A literatura, como arte, sempre prestou um serviço primoroso, não só no acesso a emoções e afetos, mas também na possibilidade de fazer o leitor pensar sobre, e até ressignificar, os espaços sociais e simbólicos nos quais ele se move.
A temática do romance A ocupação, de Julián Fuks, mistura essas duas premissas de modo exemplar, impulsionando aquilo que é de natureza estética na direção do que é político. Com narrativa em primeira pessoa, a trama traz a metáfora da ocupação, em torno da qual gira a ideia de ruína. A ruína de tudo, inclusive do país.
O narrador-protagonista se chama Sebastián. Ele está sendo afetado pela derrocada social e política que testemunhamos nos últimos anos. O livro foi publicado em 2019 pela Companhia das Letras. Logo, é também uma espécie de prenúncio de dias muito ruins que ocupariam nossa existência, porque todo espaço vazio, ou que se esvazia, sujeita-se a uma ocupação.
Fuks se vale da autoficção para criar a forma de seu romance, explorando os limites da realidade circundante de sua própria vida e da ficção, superpondo o tecido do real e o tecido ficcional de modo a criar um novo campo de possibilidades. E assim traz para a superfície o confronto entre existência e poder.
Como existir senão ocupando os espaços, sobretudo se eles aparecem em ruínas e precisam ser ressignificados? Esse questionamento, essa posição no mundo tem de levar em conta a questão do outro, porque é na relação com o outro que se rearranjam os lugares. A ocupação está diretamente ligada ao outro, seja um sujeito, seja um objeto.
Geralmente, na autoficção, o nome do personagem que narra a história é o mesmo do autor, criando uma confusão intencional na recepção do romance. Neste caso, Fuks arquitetou um artifício interessante.
O que é narrado vai ao encontro do que se sabe mais ou menos sobre as circunstâncias da vida social do autor. Seus pais são argentinos, de origem judaica, o pai é psicanalista, e ele é um escritor etc., exatamente como na sua família real. Mas autor e personagem de ficção têm nomes diferentes. E os dois se cruzarão numa estratégia de criação muito interessante.
O drama de Sebastián é que ele está em volta a ruínas. O que se apresenta nos primeiros capítulos é a figura de um homem com o pai no hospital, morrendo de câncer, a mãe magrinha, mirrada, sofrendo ao lado do moribundo, e a mulher pronta para conceber um filho (após dez anos de resistência à ideia da maternidade).
Na primeira noite de primavera, talvez, naquela noite, a mulher disse a Sebastián que deveriam pensar em ter um filho. “Naquela noite que soprava o último resquício de inverno.” Veja que uma estação está ocupando o lugar da outra.
Força poética
Em meio a essas emoções pessoais, Sebastián acompanha a luta de cidadãos por moradia em São Paulo. Então, há também as ruínas do Hotel Cambridge, na Avenida 9 de Julho, 210, que um movimento de sem-teto ocupou.
A metáfora da ocupação domina o rumo da prosa. Uma vida que vem ao mundo, vem para ocupar um espaço. O bebê primeiro ocupa a barriga da mãe, depois assume seu lugar na existência social e as rodas de afetividade da família.
A morte que se avizinha, como a do pai, também é uma ocupadora. Ela vem e se instaura. Além disso, embora o narrador não fale, a morte ocupa a alma de quem fica. O pai, num leito de hospital, conta ao filho como o câncer se tornou ruína em seu corpo, ocupando-o.
Quando Sebastián diz “pai, eu vou ter um filho”, surge uma figura de entroncamento na narrativa, entre realidade e ficção. O pai diz: “Que notícia linda, Julián. Obrigado por me dizer.” E o narrador responde: “Obrigado a você, pai. Mas aqui você me chama de Sebastián.”
Esse trecho é o coração do romance, não só o romance de Fuks, mas de todo romance contemporâneo com a proposta estética de simultaneidade. Em função da criação da narrativa, Sebastián ocupou o espaço de Julián, a ficção ocupou o espaço da realidade.
E agora, naquele momento da narração, a realidade é que ocupa o espaço da ficção. Há um cruzamento de sentidos, uma polissemia que dá ao texto uma força poética muito grande.
Para dissipar sua angústia e realizar um ato que faça a arte interferir na realidade, Sebastián procura os sem-teto que ocuparam o Hotel Cambridge, e faz amizade com eles. Diz que quer escrever um livro sobre eles.
Neste momento, o narrador começa a fazer parte da aquela ocupação, conversa com os moradores, ajuda-os, cita nomes que flertam com os nomes de lideranças reais do movimento de sem-teto de São Paulo, como Preta, alusão a Preta Ferreira, mulher negra, coordenadora do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), que ocupou de fato o Hotel Cambridge, em 2019.
Na ocupação, Sebastián conhece o sírio Najati, que deixa as ruínas de Homs e de seu país em guerra civil desde 2011 para tentar a vida no Brasil. Obrigado politicamente a se separar da família, a última notícia que tivera dos filhos era que eles estavam no Catar, onde trabalhavam empilhando pedras.
Carmen, alusão a outra liderança do MSTC, Carmen da Silva Ferreira, mãe de Preta, conversa com Sebastián e conta a ele uma experiência de anticidadania vivida pelas pessoas que já estavam assentadas num prédio abandonado no centro de São Paulo. Uma história antiga, diz ela, reforçando o fato de que há um descaso histórico em relação ao déficit habitacional no país.
