A evidência conquistada pela extrema-direita no Brasil nos últimos anos, além de ter revelado uma série de questões mal resolvidas, em especial as relacionadas a uma tendência autoritária presente na sociedade brasileira, favoreceu o surgimento de vários fenômenos intrigantes. Um deles se refere ao fato de os termos “fascismo” e “fascista” terem extrapolado as páginas dos livros de história, dos livros de teoria política e das discussões acadêmicas, obtendo um amplo espaço nas redes sociais e provocando desde debates calorosos e profundos até discussões medíocres e vazias. Além do ambiente virtual, os termos passaram a fazer parte de conversas cotidianas nos centros urbanos, podendo serem ouvidos com certa facilidade em mesas de bares e restaurantes, em filas de supermercados e padarias, bem como em shoppings, parques e praças.
Não sendo um “privilégio” exclusivamente brasileiro, mas um fenômeno político que atinge diversos países, o reaparecimento da extrema-direita também reacendeu o interesse mundial pela figura daquele que é considerado o inventor do “fascismo”: Benito Mussolini. Interesse que pode ser verificado em algumas produções recentes. Duas delas se destacam e merecem serem visitadas pela qualidade e relevância: o documentário Mussolini, o primeiro fascista, de Serge de Sampigny, e, o romance M, o filho do século, de Antonio Scurati. Sem o intuito aqui de dar spoiler acerca dessas notáveis produções, penso que seja necessário ressaltar que ambas oferecem um consistente panorama sobre a figura de Mussolini e o uso da “violência política” como uma das ferramentas mais eminentes do fascismo.
Igualmente, não pretendo esmiuçar o caráter histórico do fascismo – elencando múltiplas referências que busquem dar conta desse aspecto do movimento político e tampouco realizar um levantamento das principais referências atuais sobre o “fascismo”. De maneira modesta, tenho a intenção de lançar algumas luzes sobre dois pontos (tratarei deles mais adiante) presentes na extrema-direita vigente que nos possibilitam atestar o seu alinhamento com a ideologia do fascismo; porém, antes disso, convém apresentar pelo menos uma sucinta definição de “fascismo” como forma de preparar o terreno para examinar os pontos que tenho em mente.
Com esse propósito, recorro ao Dicionário de política, de Norberto Bobbio. Nele, encontramos páginas elucidativas sobre o “fascismo”, assinadas pela socióloga italiana Edda Saccomani. Reproduzo – com adaptações – aqui um pequeno trecho que sintetiza o que é, em sua definição, o “fascismo” e algumas de suas peculiaridades:
De maneira geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional […], em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo […], pela mobilização das massas […]; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa […].
No meu entendimento, essa definição tem consistência. O que faculta tecer breves comentários sobre algumas dessas peculiaridades, para, em seguida, abordar os dois pontos que mais me interessam.
Na definição de “fascismo” de Edda Saccoamni, encontramos uma lista robusta de elementos que o caracterizam e, ainda que estejamos em um tempo e espaço distantes do período de Mussolini, alguns dos elementos destacados permanecem no nosso tempo, cobertos com “novas roupagens” (trajados com as roupas do conservadorismo e maquiado com as cores mais perversas do neoliberalismo). Seguindo tal definição e tomando a “ultradireita” brasileira como referência, observa-se que a extrema-direita “tupiniquim” compartilha de diversos traços do fascismo. Alguns, entretanto, mesmo que aparentemente “atualizados”, saltam aos olhos por manterem fortemente seus cernes: o uso de “uma ideologia fundada no culto ao chefe”, “oposição ao socialismo e ao comunismo”, “mobilização das massas”, emprego da “violência política”, utilização de “propaganda” e “dos meios de comunicação de massa”.
Ora, nos quatro anos em que a extrema-direita brasileira esteve no poder, verificou-se um esforço constante na construção de um culto à personalidade do então chefe do Poder Executivo, um ressurgimento das cinzas do medo em relação ao fantasma do comunismo (o mesmo discurso utilizado no contexto do golpe de 64 no Brasil e em nome de “Deus, pátria e família”), um frequente empenho em mobilizar as massas apropriando-se de símbolos nacionais e de datas históricas; a entrada do emprego da “violência política” na ordem do dia por meio de ameaças e ofensas a políticos e partidos de oposição, membros do Poder Judiciário, jornalistas, ambientalistas, mulheres, povos originários, negros, pobres, LGBTqia+, professores, cientistas, defensores de direitos humanos; o manuseio da propaganda e dos meios de comunicação atuais para a disseminação de fake news e o uso delas como instrumento de manipulação das massas e propagação de uma ideologia política cimentada justamente na violência e no ódio. Compreendido o fascismo como uma ideologia e um movimento político fundamentado na “violência política”, daqui por diante me dedicarei a dois pontos que parecem implícitos à definição de fascismo apresentada por Edda Saccoamni, e, controversamente, também parecem escapar de sua definição. Para tanto, avançarei a explanação, contando com o inestimável auxílio de um dos integrantes da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, e o de alguns outros teóricos contemporâneos.
