Tempos de pandemia. Covids e suas diabólicas variantes. Covid curta, covid longa. Uma, duas, três vezes numa só pessoa ressoando Che Guevara (dois, três Vietnãs: só que agora o imperialismo é do vírus. Será virótico o capitalismo? Sem vacina). Antecipando-se a toda sorte de epidemias e pandemias, chegando ao ponto máximo da escalada psíquica, a loucura, antecipando-se até mesmo ao cinema e a séries de aliens, e seus vampiros (ricos) e mortos-vivos (pobres, na metáfora de Zizek), Guy de Maupassant conseguiu escrever O Horla . Revisitei-o. Prazer renovado de mistura com a cruel lucidez. Também me lembro com carinho do saudoso Bruno Liberati, fraterno colega de redação do Jornal do Brasil, que ilustrou o texto. Liberati pegou bem a ideia de alteridade do personagem e da ordem simbólica, outro e Outro. Publicado no Caderno B/Especial em 13 de abril de 1986, o texto foi assim:
Entre uma piração e outra, Guy de Maupassant, um dos maiores contistas da língua francesa e da literatura universal, escreveu O Horla (1887), considerado pela crítica uma verdadeira obra-prima. Com notável clareza e precisão, marcas de um estilo influenciado pela estética realista de Flaubert, seu padrinho literário, Maupassant descreve as alucinações e delírios persecutórios de um homem – desgraçadamente ele mesmo – que teve um encontro catastrófico com o Outro.
Horla, palavra inexistente em francês, segundo nota de José Thomaz Brum, tradutor, prefaciador e responsável pela seleção dos 11 contos que compõem a coletânea, pode ser apenas uma “criação fonética bem-sucedida”, ou “uma combinação de sílabas que não correspondem a nenhum nome conhecido”, “um nome lógico dado a um ser fantástico, o Hors-là”. Ser novo ou sobrenatural, “o Horla, o do Além, o de Lá” faria regozijar-se qualquer psicanalista lacaniano, que aí veria facilmente a antecipação – o poeta vê na frente – da descoberta do Outro enquanto “ordem simbólica”, furada, aberta a significações, sem cristalizar-se num só sentido.
E o que Maupassant viu deixou-o de cabelo em pé. Um ser invisível, hostil, escravizador. “Chega-nos do Rio de Janeiro uma notícia bastante curiosa. Uma loucura, uma epidemia da loucura, comparável às demências contagiosas que atingiram os povos da Europa na Idade Média, alastra-se neste momento na província de São Paulo.” Não, nem Jânio, nem Maluf, mas “seres invisíveis, embora tangíveis”, que põem em pânico os habitantes, espécies de vampiros que se alimentam de suas vidas durante o sono e que bebem além disso água e leite sem parecer tocar em nenhum outro alimento.”
Sugado, exaurido por esse vampiro, nosso desgraçado herói se olha no espelho e não se vê, e nada vê. Dá de cara com a crueza da falta, a mesma que desorganiza o personagem de um outro conto, de igual veia “esotérica”, intitulado O espelho, estrategicamente colocado bem no meio da série das narrativas em Primeiras estórias, lavra mágica de Guimarães Rosa.
Antecipador do gênero fantástico, sem recorrer a duendes e gnomos, mas instalando o caos no quotidiano, Maupassant, premonitoriamente, descreve os sintomas da doença mental que acabaria por matá-lo. Em 1885, os primeiros sinais da crise. Alucinações. Maupassant abusa do álcool e das drogas. Solidão e morte são seus temas recorrentes. Dois anos depois, publica O Horla. A 1º de janeiro de 1891, tenta o suicídio.
Depois de uma vida boêmia, passada no luxo, fama e riqueza conquistadas com o ato de escrever, Maupassant é instado pelos amigos a internar-se. Vai para o manicômio de Passy, chamado La Maison Blanche [nome da loucura]. Nos últimos meses de vida, uma demência quase total. Acaba morrendo de paralisia geral, em Paris, no ano de 1893. Fin de siècle, prestígio de Charcot, o metteur en scène das histéricas teatrais, prestígio do hipnotismo de Mesmer, descoberta do magnetismo pessoal, do fetichismo, da divisão psíquica, insistência no tema do duplo: Maupassant viu tudo isto. Em 1895, Freud e Breuer publicam Estudos sobre a histeria. A psicanálise vai nascer.