“There was nothing standing; only the calm water, the placid sea, alone and tranquil. Nothing existed. There was only immobility and silence in the darkness, in the night. Only the Creator, the Maker, Tepeu, Gucumatz, the Forefathers, were in the water surrounded with light.”[1]
Popol Vuh
Olhando a noite da perspectiva ocidental, nossa escola impositiva (com os olhos voltados para o pôr do sol), ela é um monstro devorador de virtudes, um pássaro negro de asas largas que revoa sobre nossos sonhos e nos leva para lugares de espantos e encantos.
A noite não é uma criança, é uma égua no cio, veloz e umbrosa, mensageira de nossos medos mais esquecidos dentro de nós mesmos, e de nossos desejos obscuros. A noite é um desencanto, mas é também um sorriso, que nunca saberemos se de deboche ou de simpatia. É uma lâmpada apagada, ou um céu de mil luas e nuvens que se alegra ou se entristece enquanto nos vigia.
No imaginário social, ela tem uma história que testemunha medos e conspirações, amores furtivos, um estranho senso de liberdade, fugas e mortes. Houve uma época em que monstros e deuses dominavam a escuridão. Bem antes dos lampiões e da eletricidade, antes mesmo das lamparinas e fifós, a noite era uma grande dama, soberana cúmplice de Deus e do diabo.
Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, “a escuridão não constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza – e, portanto, do medo”. Dentro da noite, no entanto, o que tememos é o mal, porque o mal, diz Bauman em O medo líquido, é aquilo para o qual “não podemos apontar que regra foi quebrada ou contornada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado”.
A noite, portanto, é agente do medo, propicia sua manifestação nos corpos e nos “corações” humanos. A noite nua, a noite na inteireza de sua escuridão, é a mais assustadora. Mas a noite mais escura pode ser a mais sedutora também.
Do mesmo modo, a noite iluminada, se for num lugar deserto e silencioso, pode ser medonha, porque algo terrível pode nos acontecer, e muito desse medo talvez ocorra em função da ideia já formada do mal que ela é capaz de trazer.
Quanto mais recuada no tempo, mais essa ideia da noite como “esconderijo favorito do mal” ocupava nossa alma. Mas bem antes disso, cosmogonicamente falando (invadindo aqui o território do simbólico), houve o primeiro império da noite, quando “havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”, para entrarmos no mito hebraico-cristão.
Quando Deus, num arroubo imperativo, criando os céus e a terra, disse “haja luz”, a noite perdeu parte de seu poder, ou pelo menos deixou de ser aliada de Deus, e passou a ser acusada de abrigar o mal.
A cosmogonia cristã é muito parecida com a grega, neste aspecto, com a diferença de que, na mitologia grega, Nix permanece poderosa e ambígua; é a deusa da noite, filha do Caos (abismo insondável), mãe da Terra e do Céu, avó do Tempo, conforme nos ensina Junito de Souza Brandão, em Mitologia grega (3 vol.).
Nix é tão poderosa que da sua linhagem é que nasce a luz. Em outra versão, Nix também é mãe de Tânatos (morte) e Hipno (sono) e de uma série de outros seres mitológicos. Quando Zeus dominou o mundo e organizou o Caos, não só pediu conselhos à noite como jamais ousou irritá-la.
Na mitologia hebraico-cristã, a noite “representa o mal ou a separação de Deus”, como diz Craig Koslofsky, em Evening’s empire: a history of the night in early modern Europe. Na mitologia grega, a noite cobre todos os terrenos, tanto os da bondade quanto os da maldade, de modo ubíquo, simbolizando “o tempo das gestações, das germinações e das conspirações, que vão surgir à luz do dia em manifestações de vida”, conforme diz Brandão.
Essa ambiguidade da noite aparece em muitas culturas. No livro Tupã Tenondé: a criação do universo, da terra e do homem segundo a tradição oral Guarani, Kaká Werá Jecupé nos ensina que na cultura guarani a noite é guardadora dos segredos mais íntimos do ser.
Para os guaranis, a coruja são os olhos capazes de enxergar cada um desses segredos, que vêm desde antes da criação da Terra. Os segredos já estavam na noite primeira da existência. Ou seja, para a cosmogonia guarani, a noite também imperava antes que a Terra existisse, e é um elemento importante para sua tradição de ritos.
