Félicité tem uma imensa capacidade de amar, não importa quem – do primeiro e único namorado, passando por um sobrinho distante, os filhos da patroa e a própria patroa, até um velho rabugento da vizinhança. No entanto, seus sucessivos amores são sempre malogrados, sendo vítimas seja da traição, seja da morte. A cada desilusão, Felicité chora, se revolta, se recupera e direciona sua ternura para um novo alvo. Por fim, resta-lhe um único destinatário desse intenso e inesgotável amor que ela guarda no coração: o papagaio Loulou. Mas o bichinho também morre e, para conservar o corpo do seu adorado companheiro, Félicité manda que o empalhem, transformando-o num verdadeiro objeto de culto, a ponto de ver no papagaio, quando ela própria já está à beira da morte, uma emanação do Espírito Santo.
O escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880) costumava retratar seus personagens de forma impiedosa, sem um traço de compaixão, e o nome com o qual ele batiza a heroína do seu conto “Um coração simples”, Félicité, à primeira vista tão cruelmente irônico em face da desventurada trajetória da personagem, parece bem coerente com essa visão desencantada e corrosiva do autor com relação ao mundo e às pessoas, presente em romances como Madame Bovary e A educação sentimental. Quando compôs o conto, em 1876, ele passava também por um período particularmente difícil – a perda recente da mãe, da irmã e de amigos próximos e o risco de falência, somados ao trauma nacional pelo massacre da Comuna de Paris de 1871 – que bem poderia ter servido de combustível para acentuar essa perspectiva já habitualmente pessimista da natureza humana. Mas o fato é que o próprio Flaubert aponta, na sua correspondência, uma direção totalmente contrária ao que essa primeira e superficial leitura possa sugerir.
O autor resolveu escrever a história de Félicité, uma pobre mulher do campo, respondendo a uma provocação de George Sand (1804-1876). Sand – que considerava a literatura de Flaubert por demais crítica e racional – o instigou a criar algo que fosse mais singelo e emotivo. Apesar de ter pouco apreço pelas narrativas românticas de George Sand, sentimentais demais para seu gosto, Flaubert tinha enorme respeito e consideração por ela, de quem fora amante por um breve período e com quem mantivera depois uma forte relação de amizade. Assim, ele aceitou o desafio e escreveu uma “história triste para fazer as almas simples chorarem”, como detalhou em uma carta a uma outra amiga. Infelizmente, quando terminou o conto, George Sand já tinha falecido.
“Um coração simples” seria publicado em 1877, no volume Três contos, junto com outras duas narrativas curtas: “A legenda de São Julião Hospitaleiro” e “Herodíade”. Essa obra do escritor, a última lançada em vida (ele deixou inacabado o seu romance Bouvard et Pécuchet), foi considerada pela crítica como o seu testamento literário, em que a arte de Flaubert havia chegado ao seu mais alto grau de maturidade. De fato, a elaboração dos três contos – “Um coração simples”, em especial – é notável, em que a obsessão do autor pelo “mot just” (a palavra exata, precisa) chega a um nível espantoso de perfeição. Ele próprio tinha plena consciência da sua maestria. “Tenho a impressão de que a Prosa francesa pode chegar a uma beleza de que mal se faz ideia”, afirmou a respeito dos contos que escrevera.
Por outro lado, não deixa de ser surpreendeente que Flaubert tenha lançado mão de um recurso tão estranho como um texto com essa elegância e precisão – qualidades que normalmente são associadas a uma certa frieza e distância – com o intuito de justamente arrancar lágrimas do leitor, tarefa geralmente assumida pelas narrativas românticas verborrágicas que ele tanto deplorava. No entanto, essa prosa tão lapidada e primorosa, com a sua economia de palavras, em que nada soa excessivo, é densa de emoção e sentimento. A melancolia e a tristeza que Flaubert pretendia fazer aflorarem “nas almas simples”, a ponto de levá-las ao pranto, brotam naturalmente dessa urdidura de linguagem tão bem construída, sem recorrer a artificialismos. Para contar a saga de um coração simples, ele constrói uma narrativa de uma simplicidade arduamente elaborada, em uma escrita límpida e cristalina, mas plena de sensibilidade.
