Parece seguro afirmar que nossa principal distinção em relação aos outros animais são o trabalho e a linguagem, haja vista essas apropriações serem consideradas o melhor modo de nos definirmos como seres da cultura. Contudo, para que os costumes determinassem grande parte da condição humana, antes de qualquer outra coisa, tornou-se necessário o rígido controle dos instintos, permitindo, dessa maneira, alcançarmos o nível satisfatório de civilidade. Autores, desde Platão (428-347 a.C.) a Freud (1856-1939), de diferentes modos oferecem bons estudos acerca dos desejos e, apesar da vasta literatura do assunto, considero pertinente pensarmos na seguinte pergunta: por que vemos tanta repressão contra a sexualidade?
Freud soube dar amostras das consequências do excessivo controle do desejo sexual. Suas pesquisas abordam o acúmulo de normas sedimentadas, alojadas no inconsciente, desencadeando indecisões permanentes nas pessoas. Falando de forma muitíssimo abreviada, para o “pai da psicanálise”, o ego se sente obrigado a administrar os desafios da vida diária ao passo em que tenta solucionar de forma realista o conflito de interesses provocado pela vontade do prazer desenfreado do id e das regulações do senso moral do superego. A energia mal administrada dessas três forças resultaria nos sintomas da neurose, afundando os indivíduos numa série de crises existenciais e, consequentemente, na completa ignorância daquilo que poderiam aprender de melhor a respeito dos seus próprios desejos. Assim, não é de se espantar que em diversas relações sexuais a “atração” e o “desejo” venham mal acompanhados da contradição sentimental de “repulsa” e de “culpa”.
E como lidar com essa contradição? Apenas pelo olhar filosófico, acredito não ser exatamente o caso de negá-la, mas paradoxalmente acolhê-la, considerando o fato de as relações interpessoais costumeiramente serem ambíguas e contraditórias. Como declara George Bataille, a manifestação erótica resulta do triunfo do desejo sobre a proibição. Outrossim, dar vazão ao “proibido” é bem diferente de eliminá-lo. Nesse aspecto, faria bem, caso segura e confortavelmente “violássemos” certas imposições sociais, a fim de estimular a batalha entre o erotismo e as normas do cotidiano. Parafraseando o pensador francês, a nudez destrói a boa figura que as roupas emprestam; as palavras proibidas, a imaginação exacerbada, as transgressões, a violação do corpo, a desmesura habilmente levam-nos à fuga de nós mesmos. Experiências dessa natureza tornam-se desfrutáveis conquistando o êxtase e permitindo, mesmo que em tão rápidos momentos, a perda da nossa individuação.
O alcance desse esplêndido efeito durante o deleite sexual num mundo marcado de interdições e da culpa costuma ser intrincado, embora ao mesmo tempo sugira o estímulo e a excitação. A internalização do desejo levaria a certos extravasamentos como forma de dar vazão ao acúmulo de forças represadas pelo moralismo. Muitos caem no consumismo da indústria pornográfica, na intenção de atender o recôndito imaginário desta sociedade repressora, logo, incapaz de tratar abertamente do próprio desejo. Não tenho interesse em defender a pornografia. Dentre as diversas razões, saliento sua enorme distância do uso correto daquilo que entendo pela ideia do erótico. Ao falarmos seriamente de sexo, quase sempre vemos o termo mascarado no vocabulário acadêmico, mas isso também está longe de ser a verdade. Bem diferente de nós, outras culturas lidam há vários séculos com leveza e menores extremismos acerca do tema. Vale mencionar Ovídio quando escreveu A arte de amar (Ars amatoria), os japoneses, a “arte erótica”, sem deixar de fora o famoso Kama Sutra, dos hinduístas.
E quanto ao Ocidente? Façamos justiça ao lembrar os breves trechos do livro Cantares, de Salomão, contido no Velho Testamento. De forma marginal, acrescento os Evangelhos Apócrifos, textos encontrados em Nag Hammadi, no Egito, contando a surpreendente história de um Jesus, casado, permitindo-se desfrutar das experiências sexuais na companhia da sua esposa sacerdotisa. Na oportunidade, reitero uma parte da cultura oriental, defensora do sexo como chave de acesso ao plano transcendente, ou seja, o tantra, considerado uma prática milenar, capaz de ascender a chama erótica existente no homem e na mulher, conduzindo-os ao nível espiritual muito além das discussões moralistas.
Em tempos de globalização, há quem acredite estarmos superando a repressão e descobrindo cada vez mais o corpo por meio de ativismos em defesa da pluralidade. Sendo honesto, acho precipitado demais apoiar essa impressão. A despeito da defesa incondicional da diversidade e contra qualquer tipo de relação abusiva, ainda assim não evitamos, pelo mau uso de certas narrativas, o risco de transformarmos o remédio no veneno. Perdoem-me pela brevidade desse apontamento, mas a linguagem parece ter se tornado um perigoso campo de batalha, sob o pretexto identitário de condenar a religião e em alguns casos a heteromasculinidade devido ao seu triste histórico do patriarcado no Ocidente. Decerto, não devemos rechaçar o passado violento, refletido na imposição de gênero no transcorrer da nossa civilização, entretanto, lembrem-se da diferença fundamental entre o remédio e o veneno, dependendo exatamente da precisão na sua dose.
É preciso salvar o erotismo! Não através dos discursos acadêmicos nem, tampouco, na suposta vulgaridade da indústria cultural ou nos discursos sectários envoltos de profundo ressentimento. Nada de tão moral, científico ou político está à altura do erotismo, pois somente no mistério da experiência do erótico subjazem de forma intraduzível o segredo e a satisfação. Só é erótico quando se é transgressor e contraditório, sendo então democrático porque se concede a oportunidade de muitos virem a experimentá-lo, independentemente do sexo ou de algum tipo de engajamento. “Para aquele que não pode se furtar a ele, para aquele cuja vida se abre à exuberância, o erotismo é, por excelência, o problema pessoal. É ao mesmo tempo, por excelência, o problema universal. O movimento erótico é também o mais intenso dos movimentos (à exceção, se se quiser da experiência dos místicos). Por isso está situado no cume do espírito humano” (Bataille, 1980, p. 245).
Referências
BATAILLE, Georges. O erotismo: o proibido e a transgressão. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1980.
FREUD, Sigmund. Obras completas volume 6. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentaria de uma histeria (o caso Dora) e outros textos (1901-1905). Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.