[Coautor: Pedro H. C. Silva[1]]
Segundo Alain Badiou (1937), a filosofia está ameaçada no mundo contemporâneo! Para o filósofo francês existem quatro componentes para se fazer filosofia: a revolta, a lógica, o universal e a aposta. Porém, o mundo contemporâneo é contra esses quatro elementos, pois 1) ele prioriza a “gestão”, fundamentada numa falsa ontologia: a da ordem natural das coisas, e desde o fracasso da implementação comunista, o novo espírito do capitalismo se opõe à crítica e exige de cada pessoa apenas “adaptação”, não sobrando nada além do cálculo individual, isto é, a decisão pessoal, rejeitando assim o componente da revolta; 2) sustentar uma argumentação coerente é difícil, já que este mundo é refém do esquecimento e das imagens, uma vez que toda comunicação está sob domínio da mídia, que é instantânea e incoerente, desprezando assim o componente da lógica; 3) o fator totalizante desta era é o dinheiro, toda manifestação é objetificada e mercantilizada: “Fora da universalidade do mercado e da moeda cada um está encerrado em sua tribo” (BADIOU, 1994, p. 13), comprometendo assim o componente do universal; e 4) quanto à decisão arriscada, este mundo a teme! Sua obsessão por segurança é tamanha que vivemos presos pensando no futuro e preocupados em protegê-lo, temendo assim o componente da aposta e do risco.
Portanto, a principal tarefa da filosofia nessa situação é saber se ela é capaz de se salvar. Para Badiou, isso só pode ser feito mediante nossa capacidade de salvar esses quatro componentes que constituem aquilo que o filósofo caracteriza como desejo de filosofia. Salvar a filosofia é salvar o desejo de filosofia por meio da organização de uma resistência do pensamento.
De acordo com o pensador, a filosofia sempre desconfia do saber tal como ele se apresenta, seja a respeito do mundo, seja sobre si mesmo. Essa revolta ocorre no campo da razão, portanto, está submetida à lógica, razão pela qual, conforme o filósofo, a filosofia sempre nutre: “uma admiração pela racionalidade científica” (BADIOU, 1994, p. 11). Podemos dizer que a primeira lei que a filosofia coloca em vigor para si mesma é a de se revoltar dentro da lógica.
Badiou também diz que há na filosofia o desejo pela universalidade, de servir ao todo e não somente ao particular, mas para que isso ocorra é preciso apostar, por isso a universalidade está ligada a uma decisão arriscada. Portanto, o desejo de filosofia é uma autocrítica (revolta) coerente (lógica) capaz de tomar decisões arriscadas (aposta) e abrangentes (universal).
Com efeito, com quais ferramentas podemos salvar o desejo de filosofia? Segundo Badiou, o desejo de filosofia pode ser salvo por meio da transformação das duas principais tendências do pensamento filosófico contemporâneo: a tendência hermenêutica e a tendência analítica. Ele nos alerta que a herança de Martin Heidegger (1889-1976), como o maior representante da tendência hermenêutica, sacrifica a universalidade, “porque liga o destino da filosofia ao da história do Ocidente” (BADIOU, 1994, p. 15), e também sacrifica a lógica, já que reduz a ciência à mera técnica, negando sua posição como a de um tipo específico de pensamento, admitindo apenas a arte como modo de pensar. Sacrificar a universalidade e a lógica significa, segundo Badiou, a impossibilidade de resistir às pressões do culturalismo e do mercado. Já a filosofia analítica sacrifica a revolta e a aposta. Em suma, sua principal preocupação é fazer crítica lógica, aderindo ao mundo “como ele é” – “ordem natural das coisas?” –, tornando o componente existencial da revolta nulo. Também o componente da aposta/risco é esvaziado pela tendência analítica, por seu forte caráter de disciplina acadêmica.
Para salvar os quatro componentes do desejo de filosofia, é preciso ir além da filosofia hermenêutica e da filosofia analítica. Mas ir além, conservando o que elas têm de melhor, por exemplo: o que a filosofia hermenêutica tem a nos dizer sobre a existência, o tempo e o poema, e o que a filosofia analítica entende sobre a linguagem, lógica e ciência. Em outras palavras, segundo Badiou, a filosofia deve preservar sua revolta e seu senso crítico, sem se alinhar ao capital, permanecendo empenhada na criação de um projeto político emancipador. Ela deve distinguir a ciência da técnica produtivista e aceitar a primeira como um pensamento, assumir a multiplicidade cultural sem abandonar o conceito de universal, não se inserindo de maneira reducionista ao escopo ocidental ou a qualquer outro. Ela também deve encarar as perturbações da realidade e não só o que é (identidade), mas o que surge (devir). Ela deve estar ligada aos acasos da paixão, transformar em pensamento o improvável e o indecidível. Nas palavras de Badiou:
No fundo, a filosofia só pode resistir no mundo tal como é se souber discernir as experiências que são heterogêneas à lei deste mundo: as experiências políticas radicais, as invenções da ciência, as criações da arte, os encontros do desejo e do amor. É disso apenas que ela deve se nutrir. Quer dizer, daquilo que tem a estatura de um evento para o pensamento. É preciso para isso um âmbito filosófico, um âmbito conceitual capaz de estruturar o desejo de filosofia. Capaz de acolher os eventos do pensamento. Capaz de não ceder às tentações da opinião. (BADIOU, 1994, p. 17).
Para que essa filosofia possa existir, ela deve ser: a) antes da estrutura, um evento; b) absolutamente única, assim como uma paixão ou uma revolução; c) ela deve ser capaz de flertar com o inesperado; e d) ter um dialeto que saiba interpretar e citar um poema, assim como um axioma (BADIOU, 1994, p. 18).
Tal filosofia deve admitir múltiplas verdades, “para nada sacrificar do desejo de filosofia” (BADIOU, 1994), isto é, prezar pelas descobertas do real. Sendo assim, além das verdades científicas, haverá também verdades amorosas, artísticas e políticas. Toda verdade, inclusive a verdade ontológica, está ligada à ocasionalidade dos eventos e não somente ao exercício crítico. Conforme Badiou, “Platão observava que para ir à Ideia do Belo era preciso o encontro repentino com um belo corpo” (BADIOU, 1994, p. 19). A verdade deve ser singular e universal simultaneamente. Uma verdade deve pertencer ao campo do pensamento, o que implica dizer que não podemos conhecê-la, pois ela não é redutível a uma figura cognoscível, conforme a perspectiva de Heidegger, citada por Badiou: “Uma verdade é um buraco no saber. Pode-se pensá-la, mas não conhecê-la” (BADIOU, 1994, p. 19). Enfim, devemos reconhecer que “o ser de uma verdade obedece a certas configurações matemáticas, mas que o processo de uma verdade não se deixa verdadeiramente pensar senão com meios poéticos” (BADIOU, 1994, p. 19).
Só assim, transformando essas duas vertentes da filosofia contemporânea em uma só, a hermenêutica e a analítica, organizaremos a resistência do pensamento que salvará o desejo de filosofia, afinal “O binômio de Newton [teorema matemático] é tão belo quanto a Vênus de Milo [escultura artística]” (BADIOU, 1994, p. 19).
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BADIOU, Alain. Situação da filosofia no mundo contemporâneo. In: BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito. Tradução Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 11-19
[1] Estudante de Filosofia na UFMS. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
O artigo é o segundo texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira o primeiro texto publicado:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.