[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Em noite tropical
A noite se perfumava
Da brisa do roseiral.
Respirei o ar de Deus
No sono do vegetal,
Mas não gostava da lua
Com seu brilho mineral
Porque sem dizer a ela
Me fazia muito mal
Temer a todo momento
A voz de um policial.
Inês despida na relva
Era uma Inês irreal.
O claro-escuro do ventre
Luzia na noite nua
Como as luzes de um punhal.
Quando depois se vestia
A aurora amadurecia
As copas do pinheiral.
A palavra escrita (1951)
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[2]
Poema de Paris
Sopravam ventos largos sobre a rua
Que vai de meu hotel até meu bar.
Mais longe, além do bar, surgiu a lua
Vulgar e triste sobre o bulevar.
Vous êtes triste? – perguntou-me nua
Uma sueca com que fui amar.
Triste de uma tristeza como a tua,
Como a lua no céu, triste e vulgar.
Sobre os Campos Elísios, cor de vinho
Chegava a madrugada… e seu carinho
Fez do luar, luar de Apollinaire –
Além do bar, da lua, da mulher.
A palavra escrita (1951)
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[3]
Litogravura
Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre de tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.
Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.
Testamento do Brasil (1966)
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[4]
O morto
Por que celeste transtorno
tarda-me o cosmo do sangue
o óleo grosso do morto?
Por que ver pelo meu olho?
Por que usar o meu corpo?
Se eu sou vivo e ele é morto?
Por que pacto inconsentido
(ou miserável acordo)
aninhou-se em mim o morto?
Que prazer mais decomposto
faz do meu peito intermédio
do peito ausente do morto?
Porque a tara do morto
é inserir sua pele
entre o meu e o outro corpo.
Se for do gosto do morto
o que como com desgosto
come o morto em minha boca.
Que secreto desacordo!
Ser apenas o entreposto
de um corpo vivo e outro morto!
Ele é que é cheio, eu sou oco.
Testamento do Brasil (1966)
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[5]
Copacabana 1945
I
As fichas finais do jogo
foram recolhidas; fecha-se
o cassino; abre-se em fogo
o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.
E ser quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.
As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.
Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.
Às três no Copabacana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.
Às quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.
Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro
às sete continuavas.
II
A mensagem abortada
de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.
Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.
Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.
Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.
Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.
Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.
III
Dava um doce calafrio
no esmalte azul recortado
súbito à tarde um navio.
O mistério transparente
do navio que passava
é ter tornado presente:
por fantasia do fado
naquele tempo ao passar
já parecia passado.
Quando ela achava o caminho
na ponta do Arpoador
eu ficava mais sozinho.
Pois um homem-gaivota
segue um barco, mesmo quando
não lhe conhece a derrota.
Latitude, longitude,
compasso de meu exílio…
Um homem sempre se ilude.
E quando o mar sem navio
ficava, eu olhava para trás
e me embrulhava no Rio.
IV
Anoitecia em cristais,
em paz de pluma tornando
à dor de Minas Gerais.
A dor que dá mas devora
como um blues comercial
no carro, quando é a hora.
E quando à janela o cone
de sombra me abismava
eu ligava o telefone.
Esse aparelho surdia
da ramagem de meus brônquios,
negra liana, e subia
em tropismos machucados,
pelas calhas do silêncio,
pelos terraços pasmados,
pela traqueia das áreas,
como tromba de elefante
ou aranhas solitárias
articuladas ao fio
como língua de serpente
a vasculhar o vazio,
a buscar qualquer canal
de amor (ou fosse miragem!)
no deserto vertical.
V
Às vezes chegava a lua
no despudor deslumbrante
da mulher que chega nua.
A mulher transverberada
entornando-se amorosa
nas vagas da madrugada.
Algumas foram no peito
do casto lençol do céu
para o cosmo do teu leito.
VI
Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.
VII
Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,
pelas tardes comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,
eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.
Testamento do Brasil (1966)
Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte (MG) em 28 de fevereiro de 1922 e morreu no Rio de Janeiro no dia 1º de julho de 1991. Foi jornalista, tradutor, cronista e poeta. Cursou sucessivamente odontologia, direito e veterinária, mas não chegou a concluir nenhum deles. Em 1945, vai ao Rio de Janeiro conhecer o poeta Pablo Neruda e decide mudar para a cidade. Ingressa na imprensa local, escrevendo crônicas, poemas e artigos sobre literatura para o Correio da Manhã, O Jornal e Diário Carioca. Publicou os seguintes livros de poemas: A palavra escrita (1951), O domingo azul do mar (1958), Testamento do Brasil (1966), Transumanas (1977), Balada de amor perfeito (1979), Arquitetura (1979), Diário da tarde (1981), Trinca de copas (1984) e Poemas (antologia, 1984). Em 2022, com seleção e posfácio de Luciano Rosa, a Companhia das Letras publicou Poesia, que reúne sua obra poética, além de poemas esparsos e traduzidos. O pesquisador afirma que, “Criada sob o signo da pluralidade, a lírica de PMC revela-se refratária a categorizações simplistas quando submetida ao olhar atento.” Como cronista, publicou mais de uma dezena de livros, entre os quais O cego de Ipanema (1960), O colunista do morro (1965), Hora do recreio (1967), O amor acaba – Crônicas líricas e existenciais (1999), Alhos e bugalhos (2000), O gol é necessário – Crônicas esportivas (2000). É autor ainda da antologia Forma de expressão do soneto (1952).