Em sua obra Dialética do esclarecimento, Adorno, em colaboração com Horkheimer, enfatiza elementos de permanência do fascismo em uma abrangente reunião de aspectos e fenômenos culturais e políticos no contexto imediato do pós-guerra. Posteriormente, o pensador alemão verifica suas análises e, no ensaio Estudos sobre a personalidade autoritária, explicita as condições objetivas e os pressupostos subjetivos responsáveis por conservar o fascismo como predisposição imanente nas democracias. Igualmente em seu estudo A técnica psicológica das palestras radiofônicas de Martin Luther Thomas, Adorno realiza uma análise que se inscreve como uma crítica às pregações desse líder religioso transmitidas pelo rádio, nas quais nota-se uma forma de aliciamento como o de um agitador fascista que mobiliza o fanatismo religioso de seus ouvintes e seguidores com a finalidade de conquistar uma adesão a um programa de “violência política”.
Em seus estudos, Adorno também tratou do estreito laço entre o tema do “ressentimento” e a sedução da mecânica fascista no nascimento das democracias de massa. A compreensão desse laço possibilitou o pensador a elaborar o seu conceito de “complexo de usurpação”, isto é, “uma predisposição manifestada em indivíduos conservadores pertencentes à classe média da sociedade que defendem de maneira difusa e semiconsciente uma ditadura comandada por grupos econômicos poderosos”. A ideia de “ressentimento” pode ser atestada em Adorno em um fenômeno singular que ele denomina de “complexo de usurpação”, que parece-me ter indícios e dados fortes contemporâneos ao nosso atual contexto. Começo tentando explicar a semelhança entre “ressentimento” e “complexo de usurpação”.
Valendo-se de diferentes suportes teóricos e buscando examinar fenômenos em conjunturas socioeconômicas e políticas díspares, alguns pesquisadores contemporâneos (Arlie Hochschild, Wendy Brown e Éric Fassin) vêm apresentando interpretações auspiciosas no que tange à ascensão de líderes e de movimentos de ultradireita contemporâneos, assinalando a função de proeminência exercida pelo ressentimento. Um dos pontos centrais nessas interpretações é o de que o ressentimento nessas conjunturas não equivale à noção de ressentimento vista na Genealogia da moral, de Nietzsche, isto é, o ressentimento presente na moral dos escravos, mas, sim, o de “supostos destronados”, a saber, de homens brancos que até bem pouco tempo atrás se amparavam em privilégios concedidos pelo racismo e pela misoginia para remediar a queda de seus níveis de renda relacionados à própria lógica do neoliberalismo.
Fassin (2019), por exemplo, sustenta que o ressentimento não se situa entre os “perdedores da globalização”, diferentemente daqueles que, afortunados ou não, remoem uma visão de que outros, compreendidos como inferiores, conseguiram melhorar sua “situação socioeconômica”. Nesse sentido, a ideia de ressentimento parece ressoar como uma espécie de projeção exprimida por aqueles que residem no núcleo das instâncias de poder e de dominação para nutrir as expectativas de que a ordem do mundo se dirige frequentemente pelo melhor e pelo mais justo direito.
Pode-se afirmar que a noção de “complexo de usurpação” de Adorno lida com questões semelhantes. Vejamos: a noção é empregada no estudo da personalidade autoritária nos EUA dos anos de 1950. Observando o perfil dos opositores das políticas do New Deal, de Roosevelt, Adorno constatou que esses opositores acusavam Roosevelt de subverter a democracia estadunidense, de alterar o status quo, e, sobretudo, de promover a usurpação das posições ou lugares de liderança no Estado e na sociedade. Desse modo, a ideia de usurpação apresentaria sinais de se fixar em estruturas profundas da subjetividade humana.
Mesmo se expressando com uma impetuosidade distinta, “o medo de ser um filho ilegítimo” poderia ser incluído no desenvolvimento convencional da formação da subjetividade moderna, por conta disso, para Adorno, em tal caso, a alegoria de Édipo seria uma base de leitura inteligível. A despeito de não se relacionar com uma predisposição inata, a consciência de tal medo se alarga na medida em que se fomenta a ruptura entre o que seria concebido como a “ordem natural das coisas” e aquilo que é assegurado pela própria “civilização”. Respaldada no instável campo do pátrio poder e da monogamia, a residência de qualquer família burguesa apenas pode conservar sua unidade enquanto seus integrantes projetam em outrem a sombra de ser o autêntico usurpador.
