[A imagem do alto é uma fotoperformance intitulada praia de escombro, de Glauco R. Gonçalves, com registros de Henrique de La Fonte, participação de Berta Valentin e contribuições de montagem e filmagem de Luiz da Luz. O cenário é o antigo prédio da Celg]
Na Avenida Anhanguera, número 7171, tira um sete, cê já sabe. O Nazareno Confaloni morreu em 1977. Mas não vim exercitar cabalismos, talvez algum canibalismo, se considerarmos o fim de formas urbanas únicas, e da própria noção do conceito de cidade, se realizando ao passo que se mastiga, mordendo, despedaçando o que a constitui, lhe dá identidade, ou alma (pra agradar os mais metafísicos ou até o “Frei Confa”, quiçá).
Ainda num desses preâmbulos de uma vontade sempre latente de texto que é caos em sua forma, gostoso avisar que não esperem uma destas defesas nostálgicas da preservação da forma arquitetônica mais careta e carente vigente (toda limpinha e sem vida). Se tudo der certo aqui, lanço uma voadora na especulação e teço alguma apologia da forma (urbana) em estado de caos, como retrato vivo de um tempo meio morto.
Acho até que só dá pra escrever este texto aqui assim porque o tema que o estrutura, um prédio abandonado com um painel de milhões depredado dentro dele, só poderia existir numa cidade com seus apagamentos próprios. Convido as-os-es (e)leitora/o/es a visitar nesta mesma Ermira um texto que escrevi e intitulei de “colonialismo interno do eixo Rio-São Paulo”. Nem sei mais se o título é exatamente assim.
Mas o fato é, se um artista modernista fuderástico de São Paulo ou do Rio estivesse arregaçado e largado dentro de um prédio de um arquiteto e artista também muito interessante no/do seu tempo (Gustav Ritter), esse prédio e esse painel teriam outra repercussão, outros preços e pesos, inviável seria algum desprezo, e aqui, pra além do apagamento do eixo cultural SP-RJ, que tudo vê desde que dentro dele, mora uma potência supimpa, porque é neste apagamento que outras corporalidades sombrias e renegadas moraram pelos últimos dois anos. É dentro deste descaso em estado de história que a gente tem brincado, criado, inventariado, visto matos, lodos e fungos crescer, visto latinhas de bavária cortadas ao meio proliferar. É só por conta do desdém, do desconhecimento sobre Ritter e Confaloni no (epi)centro cultural brasileiro, que nóis e os nóia tamo desfrutando de alguma apropriação criativa ou destrutiva, ou ambos, nessa obra-prima da arquitetura goiana e indiscutivelmente brasileira.
É um texto curto, não vou sustentar tudo que gostaria, é mesmo pra partes irem caindo, outras se querer pararem em pé, não vou ter tempo nem saco pra entrar a fundo no debate do tombamento, mas de pronto defendo uma tese: o prédio da antiga Celg e depois Seduc, feito por Ritter com um painel de Confaloni que foi conflagrado pra que o prédio pudesse ser derrubado, é um museu de caimentos. Nunca o primeiro em termos temporais, talvez o primeiro, por sua potência a ser reivindicado como tal, e aqui o faço: tombem o prédio e o deixem cair lentamente, pois trata-se de um centro de convívio, não está abandonado, eu, outros e outras tantas artistas, os nóia, as plantas e os restos de marmitex estamos lá.
Tal como está, caindo lento, o prédio é vigoroso fruto de estudos da potência construtiva do modernismo goiano-brasileiro. Dentro dele caem o gesso, o vidro, mas a estrutura impávida olha pra quem passa dentro do eixão na Anhanguera. Tomemos ele como campo de experimentações e usos inviáveis e inviabilizados até aqui. Um centro de práticas sobre a queda do céu. Um laboratório profícuo de exercícios para viver as cidades que se avizinham no tempo, de um futuro que é está aqui. O primeiro tombamento que envolve o deixar ir caindo. O tombamento que atenta contra a buniteza que atrai a especulação e mata o solo com o cifrão.