“Tudo que eles tinham foi destruído, uma construção de anos foi ao chão em poucas horas, sob o peso das fardas e dos cassetetes. Ou melhor, o prédio permaneceu em pé, estático, vazio, indiferente, e ao chão foram as duzentas famílias que ali moravam, fugindo avenida afora com os colchões em cima das cabeças, a passar aquela madrugada, e as seguintes, e as seguintes, debaixo de um viaduto lotado de gente”, diz Carmen. Ou seja, a ruína são mesmo as pessoas, enquanto outras pessoas são a causa dessa ruína.
A narrativa provoca um tipo de incômodo emocional, quase como uma dor, como aquelas dores de quando sentimos a falta de alguém, quando vemos o distanciamento de quem queríamos perto, a dor da perda. O que é contraditório, porque, em vez de perda, a narrativa é sobre ocupação, e neste caso, é ocupação até da dor.
Solidariedade
O romance de Fuks é sobre ruína e ocupação, mas é também sobre solidariedade, como no capítulo em que a mulher está preocupada em não ser mãe, prenúncio do aborto que viria mais tarde. Sebastián a consola dizendo que estará do lado dela, entre as plantas que naquele momento ocupam os espaços da casa no lugar de filhos.
Solidariedade também quando o narrador cede espaço para ser ocupado por outras vozes, entre elas a de uma sem-teto que abandonou o marido em Minas Gerais e foi para São Paulo. “Minha vida era um vazio, feita só do que já não existia. […] O caso é que cansei de ser ocupada, por homem, por rato, por larva. Agora é a minha vez de ocupar.”
Ao passar uma noite no Cambridge, para sentir a ambiência das pessoas naquele local, Sebastián ouve as mulheres ao lado. Uma delas diz que, cansada de tanto humilhação e exploração trabalhando na casa de Madame, roubou tudo que pôde um dia.
Sebastián se sente incomodado com aquela confissão. Ou seja, demonstra-se aí sua alma burguesa. E depois, ao refletir sobre aquele problema, sentiu-se um saqueador de histórias, porque estava lá para entender e escrever sobre o movimento. Uma ocupação de lugar de fala.
A exploração das fronteiras do real e da ficção segue o texto todo, amarrado com tensões dramáticas existenciais e políticas das ocupações, da atuação do poder público como agente dos interesses privados, mandando prender inocentes, perseguindo uma gente que está em ruínas e que precisa de ajuda.
Os personagens são ocupantes do livro, como o próprio Sebastián diz para seu amigo Mia, supostamente Mia Couto, que depois aparece na narrativa escrevendo uma carta para seu amigo Julián. Sebastián diz que sua vontade é de se “debruçar sobre os outros e contemplar seus abismos.”
Privilégio e consciência
O texto é marcado por metanarrativas que constroem significados, obviamente, mas que ao mesmo tempo são como tijolos que ergueram um prédio para um determinado fim (hotel) e, ao cabo, o prédio acaba tendo outro fim, com uma nova ocupação.
“Estou escrevendo um livro sobre paternidade”, diz o narrador, “estou escrevendo um livro sobre a morte”, continua ele, “estou escrevendo um livro sobre a dor do mundo, a miséria, o exílio, o desespero, a raiva, a tragédia, o absurdo, um livro sobre esta interminável ruína que nos cerca, tantas vezes despercebida, mas escrevo protegido por paredes firmes.”
As últimas palavras redimensionam o significado inicial do que ele diz ser sobre o que escreve, porque não se trata apenas de uma questão existencial. Todo o corpo da narrativa é ocupado pela questão política.
Mais do que isso. Trata-se de uma consciência burguesa, ou de uma consciência de classe se colocando como espaço para a questão do outro, de outra classe, a classe de desfavorecidos, de pessoas sem o privilégio que Sebastián tem, o privilégio, por exemplo, de escrever “protegido por paredes firmes”.
Há também pensamento que ocupa outro. O pensamento sobre o filho natimorto é ocupado pelo pensamento sobre os sem-teto, por exemplo. Ou o pensamento sobre a morte é ocupado pelo pensamento sobre a vida, e vice-versa.
O pensamento sobre a estabilidade social, o privilégio, é ocupado pelo pensamento sobre quem não tem estabilidade nenhuma, privilégio nenhum, aliás, sobre quem não tem sequer um espaço próprio, que seria o lar, de onde se inicia a estabilidade.
Sebastián está escrevendo no consultório do pai, que era psicanalista. Na velhice, o pai havia deixado o consultório para atender em casa, e o filho ficou de desmontá-lo. Em vez disso, ocupou-o, passando a chamar a sala de “meu escritório”.
De lá, escreveu o livro. Ele mesmo faz uma consideração: “Num Édipo tardio, terei desejado matar o meu pai e ocupar o seu trono, e amparar a minha mãe num abraço já descarnado?”
Essas reflexões finais de Sebastián geram uma série de implicações, entre as quais a ideia de ocupação da crítica ao próprio texto (metacrítica). E mais adiante, há nova conjetura crítica: “não me encontro no passado do meu pai, em suas palavras e suas ações que pertencem a outro tempo, mas me encontro em quase tudo que ele almeja.”
Aqui, ele chega perto. Afinal, o pai era militante político de esquerda, que chegou a se sentir povo a partir de sua atividade política. Ao construir essa reflexão, o autor cria uma ambiguidade moral interessante para seu personagem.
O que Sebastián quer fazer, frequentando o edifício ocupado, é devorar o povo, de certo modo, ocupando fisicamente o mesmo espaço. Mas essa ocupação, que pode ser um gesto ideológico, como a do pai, não deixa de ser um exercício intelectual. Afinal, pode ser apenas para escrever o livro. Pode não ser um ato político.
Vale lembrar que essa ambiguidade não existe no autor. Ele é um dos poucos que levantam a voz para dizer claramente que o momento é de enfrentamento em todas as frentes, inclusive na arte. Ou será que existe?