Hábitos noturnos
Socialmente falando, no curso da história, a noite sofreu a primeira baixa de seu império quando a humanidade descobriu o fogo por volta de 1,8 milhão de anos. Mas, segundo Nancy Gonlin e April Nowell, em Archaeology of the night: life after dark in the ancient world, as pessoas só vieram a compreender o domínio e o uso do fogo por volta de 500 mil anos.
A partir daí, a noite deixou de ser a mesma, e a humanidade também. A tecnologia do fogo mudou tudo, inclusive nosso ritmo circadiano (mecanismo de regulação do organismo entre o dia e a noite). Começamos a criar hábitos noturnos. Aprendemos a cozinhar, aquecer o ambiente e a potencializar nossa socialização, fazendo eventos nas horas antes improdutivas, para além do pôr do sol.
Nos séculos que antecederam a modernidade, a noite já era a senhora do sexo, das cerimônias como velórios, contação de histórias, o momento em que se olhava para as estrelas (que fez nascer a astronomia e a astrologia), dançava-se, cantava-se, e praticavam-se violências tramadas.
Entre os séculos XVI e XVII, na Inglaterra de Elisabeth I (a rainha mecenas) e Carlos I, os amigos da noite povoavam Londres. Em História do medo no Ocidente, o historiador francês Jean Delumeau nos dá um aperitivo desses eventos noturnos, citando um dramaturgo contemporâneo de Shakespeare, Thomas Dekker, que “faz da noite londrina uma descrição sem complacência”:
“Todos os criminosos, covardes demais para mostrarem-se ao sol, ‘saem de suas conchas’. […] Os aprendizes, apesar dos compromissos de seu contrato, arriscam-se por sua vez a uma escapada em direção ao cabaré. Jovens casados desertam do leito conjugal. […] Prostitutas aparecem nas ruas, que percorrem até a meia-noite. Se as trevas são suficientemente espessas, o severo puritano, que ao luar não ousaria aproximar-se de um bordel, atreve-se a ir à casa de uma cortesã. Pelas ruas escuras, as parteiras vão presidir ao nascimento de bastardos, que em seguida farão desaparecer deste mundo. A noite é mais perigosa quando os alabardeiros em vigia estão adormecidos numa encruzilhada, roncando ruidosamente.”
Este período é pré-moderno, é o período da transformação da noite lúgubre em nova zona sondável da vida, que ganhou toda as capitais da Europa e suas cópias. A vida noturna passa a ser ocupada não só por homens destemidos, fiéis da igreja, prostitutas e criminosos, mas também por apreciadores de teatro, pubs, tavernas, restaurantes e outros ambientes apropriados para o período noturno, fazendo que bebidas de chocolate, cafés e chás passassem a concorrer com os goles alcoólicos que dominaram os encontros noturnos por milhares de anos.
Com a chegada definitiva da modernidade, surgiram muitos amigos da noite, embora esse tipo específico de flâneur sempre houvesse, e muitos deles prefiram a escuridão ou a parca luz da lua e das estrelas, caminhando lado a lado uns dos outros, estranhos na noite, em meio ao mistério da vida.
A noite colonizada
A explosão de novas possibilidades, acionada pela Revolução Industrial e suas tecnologias de ampliação da luz, fez o medo e o mistério passarem a ter a companhia da oportunidade de trabalho e de diversos lazeres à noite. O Ocidente vira outra coisa, e vai se alastrando como fogo, no espaço e no tempo, para o mundo todo, até chegar aos dias de hoje.
Embora a noite não tenha perdido sua característica de ambígua e ubíqua sob o céu, hoje as tecnologias colonizaram-na de tal modo que nas grandes cidades ela é quase diáfana, mesmo depois da meia-noite (muitas cidades se orgulham de não dormir), ou tem outra malha de significados, com um clarão que lhe devora toda.
Segundo Nancy Gonlin, “muito de nossa vida econômica, social e ritual é realizado durante a noite. Algumas cidades modernas passaram a nomear ‘prefeitos da noite’ para supervisionar a produção econômica noturna que gira o mercado de nossos centros urbanos.”