Antes de falar do painel, vale mencionar/mensurar que o prédio é mesmo cabuloso gente! [Ainda dá tempo para um turismo de escombros. Em parceria com a CVC[1] e a 123 milhas temos levado grupos aos domingos.] Exercita o bê-á-bá dos elementos cruciais do modernismo, mas desfila em seu estilo especificidades finas. Não tem janelas, é todo tomado por vãos em suas duas longas, quase infinitas laterais. A luz abunda, a teia emaranha toda a frente do prédio, faz seus desenhos no chão e na parede. Aliás, a única parede, a única parede nas laterais do prédio todo, vou de novo: a única parede nas duas laterais do prédio todo é onde está o longo antes lindo, agora endemoniado, mural do Frei.
O painel do Confaloni foi arregaçado de tinta em 2020, foi construído nos meios da década de 1960, quase uma década depois do prédio. Evidentemente quem fudeu o painel foram os donos que achavam que assim poderiam botar o prédio abaixo. Mal sabiam eles que produziriam uma obra única, o único Confaloni Conflagrado. A obra-prima da violência extirpadora da especulação.
Agora, em agosto de 2023, os donos do prédio pagaram, dizem eles, 500 mil reais para uma empresa retirar o painel e o restaurar, sim, retirar a parede com a pintura que eles mesmo depredaram. Cortaram em oito pedaços de Confaloni de concreto com tinta preta por cima. Cada pedaço tem em média uma tonelada e meia. O que mais pesa é a tinta preta cheia de demônios que foi lançada pelos especuladores sobre o Frei. O Frei tomado por demônios, poderia ser também este o título do texto.
A tinta jogada pelos donos para matar o prédio foi ficando linda na medida em que as infiltrações foram se alastrando, fungos, musgo, microvidas sobrepondo o painel, criando outro, em movimento interrupto.
Os donos do prédio cortaram o Frei em oito não por amor à arte, evidentemente. Extirparam o painel pra exterminar o prédio. De quebra perceberam que podiam sair de bons moços salvando a obra que eles violaram, rasuraram. Corre o risco de a gente bater palma pra eles quando a obra voltar recomposta. Corre o risco de eles ainda venderem o painel restaurado pro Estado por um preço maior do que gastaram restaurando a obra que eles deliberadamente sabotaram.
O prédio segue lá, e enquanto ele não cai, a gente segue fazendo nossa praia nele, muitas vidas de diferentes reinos também seguem. O Confaloni sob demônios já não mais faz falta, sentimos saudades. Não rezaremos por ele.
[1] A artista Cássia Nunes desenvolve, nos últimos três anos, um trabalho performático intitulado Visita Guiada ao Complexo das Artes Goianas. Num primeiro momento, o trabalho foi realizado na forma de performances transmitidas por lives na internet, nas quais a artista percorre um roteiro na rodovia GO-080. Estas ações instauram um jogo performativo com elementos do imaginário da cultura goiana, de paisagens urbanas da capital do Goiás e de práticas institucionais do campo da arte. Vestindo uma máscara da tradicional festa das Cavalhadas de Pirenópolis- GO e uma capa vermelha, a artista se transfigura em vaca-heroína-educadora, guiando em telepresença o espectador. Registros fotográficos dessas ações compõem um conjunto de cartões-postais criados como estratégia de circulação da performance. Atualmente, a artista especula a continuidade do trabalho através da realização de visitas guiadas para grupos interessados em conhecer o circuito situado na GO-080. Para acionar essas visitas Cássia idealiza anúncios baseados na estética e na linguagem da CVC Viagens. Cabe destacar que a menção ao convite, ainda que fictício, para visitar o Confaloni conflagrado tem notória influência das conversas e vivências, dos muitos povoamentos e entremeios elaborativos e criativos que pude com-viver com Cássia. A visita guiada feita por ela fomenta e alimenta ideias que passeiam também em meus turismos de escombros. Não se assustem, portanto, se vocês encontrarem, ainda que de modo invisível, uma figura com máscara de vaca pirinopolina no meio deste texto, caminhando entre escombros e GOs da cidade que brilha azul, como os chifres da máscara usada por Cássia.