a prostituta palitava os dentes depois de uma golada e mastigada uma manjubinha frita, especialidade da casa.
Não era uma gueixa, a puta. Era linda, pernas à mostra, fendas, decotes, perfumada, salto alto, vestido preto, magra e carnuda. Tanto o analista quanto o sofista tiraram ela pra criar, desde muito jovem, menina com alguma (hum…) escolaridade, mas a roça marcava presença no traço da fala. Os dois panacas alimentavam o sonho literário, filosófico, cinematográfico, até godardiano, de cultuar a puta culta e de bom coração, mas aquela menina não ajudava, cada erro era uma porrada no ouvido. E tome de ensiná-la, essa mania que os homens têm com as mulheres, e elas se prestando à patacoada, daí pode vir algo de bom, nem que seja a grana.
Caía a noite e chovia. Os três ficavam sozinhos na calçada estreita e sem táxi pra casa. Resolveram se abraçar, fizeram uma roda tipo circo final de filme de Fellini. Não dá pra saber se choravam, bêbados e sentimentais, pinga da boa. Apesar de, apesar de, o causo é que ninguém abria mão do seu cinismo. A puta bebendo, se lamentando e cantando, não deixava de enfiar seus dedos longos nos bolsos daqueles dois pegando o que viesse. O analista repetindo monótono tô tontinho, tô tontinho, pra ver se mantinha o porre, a lucidez e seu semblante ao mesmo tempo. O sofista suspirando ah como eu queria que houvesse A Verdade, ah como seria bom que Platão estivesse certo, não aguento mais tanta eficácia. Interpretação bem discutível, mas deixa pra lá.
– Só existe o capitalismo, queridos. Todo mundo vende sua força de trabalho. Que que tem alguém pagar – e bem – por um amorzinho. Mais-valia eu tiro deles, eles que tiram dos outros. Só existe uma única profissão, insistia o analista, e se é pra ter alguma verdade, ela está com a moça, melhor: ela é a moça. Que tem um fundo de santidade, afinal, bem lá no fundo toda mulher é virgem. Em algum lugar do seu corpo ou de sua alma. Sacrilégio? Pega ou larga. Eu avisei. Não há saída pelo sexo. Por isso eu recomendo a castidade.
–- Alguém pode em sã consciência acreditar numa besteira dessas, exclamou o sofista. Agora só falta ele dizer que existe puta casta? Ah, meu Deus, como?, eu disse Deus?
– E também disse “em sã consciência”, não existe isso, a consciência é o lugar do erro irremediável, perorou o analista. Rodaram como dervixes e acabaram caindo, arrastados por uma enchente pontualmente anual daquelas tipo aí é que o barraco desabou. Caídos num buraco negropardolamacento, seus corpos foram encontrados, mutilados, espedaçados, longe dali. A saída shakespeariana de matar todos no final pode ser compensada pela esperança de que um dia essa ideia sairá da ficção, fim da escória que voltará ao húmus e deixará, como um câncer da natura chegado ao terminal, o mato crescer livremente, não se perderá grande coisa, João Antônio.