Platão começa o Livro II de A república de uma maneira curiosa. Depois de expor de forma não muito satisfatória suas razões para convencer os interlocutores que o homem justo é mais feliz do que o injusto, no acalorado debate sobre a justiça travado no Livro I, o personagem Sócrates – que já não tinha demonstrado, logo no início do livro, muita disposição para ir até o banquete na casa do velho comerciante Céfalo, cenário onde ocorre o diálogo – pensa aliviado que ficara livre daquela discussão. Pelo ânimo do protagonista, o diálogo teria terminado ali, mas a reação enérgica de Glauco, um dos convivas, demonstra que o debate que Sócrates – aparentemente cansado e com vontade de ir embora para casa – julgava ter encerrado era apenas o prólogo de uma argumentação que se estende por mais nove capítulos, em cerca de 500 páginas, a depender da edição. Glauco insiste em prolongar a conversa porque não ficara nem um pouco convencido com a resposta de Sócrates que se propunha a rebater a definição de Polemarco, segundo a qual a justiça é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e a mais provocativa solução apresentada por Trasímaco, para quem a justiça, na verdade, não era nada mais nada menos do que o interesse do mais forte.
A atitude de Glauco não significa que ele estava de acordo com os oponentes de Sócrates no debate. Ao contrário, desejava ouvir uma defesa da justiça “pelo que ela mesma é”. Daí, fazendo o papel de advogado do diabo, a fim de provocar Sócrates a fornecer uma resposta mais convincente sobre a questão do que é a justiça, Glauco apresenta o argumento de que os homens só agem por justiça porque são forçados a isso e, se pudessem escapar impunemente das leis e das convenções, cometeriam as piores injustiças, sem nenhum escrúpulo. Para ilustrar seu raciocínio, Glauco narra o mito do anel de Giges.
O personagem Giges era um pastor a serviço do governante da Lídia. Um certo dia, após um tremendo terremoto que rachou o solo no local onde Giges conduzia o rebanho, ele desceu por uma fenda que se abriu no chão e lá encontrou um enorme cavalo de bronze, oco por dentro. No interior do cavalo, jazia o cadáver de uma criatura de proporções gigantescas, com um anel no dedo. Giges tomou o anel para si e saiu correndo do local. Ao se dirigir à cidade, onde se realizava a assembleia anual dos pastores para prestar contas ao rei, distraidamente Giges girou o engaste do anel para dentro da palma da mão e percebeu que se tornara invisível, uma vez que seus companheiros se comportavam e falavam dele como se ele não estivesse lá. Percebendo o poder do artefato que encontrara por acaso, o pastor concebe um plano audacioso, que é realizado com êxito: ele penetra insidiosamente no palácio real, seduz a rainha e mata o rei, assumindo o trono.
A lenda de Giges não é uma criação original de Platão e é narrada por outros autores que o precederam, como Heródoto. No Livro 1 da sua História, o historiador grego conta como um certo Giges se tornou rei da Lídia. Nessa versão, o personagem surge como um serviçal de confiança do rei Candolo, o qual, louco de paixão pela esposa a ponto de clamar aos quatro cantos que não existia outra mulher mais bela, força Giges a espioná-la nua movido pelo capricho de ter uma testemunha além dele dessa beleza excepcional. A contragosto, mas com medo de contrariar seu senhor, Giges entra escondido no quarto da rainha e a vê despida. Quando está prestes a sair, ela o surpreende e, ultrajada com o comportamento indigno do marido ao fazer dela objeto do voyeurismo alheio, lhe dá um ultimato: ou Giges concorda em assassinar o rei Candolo, tendo em troca a mão da rainha e o trono da Lídia, ou ele será morto. O criado, como é de se esperar, prefere poupar o próprio pescoço. E, de quebra, ainda casa-se com a mulher do rei assassinado e toma o seu lugar, como a rainha lhe prometera.
O elemento novo que Platão introduz nessa história, conforme o filósofo francês Dimitri El Murr, é a invisibilidade, o que remete à questão se a justiça só existe em função do olhar do outro. Protegidos da vigilância da sociedade e com a garantia que ficarão impunes, os homens em geral se mostrariam dispostos a fazer qualquer coisa, até matar, para alcançar o poder e a riqueza, assim como agira Giges no mito? Outro anel famoso da literatura, com o mesmo recurso mágico de proporcionar a invisibilidade, também suscita indagações nesse sentido. Trata-se do anel forjado por Sauron, o mestre das trevas de O Senhor dos Anéis.
Mais do que o prolongamento artificial da vida que essa joia maligna oferece, é o poder de tornar invisível aquele que a usa que a converte em objeto da cobiça e da perdição de vários personagens do universo mitológico criado por J. R. R. Tolkien. A invisibilidade é uma promessa de onipotência que o anel proporciona, a chance de se colocar acima dos demais mortais, como um deus. Mas essa magia do anel tem seu custo – e ele é alto: a degradação moral daqueles que o portaram de forma inconsequente, que atinge o seu nível mais extremo no personagem Sméagol, a ponto de desfigurá-lo fisicamente, transformando-o em uma criatura monstruosa, o Gollum. No caso de Gollum, a invisibilidade acaba deixando de ser sedutora para se tornar um fardo. Não é mais para ocultar seus crimes, mas para esconder sua aparência repugnante que ele precisa continuar invisível aos olhos dos demais.
Voltando à República, a invisibilidade que Giges adquire ao usar o anel encantado não é só com relação aos outros, mas a ele mesmo. Não à toa, como chama atenção o filósofo platonista El Murr, o pastor que se tornará rei por vias tortuosas o encontra dentro de um cadáver, com os olhos irremediavelmente fechados para o exterior e para si próprio. Assim, à dúvida apresentada por Glauco, se nós praticamos a justiça apenas em função do olhar da sociedade, de suas leis e convenções, e agimos despudoradamente com injustiça ao menor sinal de que estamos libertos dessa vigilância, a resposta platônica seria: aquele que se comporta dessa forma é porque tornou-se invisível não apenas para os outros, mas para si próprio. E se por um momento conseguir ter um vislumbre de si mesmo, por trás da máscara da hipocrisia, poderá ficar espantando com sua verdadeira face degenerada, como a de Gollum, ou como a do retrato de Dorian Gray.
Comentário sobre a invisibilidade de Giges, e a comparação do anel de Giges com e de Sauron, bem apropriada. muito bom.