[Coautores: Vítor Hugo dos Reis Costa[1] e Andre Koutchin de Almeida[2]]
A obra Filósofo em meditação[3], do famoso Rembrandt (1606-1669), holandês que sedimentou sua fama com pinturas barrocas no século XVII, retrata uma cena impregnada de solitude e reflexão, tendo como elemento principal um homem sentado sendo banhado por uma luz externa ao ambiente. O título ajuda a dar uma ideia do que se passa: um filósofo alcançando a verdade por meio de uma quieta meditação. Artistas talentosos utilizam técnicas para dinamizar suas pinturas, porém, essa obra opta por destacar a parte estática desse meio estético: toda a composição parece parada, como se meditasse do mesmo modo que o homem retratado, afim de captar algo além.
Os trabalhos de Rembrandt são considerados atemporais e repletos de méritos, porém esse carrega um valor a mais: o de expor uma clássica visão da prática filosófica, caricaturando o filósofo como aquele que se empenha em tratar da razão em sua forma pura, isolado do mundo quando faz seu ofício. Essa narrativa não é nova e seria seguro afirmar que, de certo modo, faz parte da própria tradição filosófica esboçar o suprassensível como matéria-prima do filósofo, aquilo que não se lastreia na realidade sensível. Entretanto, é incorreto afirmar que essa representação da filosofia é última, pois existem aqueles que divergem na forma de abordar a imagem do filósofo.
Antes de expor uma perspectiva diferente, é imperativo esclarecer como a filosofia é frequentemente interpretada. Quando se fala de filosofia, em especial para aqueles que não têm muita familiaridade com o assunto, é justo que imaginem grandes pensadores, esquemas e conceitos abstratos e frases difíceis. “Filosofar” aparece como sendo uma atividade essencialmente abstrata de formar ligações e argumentos com conceitos que não existem para o olhar, o tato ou qualquer outro sentido corpóreo, uma atividade que exige esforço das nossas capacidades “imateriais”.
Quando se trata de interpretar os textos de filosofia diante dessa perspectiva, a maneira em que é feita essa análise propõe um ponto focal, uma essência da filosofia. Victor Goldschmidt, em anexo a seu livro A religião de Platão, estabelece uma divisão metódica na interpretação dos sistemas filosóficos baseada em como o texto é analisado pelo leitor. A leitura se dá em dois tempos, a saber, no tempo lógico e no tempo histórico. Em suma, o tempo lógico determina o texto em si como fonte principal do trabalho filosófico. O argumento é que a interpretação se satisfaz apenas com o que está escrito. A obra tem seu tempo interno: do movimento dos argumentos, das teses e antíteses. O tempo histórico é, por sua vez, distinto do primeiro: o filósofo deve ir além do sistema para interpretar o texto, procurar entender fatores externos que podem ter influenciado a gênese da teoria, que muitas vezes não se encontra no texto. Goldschmidt chega à conclusão de que o tempo lógico deveria ser a escolha daqueles que se pretendem filósofos:
Que os movimentos filosóficos se cumpram num tempo próprio, isso significa, essencialmente, que a filosofia é discurso, que a verdade não é dada em bloco e de uma só vez, mas sucessivamente e progressivamente, isto é, em tempos e em níveis diferentes. (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 145).
Goldschmidt explica que é um erro elencar componentes extratextuais procurando uma origem teórica, pois é arriscado propor causas e elementos que não eram a intenção do autor em vez de se deter no texto em si. O filósofo trata do pensamento em sua forma mais pura e mesmo na situação da ação real ele deve se preocupar com aquilo que mais se aproxima da abstração. Isso é a reprodução da figura tradicional do filósofo, e Goldschmidt traduz em palavras o que Rembrandt figura em imagem.
O filósofo assume, nessa perspectiva, um papel de distância social, ocupado demais com devaneios. Essa visão, contudo, flerta com um perigoso reducionismo, pois, como já observou Hegel (1995, p. 145), em seu comentário sobre os sete sábios da antiguidade, o início da filosofia é também um inegável fenômeno político. No primeiro tomo das Lições sobre a história da filosofia, Hegel aponta nomes de alguns legisladores gregos que, mesmo tido por historiadores como simples conselheiros, carregavam uma disposição filosófica. Do pouco conhecimento que resta desses pensadores, fica claro que suas ideias se debruçavam na sabedoria comum sobre assuntos cotidianos da Grécia antiga. Entende-se, assim, que a filosofia está intrinsecamente ligada ao contexto que cerca o pensador.