Não obstante, na percepção de Adorno, ao invés de se limitar às disputas no âmbito da família, essa mecânica das pulsões subjetivas penetraria em outras divergências e encadeamentos sócio-objetivos. Em termos políticos, ao preservar inalteradas as fontes de riqueza material, a democracia circunscrita a seus termos e regulamentos formais demonstraria em algum momento que a escolha dos governantes oculta o que, na realidade, consiste tão somente em uma encenação. Ainda que a falta de validade desse estado seja claramente perceptível, o ressentimento em face dos privilégios e dos verdadeiros donos do poder inclina-se a ser coibido no âmbito da consciência, promovendo uma combinação emocional e imprecisa que oscila entre a anuência forçada às regras do jogo e a objeção diante delas.
Assim, o ódio é retirado das engrenagens de opressão e de controle passando a se direcionar para aquilo que, como se usurpassem as hierarquias de autoridade, infringissem certos regulamentos e articulações referentes às relações de poder vigentes. Por meio de mecanismos que aprofundam as discrepâncias entre a desigualdade econômica e a igualdade política formal resguardada, o ressentimento inclina-se a se erguer contra a ideia de democracia em si, em especial opondo-se àqueles que, de forma direta ou tácita, representam algum tipo de ameaça à manutenção do “estado das coisas”.
Considerando que a ultradireita brasileira apresenta diversas características que nos possibilita enxergar seu alinhamento com a ideologia do fascismo, cumpre um derradeiro questionamento: de que maneira a extrema-direita tupiniquim utiliza a combinação entre “ressentimento” e “complexo de usurpação” para atrair setores da sociedade? Entre as possíveis chaves de leitura para confrontar essa questão, julgo que uma delas pode ser realizada a partir de uma análise em torno do crescimento assombroso das igrejas evangélicas neopentecostais nas últimas décadas e de um exame acerca da real dimensão da conquista de alguns espaços na sociedade brasileira por pessoas e grupos historicamente desprestigiados.
Por um lado, o aumento exponencial das igrejas evangélicas neopentecostais no Brasil tem ao menos dois resultados imediatos: o prestígio adquirido por pastores e sua influência direta na política nacional. Assim como Martin Luther Thomas, o pastor examinado por Adorno, os pastores brasileiros (de maneira mais ampla e talvez mais perniciosa) utilizam rádio, televisão e internet não apenas para seduzir as massas como para eleger políticos que os representam e que seguramente introduzirão no campo da política agendas que lhes interessam, ao mesmo tempo que impedirão o avanço de pautas a que eles se opõem. Embora pareça-me que as neopentecostais atraiam um público maior nas classes populares, seus discursos também alcançam a parte reacionária da classe média. Atuando principalmente nesses setores da sociedade brasileira, elas difundem concepções que se encontram em conformidade com a visão de mundo dos ressentidos, isto é, daqueles que de algum modo se sentem usurpados em suas posições sociais.
Por outro lado, simultaneamente, as políticas públicas protagonizadas pelos governos Lula e Dilma – que possibilitaram uma mobilização social, logo, a ascensão de indivíduos e grupos desprestigiados socialmente e materialmente desamparados – serviram, em contrapartida, presume-se, de combustível para a emanação de uma mentalidade vista em homens acometidos pelo complexo de usurpação, isto é, de homens brancos que passaram a se sentirem ofendidos pela escalada e visibilidade social de negros, pobres e mulheres.
Recapitulando as reflexões de Theodor Adorno, penso que elas podem nos oferecer pelo menos duas lições: a primeira é a de que mesmo após a derrocada do fascismo as tendências fascistas permanecem vivas nas democracias e as atuais crises na democracia proporcionam condições objetivas e pressupostos subjetivos que podem despertar o retorno do fascismo. A segunda consiste em uma provável superação da ameaça fascista nas democracias pela via do fortalecimento do compromisso com a autonomia efetiva da vida social como único caminho para afugentar os espectros do fascismo e inibi-los para que eles não mais nos atemorizem no presente. O fascismo não se refere a um pavor externo às democracias, mas constitui uma potência social imanente e recorrentemente pronta a se converter em um fenômeno de massas que poderá ter êxito ocasionalmente.
Referências
ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Unesp, 2020.
ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
ADORNO, Theodor. The psychological techique of Martin Luther Thomas’ radio adresses. In: Theodor W. Adorno. Soziologische Schriften II (Org.) Rolf Tiedemann. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag. Adorno, Theodor. 2011.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: UnB, 2008.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
FASSIN, Étic. Populismo e ressentimento em tempos neoliberais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2019.
HOCHSCHILD, Arlie. Strangers in their own land. New York: The New Press. 2018.
SAMPIGNY, Serge. Mussolini, o primeiro fascista. Documentário. França, 2022.
SCURATI, Antonio. M, o filho do século. São Paulo: Intrínseca, 2020.