O mais preocupante dessas novidades na órbita noturna é que muita coisa muda, afetando a natureza, mas também a sociedade, em seus corpos e mentes. Uma pesquisa recente, comenta Nancy Gonlin (2018), “demonstrou que o ritmo circadiano controla entre 10% e 15% de nossos genes, e a quebra desse ritmo está ligada à causa de várias desordens médicas nos seres humanos, incluindo depressão, insônia e doenças cardiovasculares.”
A pesquisa citada por Nancy Gonlin está no artigo Missing the dark: health effects of light pollution (“Sentindo falta da noite: efeitos de saúde pela poluição da luz”, em tradução livre), facilmente encontrado na internet. O desaparecimento da noite pelo excesso de iluminação está preocupando muita gente, inclusive já há ativistas lutando para defender a escuridão, por meio da International Dark-Sky Association (http://darksky.org), que existe desde 1988.
É claro que este texto é só um exercício de perspectiva. Em muitos lugares do planeta, a noite ainda continua sendo o que ela sempre foi, soberana e assustadora, repositório de mistérios, sedutora devorante de homens bons, onde os anjos tiram a máscara e expressam suas inclinações mais terríveis.
Mas ela também é refúgio, templo da quietude, período regenerador da vida. Muitas culturas na África, na América indígena e na Ásia devotam-lhe cultos de afeto e respeito, mantendo a base comum da cosmogonia, ou seja, a ideia de que no princípio de tudo a noite era soberana.
Astronomicamente falando, segundo Nancy Gonlin, “a extensão da noite varia de estação para estação, e de latitude para latitude, de longas noites do hemisfério norte durante o inverno, e sol da meia-noite durante o verão, ao ano de noites e dias de tamanhos quase iguais nas aproximações da linha do equador.”
Dimensões da noite
Do ponto de vista do imaginário social e dos valores simbólicos, há a noite dos góticos, a noite dos românticos, a noite dos maníacos, dos monstros, dos feiticeiros, das bruxas, a noite dos artistas (incluindo ficcionistas e poetas, que escrevem sobre a noite), dos saraus, dos teatros, dos shows.
Há a noite dos negros da diáspora, em dimensões de medos que vocês não imaginam, sobretudo das mulheres negras, que eu sei, das mulheres negras, que eu leio, além da grande noite da escravidão.
Há a grande noite do holocausto, e a grande noite do genocídio indígena, que durou séculos, e continua ainda hoje, diante de nossos olhos (vejamos o caso dos ianomâmis). Às vezes, essas noites se cruzam no mesmo espaço, mas na maioria do tempo, elas seguem seus fluxos.
É óbvio que, voltando o olhar para o fenômeno social, o espectro de significados da noite se amplia enormemente. A noite que uma pessoa passa numa calçada ou num quarto capenga numa favela, sob o risco de desabamento ou de uma bala atravessar seu corpo, é diferente da noite confortável no quarto de uma mansão ou de um hotel cinco estrelas.
Entre uma coisa e outra, há diversos tons de expectativas. A noite que uma pessoa passa sem nada no estômago é absurdamente diferente de uma noite que a pessoa passa de barriga cheia. A noite num campo de refugiados é diferente da noite num lar seguro em qualquer lugar do mundo.
Do mesmo modo, uma noite na favela no seio de uma família cheia de afeto pode ser muito melhor e muito mais confortável do que a noite rica junto a um pai abusador ou a uma família de predadores, que só conhece a língua do deboche e da violência.
A noite dispara o medo, mas também desperta os cães do desejo, e às vezes, por isso, há quem saia feito animal à caça de corpos para se saciar, ou como loucos em busca de lucidez. Só existe uma faceta da noite mais assustadora do que as já enumeradas, e sem a mínima possibilidade de glamour, a noite dentro de nós.
[1] “Não havia firmamento; só a calma água, o plácido mar, sozinho e tranquilo. Nada existia. Tudo era imóvel e silencioso na escuridão da noite. Somente o Criador, o Construtor, Tepeu, Gucumatz, os Ancestrais, estavam na água rodeados pela luz.” Tradução minha.