É de conhecimento de todes que Goiânia não tem bar. Digo mar. Há, entretanto, nuances que solapam a suposta ausência e que concretizam elementos de mar neste ou naquele bar. Logo ali, linhas à frente, trago concretudes deste líquido argumento salgado no cálido asfalto do cerrado.
Também é de conhecimento generalizado o fato de que para muitos o bar é lar. Condição esta mais latente e gritante para o gênero masculino, que dispõe de maior apreço pela sua autodestruição (seria esta uma condição genética ou biológica de preservação do próprio planeta ou da espécie?).
Sim, não só em Goiânia, mas no Brasil raso ou profundo adentro, não me parece arriscado afirmar que o bar é um ambiente majoritariamente masculino. Mas há aqui e acolá no bar-mar de Goiânia notórios contrapontos, ilhas marítimas de cerrado com Iemanjás que têm suas caudas feitas de troncos retorcidos e que nadam em ambientes áridos, abençoando bocas com goles de Ambev.
Na rua oito de baixo, sento num domingo de sol (mesmo de noite faz sol por aqui) doutro lado da calçada. Se chego antes das quatro, ainda não há João, vulgo ligeirinho, mas há implacável ou impávida e com as costas curvadas do tempo, sentada em uma cadeira de plástico que não tardará a ser comida de peixe no mar: a Cida. O bar da Cida é a Cida. Cida é a cidade, Cida e sua idade de vó, Cida em algum domingo com seu neto no colo, Cida e sua capacidade de sorrir para as amigas que bebem ao meu lado do outro lado da calçada. Cida e sua indisponibilidade nada sutil e toda sensata de não dar bola nem gentileza extra pra gente como eu.
Deste outro lado da calçada tanto eu, que nunca recebi um sorriso de Cida, quanto as suas amigas, que invariavelmente o recebem, sentamos embaixo de árvores de chapéu de sol. Sim, essas que costumam viver entre calçadões e areias no Brasil beira-mar. Embaixo delas, a brisa leve como chumbo das tardes de setembro se torna um fio mais ameno. Nada lembra o ar úmido que vem do mar, mas quem sabe as tempestades de areia que bailam nos desertos. Todo domingo é um deserto, mesmo perto do mar. O álcool que resseca mas refresca é servido com olhar desatento de Cida todos os domingos, faça sol ou faça dois sóis. Cida é a cidade inteira de domingo.
Certa noite de sol, não de domingo, eu embaixo de um dos chapéus de sol, chega um sujeito todo transtornado, o que não seria grande novidade se ele não estivesse fazendo algo entre uma dança e uma anunciação de ataque com um belo facão enferrujado. Alguém tem a ingênua ideia de chamar a polícia. Esta chega com seus costumeiros modos e gera ainda mais cólera no ferro enferrujado, na mão que já não dança do homem transtornado. Jogo de pegar revólver no meio das mesas, embaixo dos chapéus não dava. Bater e (até) matar ali também não podiam (mesmo sendo o baixo centro, ainda não é a longínqua periferia). Moral da história: os policiais apanhavam da impossibilidade de serem o que sabem, a violência. Eis que então vem a Cida, atravessa a rua com uma arma de construção em massa: um prato de comida. Dá o prato ao homem, pega a ferrugem do facão em troca, dá o facão aos que sem ser violentos pouco sabem, os coloca dentro do carro com luzes piscando e agradece, minimizando quiçá o constrangimento de ferro que se viu naquela calçada. O homem do ex-facão, agora prato e faca, come pacientemente sentado ao meio-fio, embaixo dos mesmos chapéus de sol que eu. Era noite, fazia sol na cidade, Cida.
Qualquer tartaruga marítima que come canudos sabe que dez mais oito dá dezoito. E lá se pode encontrar mais uma rainha do bar-mar da cidade que tem seus próprios brilhos azuis de um ar sem mar que mata. O Ponto 18 da tia (para os chegados ou sem noção, para os que carecem de uma tia e achando que podem proclamá-la). A dona Marlene, síndrome de Cida, não sorri. Eu mesmo nunca vi, Cida ainda escolhe, dona Marlene ao que me parece não tem amigas que vão ao seu bar, por isso não ri. Mas dona Marlene, assim como Cida, é avó e tem com frequência maior que Cida a presença de seus netinhos circulando entre tampinhas e palitinhos de espeto. Claro que é redundante afirmar que, tanto na Cida como no Ponto 18 da dona Marlene, são servidas jantinhas maravilhosas, mas este texto não é um guia gastronômico.
Como em outras partes de um bar-mar, há uma ilha no Ponto 18. Como se sabe a definição de ilha marítima é um pedaço de concreto cercado por asfalto. Quando se aproxima das onze da noite, pouco antes do fechamento, sobretudo em dias de terça ou quarta, os poucos carros que passam produzem uma sinfonia de mar que daria inveja a John Cage.
Isso não é um guia gastronômico, mas aos sábados é possível encontrar uma saladinha de chuchu servida junto à feijoada da dona Marlene. Haverá outra assim em qual parte do mar?
Sair do centro de Goiânia rumo ao norte, mar de latossolo adentro. Chegar nas divisas do país Itatiaia, adentrá-lo sem passaporte (haverá um texto para o país-bairro por aqui um dia). Lá, no seu epicentro, a sede governamental, palácio e panaceia festiva da República Federativa Autônoma do Itatiaia, encontra-se o bar da 12, que na placa tá escrito bar do Leandro, mas que é (porque é) mesmo da Silvaninha. Se Cida só ri para as tuas e dona Marlene não ri pela ausência das tuas, Silvaninha ri até mesmo quando meia dúzia de bêbados insuportáveis não vai embora às três da manhã. É verdade que no bar da 12 há o melhor disco de carne da cidade, do país Itatiaia e da galáxia, e é feito pelo Leandro. Parabéns e obrigado querido Leandro, mas o bar é da Silvaninha. Vocês hão de me perguntar, mas o que há de mar neste bar? Já notaram como o horizonte do cerrado é oceânico? O torresmo da estufa, seu sal solícito, poderia ser uma canção do Dorival Caymmi.