Mas quem é a dona desse coração singelo? Félicité, como se disse antes, amou sucessivamente um jovem da vizinhança, seu sobrinho Victor, os dois filhos da sua patroa, um velho doente, a patroa em seguida e, finalmente, o papagaio Loulou. O moço por quem havia se apaixonado na juventude a abandonou, depois de tentar violá-la, para se casar com uma mulher mais velha e rica. O sobrinho Victor partiu engajado como marujo e morreu de febre amarela na América Central. Paul, o primogênito de Madame Aubain, a senhora a quem ela servia, foi estudar fora e nunca mais retornou. Virginie, a caçula, não resistiu à tuberculose. O ancião e a patroa faleceram na sequência – o primeiro, de velhice e doença; a segunda, de desgosto pela perda da filha tão jovem. Por fim, sobrou de companhia a Félicité o seu adorado Loulou, o único com quem ela dialogava – ele, com as três frases que sabia repetir; ela, com os murmúrios de uma pessoa que passara a vida em silêncio. Mas o pássaro, durante um dos rigorosos invernos da Normandia, não resiste ao frio. E o que resta dele é seu corpo empalhado, que Félicité cultua como uma relíquia sagrada.
“Por cem francos ao ano, ela cuidava da casa e da cozinha, costurava, lavava, passava, sabia arrear um cavalo, engordar as aves de criação, fazer manteiga – e continuou fiel à patroa, que entretanto não era uma pessoa amável”, descreve Flaubert a respeito de Félicité. Em poucos traços, ele apresenta o retrato da personagem: “O rosto era magro e a voz, aguda. Aos vinte e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentou mais idade nenhuma; e sempre silenciosa, o porte rijo e os gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática”.
Mas a verdade é que, nessa “mulher de madeira”, que funcionava de maneira quase “automática”, resignada à rotina de exploração como empregada doméstica de uma família burguesa, resiste um caráter obstinado, e também permeado por uma extrema sensibilidade. Obstinado no sentido de manter a sua dignidade em meio às violências e às humilhações sofridas numa trajetória marcada pelo abandono e pela exploração desde a infância, quando Félicité ficara órfã dos pais e se sujeitava a qualquer tipo de trabalho para sobreviver até encontrar alguma segurança e um mínimo de conforto na casa de Madame Aubain. Sensibilidade porque, apesar de tantos sofrimentos e maus-tratos, ela não se torna indiferente à beleza do mundo. Talvez aí resida a “simplicidade” desse coração de uma mulher do povo – invisível aos olhos da maioria – que se abre na narrativa flaubertiana: a disposição de se emocionar e de se espantar diante das coisas, em contraste com o tédio pequeno-burguês dos moradores do pequeno vilarejo de Port-Évêque, onde se passa a história.
Nessa sua maneira intuitiva de lidar com a realidade, Felicité conserva ainda a sua capacidade de imaginar. Em vários trechos do conto, esse poder imaginativo da personagem é explorado. Por exemplo, quando ela tem um momento de epifania ao ouvir o sermão do padre e conseguir alcançar o seu significado ao aproximá-lo do seu próprio cotidiano. “As sementeiras, as colheitas, os lagares, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho estavam presentes em sua vida; a passagem de Deus tinha-as santificado; e ela amou com mais ternura os cordeiros por amor ao Cordeiro, e as pombas por causa do Espírito Santo.” Em outra passagem divertida do conto, a sua imaginação sem amarras, com a liberdade e a candura das crianças, arranca risos do pedante M. Bourais quando este lhe aponta no globo terrestre onde ficava Havana, cidade para qual o sobrinho de Félicité havia partido, e ela, insatisfeita, lhe pede para mostrar no mapa a casa em que morava o rapaz. Enquanto o M. Bourais permanecia preso ao real, a fantasia de Félicité – e de Flaubert – antecipava o Google Maps!
Mas o ápice dessa sensibilidade imaginativa de Félicité ocorre mesmo ao final, atingindo um estado de sensualidade mística, quando ela, perto da morte, tem como última visão a imagem do seu papagaio Loulou transfigurado no Espírito Santo. Esse final apoteótico da personagem sintetiza a sua conexão com o mundo, uma percepção do sagrado que não o separa da natureza. Félicité, na sua existência ordinária, dura e sofrida, teve a felicidade de amar as pessoas, de amar os animais e de amar o mundo e, no momento de voltar ao seio da terra, morreu feliz.