Moça esquisita, aquela Isabel. Era bela – a mais bonita entre as irmãs – e pertencia ao mais poderoso e influente clã familiar da capital de Goiás. Com esses atributos, poderia ter conquistado o que se costumava chamar de “partidão”. Mas não. As irmãs mais novas foram se casando, as amigas, também, e ela se dando ao luxo de dispensar todos os pretendentes que apareciam.
Dizia, para quem quisesse ouvir, que havia escolhido a vida de solteirona. Para piorar, ainda se metia em serviço de homem, tomando as rédeas da fazenda da família. E, como não bastasse, tinha a ousadia de sair em defesa dos escravos. Aos que se horrorizavam com sua conduta, Isabel respondia que não queria ser governada por ninguém. “Só sinto não ter esperado para nascer daqui a cem anos. Não sirvo para viver nesta época”, lamentava.
Na Vila Boa do final do século 19, Isabel só poderia se sentir mesmo uma alienígena. Às mulheres, não era permitido sequer sair de casa, mesmo durante o dia, caso estivessem desacompanhadas. Deveriam ser obedientes aos maridos, mães dedicadas e ocupadas prioritariamente com as tarefas domésticas. Uma vida independente, como queria Isabel? Devaneios de uma moça petulante, que deveria se conformar com a sua condição.
Isabel, que se posiciona tão à frente do seu tempo, é uma personagem fictícia, mas a fonte de onde ela surgiu é bem fidedigna: as histórias envolvendo diversas famílias da antiga Vila Boa, que a escritora goiana Rosarita Fleury (1913-1993) ouvia quando menina, contadas por um velho escravo da família que fora alforriado, chamado Salu, pelos avós e por um tio, Chico Honório. Foi costurando essas histórias que ela encontrou o fio para escrever o romance Elos da mesma corrente, publicado originalmente em 1958.
A personagem Isabel é apenas uma – embora a mais interessante – da vasta galeria de figuras femininas que desfilam por esse livro cuja trama se desenvolve lentamente, sem grandes sobressaltos, em harmonia com o cotidiano desapressado da antiga capital goiana. Mulheres como a voluptuosa Carolina, irmã de Isabel, ou a resignada Ângela, a matriarca, ou ainda Zenóbia, a ex-escrava que é torturada por conta dos amores proibidos com o patrão.
Ao longo do romance, Rosarita usa a metáfora dos “elos da corrente” para falar da força da família que é o núcleo central da obra: os Vilhem, poderoso clã comandado pelo coronel e senador Alfredo Vilhem, latifundiário que gozava de enorme prestígio e influência na então província de Goiás. Entretanto, esses elos, ao mesmo tempo que unem, também aprisionam, sobretudo as mulheres, obrigando-lhes a cumprir estritamente o papel que lhes cabia dentro da sociedade patriarcal e escravocrata.
Elos da mesma corrente não é um romance feminista ou transgressor, longe disso. A preocupação da autora era apresentar um painel histórico sobre a sociedade goiana na virada do século XIX para o XX, que, apesar dos ventos modernizantes que chegavam ao país, permanecia firmemente arraigada no modelo baseado na política coronelista, no latifúndio e na exploração do trabalho escravo, mesmo após a abolição da escravatura, já que a condição miserável dos trabalhadores negros continuou inalterada. No entanto, a forma como o olhar de Rosarita penetra no ambiente doméstico, tanto da casa-grande quanto dos casebres dos pobres agregados das fazendas, compõe um relato sensível e detalhado do modo de vida das mulheres, de diferentes classes sociais, desse período.
No ano seguinte à sua publicação, em 1959, Elos da mesma corrente recebeu o Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da Academia Brasileira de Letras. Décadas depois, Rosarita publicou, em 1985, Sombras em marcha, um romance histórico sobre a Guerra do Paraguai, projeto literário que ela havia idealizado antes de Elos da mesma corrente. Ela também atuou como colaboradora de revistas e suplementos literários de Goiás e Minas Gerais e escreveu ainda poemas e crônicas.
Também descendente de uma tradicional família vilaboense, como a que retrata no romance, Rosarita Fleury, tal qual sua personagem Isabel, percorreu caminhos pouco usuais se comparada às mulheres de sua época em Goiás, ao se arriscar pelos domínios então predominantemente masculinos da escrita. E o mais importante: foi ainda uma das primeiras, na literatura goiana, a tratar dos dramas femininos, a dar voz às mulheres, em uma sociedade que as condenava, e as condena até hoje, ao silenciamento e à invisibilidade. Por esse pioneirismo e por suas qualidades como narradora, a sua obra merece ser revisitada.
Maravilha Rosângela como a coluna Mulherzinhas resgata essas histórias extraordinárias de figuras que civilizaram a duras penas nosso mundo. Grata.