A edição número 1.598 da extinta revista Manchete, datada de 4 de dezembro de 1982, anunciava para alegria dos cariocas: “Borges no Rio: das bibliotecas para os psicanalistas”. E acrescentava em subtítulo: “Com pequeno atraso de datas, ele manda na frente um poema inédito”. Mas foi a alegria de um gol anulado. Vale o poema. Mexendo no meu baú de espantos, encontrei o texto que redigi e a revista publicou.
“Foi transferida para o começo de dezembro a série de conferências que o escritor argentino Jorge Luis Borges [1899-1906] faria, no Copacabana Palace, na última semana de novembro. A necessidade de descansar após uma intensa agenda na Alemanha – onde a programação cultural que cumpria sofreu alguns atrasos – o levou a decidir passar alguns dias em Buenos Aires antes de vir para o Brasil.
Agora, um poema, chamado 1982, anuncia sua chegada ao Rio, em 4 de dezembro, para uma série de conferências sobre os temas Metáforas, Ficções e Sonhos, a convite da sociedade psicanalítica Letra Freudiana.
– Seria uma arrogância de nossa parte – diz Eduardo Vidal, analista da Letra Freudiana – achar que Borges nos homenageia com o poema. É certo que ele ficou muito admirado com o nosso convite para falar no Rio. Ficou, sobretudo, surpreso com o interesse de ‘gente tão jovem pela obra de um velho como eu’, segundo afirmou. Trata-se, porém, de uma ocasião especial, que o poema bem representa, pois é inédito até mesmo na Argentina.
Vidal visitou Borges no seu apartamento da Calle Maipú, em setembro. Confiou-lhe o projeto e o desejo de contar com sua presença e palavra. Borges aceitou com entusiasmo. Vidal lhe sugeriu dois temas: Metáforas e Ficções. Borges disse: ‘No les gustaría que también hablara de los sueños?’ – Borges foi escolhido – diz Francisco Aguiar, também da Letra Freudiana –, por numerosos pontos de vista em comum com a psicanálise. Em primeiro lugar, a questão da linguagem, com que Borges faz um teste permanente. Será que ela pode dar conta do universo? Tal como a psicanálise, principalmente a de orientação lacaniana, o escritor sente que há algo que desliza, que escapa. Não é possível dizer toda a verdade, as palavras faltam. Daí a metáfora.
O que a Letra Freudiana pretende, segundo seus membros, é simplesmente escutar a linguagem do poeta, para saber dos limites da psicanálise. Vidal sustenta que a realidade tem algo de opaco à significação, e em torno disso se tecem os jogos de representações. Daí as ficções, que não se opõem ao real, mas estabelecem um jogo com a vida, com o universo, os símbolos, os seres imaginários, uma impossibilidade tão presente na obra borgiana e vivida com uma atitude adulta, irônica e sofisticadamente elaborada do ser humano para consigo mesmo.
Os psicanalistas da Letra Freudiana apontam para um entrecruzamento de temas e campos de interesse comum na obra de Borges e na psicanálise. Há um gozo infinito com o texto. Há o prazer de brincar com a palavra, a enorme alegria de criar uma língua nova. Daí que o atraso do escritor argentino traz uma compensação: haverá uma quarta palestra, sobre o escritor irlandês James Joyce, cujo centenário de nascimento se comemora este ano. Joyce, diz Borges, criou uma língua. Por isso o admira. MANCHETE publica abaixo o 1982, com exclusividade mundial.
1982
Un cúmulo de polvo se há Um cúmulo de pó se formou
formado en el fondo del no fundo da estante, detrás da
anaquel, detrás de la fila de fila de livros. Meus olhos não o
libros. veem. É uma teia-de-aranha
Mis ojos no lo ven. Es una para meu tato
telaraña para mi tacto. É uma parte ínfima da trama
Es una parte ínfima de la trama que chamamos a história
que llamamos la história universal ou o processo
universal o el processo cósmico. cósmico.
Es parte de la trama que abarca É parte da trama que abarca
estrelas, agonías, migraciones, estrelas, agonias, migrações,
navegaciones, lunas, navegações, luas, pirilampos,
luciernagas ,vigílias, naipes, vigílias, naipes, bigornas,
yunques, Cartago y Cartago e Shakespeare.
Shakespeare. Também são parte da trama
También son parte de la trama esta página, que não acaba de
esta página, que no acaba de ser ser um poema, e o sonho que
un poema, y el sueño que sonhaste ao amanhecer e que já
soñaste en el alba y que ya has esqueceste.
olvidado. Há um fim na trama?
Hay un fin en la trama? Schopenhauer a acreditava tão
Schopenhauer la creía tan insensata como as caras ou os
insensata como las caras o los leões que vemos na
leones que vemos en la configuração de uma nuvem.
configuración de una nube. Há um fim na trama? Esse fim
Hay un fin en la trama? Esse não pode ser ético, já que a
fin no puede ser ético, ya que la ética é uma ilusão dos homens,
ética es una ilusión de los não das inescrutáveis
hombres, no de las inescrutables divindades.
divinidades. Talvez o cúmulo de pó não
Tal vez el cúmulo de polvo no seja menos útil para a trama
sea menos útil para la trama que as naves que carregam um
que las naves que cargan un império ou que a fragrância do
império o que la fragancia del nardo.”
nardo.
Yo estoi muy contento por me comunicar con usted