A contextualização para interpretar a filosofia é um elemento valorizado por Hegel, e suas obras utilizam a conjuntura política, social e histórica para afirmar uma multiplicidade causal do pensamento filosófico. Vejamos, por exemplo, como o filósofo Herbert Marcuse desenvolve a perspectiva de Hegel.
Em Razão e revolução (1978), o filósofo visa logo no primeiro capítulo introduzir a filosofia de Hegel para substanciar o restante do livro, fazendo-o, entretanto, de uma maneira peculiar: separando o cenário sócio-histórico e o cenário filosófico. No primeiro, pontua as influências liberais oriundas da Revolução Francesa e como estas se modificam ao serem tratadas pelos intelectuais alemães. No segundo, não há apenas uma análise dos textos de Hegel, também há uma apresentação daqueles autores que serviram de oposição teórica ao que Hegel conjecturava. Observa-se que Marcuse começa com a situação política das épocas anteriores e contemporânea a Hegel, acentuando a importância que o autor dá aos movimentos que levaram à elaboração da teoria, isto é, uma admissão de que argumentos não “nascem” no momento em que são escritos e não advêm do inexplicável ininteligível. Existe sim um movimento das teses e argumentos, porém eles são observáveis na história e não apenas no âmago da obra. O livro de filosofia, nesse sentido, também é um documento material de seu tempo. Caso Marcuse fosse se valer do modo tradicional de interpretar filosofia, não se preocuparia com a Revolução Francesa, a situação política alemã ou o empirismo inglês, já que o próprio escrito deveria bastar.
Com efeito, o método defendido por Goldschmidt não conseguiria lidar com a filosofia hegeliana, que não se guia apenas pelo texto e nem pretende que o leitor também o faça. Marcuse esclarece:
O sentido de uma obra verdadeiramente filosófica altera-se com o tempo. Se os seus ensinamentos dizem algo que seja essencial, com referência aos fins e interesses dos homens, estes hão de apreciá-los sob nova luz, caso se verifique qualquer alteração fundamental da situação histórica. (MARCUSE, 1978, p. 1).
O “Filósofo” de Rembrandt é, sem dúvidas, uma representação clássica. Entretanto, a filosofia, tal como os quadros de arte, pode ser mais que um retrato estático. Seria talvez prudente dizer que devemos ir além do exame interno do texto ao tratar da filosofia. Será que devemos continuar com nossa visão fixada no método dos manuais ou, como os grandes artistas, podemos encontrar novas perspectivas se deixarmos nossas dúvidas pincelarem a interpretação?
[Revisão de Pedro Silva e Bruno Ibanês. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: A religião de Platão. 2. ed. São Paulo: Difel, 1970. pp. 139 – 147.
HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la historia de la filosofia. Tradução Wenceslao Roces. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1995.
MARCUSE, H. Introdução. In: Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. pp. 17 – 3.
[1] Doutor em Filosofia pela UFSM. E-mail: costavhr@gmail.com
[2] Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FACH/UFMS), no curso de Filosofia. e-mail: andre.almeida@ufms.br
[3] Disponível em: https://www.rembrandtonline.org/. Acesso em: 8 fev. 2023.
O artigo é o oitavo da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.
- Culpa e consciências limitantes, de Luiz Augusto Flamia e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/18/culpa-e-consciencias-limitantes/.
- Monzani e a filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues, Paula Entrudo e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/25/monzani-e-a-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Como abordar textos filosóficos?, de Natasha Garcia Coelho e Paula Entrudo, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/01/como-abordar-textos-filosoficos/.
- Engajamento e crise: os desafios científicos que a filosofia enfrenta no mundo contemporânea, de Pedro H. C. Silva, Ilker Luiz Alves Batista e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/08/engajamento-e-crise-os-desafios-cientificos-que-a-filosofia-enfrenta-no-mundo-contemporaneo/.
- A renovação líquida de Orfeu, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/15/a-renovacao-liquida-de-orfeu/.