[Coautor: Pedro H. C. Silva[1]]
Ao nos depararmos com o ensaio de Lucas Goes, O contemporâneo disforme, publicado neste Projeto Ensaios recentemente, a seguinte citação do filósofo italiano Giorgio Agamben nos chamou a atenção:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 59, apud GOES, 2023).
A descrição da ação do deslocamento decorrida da inatualidade constante do nosso tempo certamente é nosso maior desafio. Essa técnica que nos é mais rara em momentos de tantas certezas individuais e coletivas é, justamente, a caraterística que nos determina. É necessário ter força para desempenhar essa ação do deslocamento, pois tudo que nos permeia diz constantemente que devemos permanecer em repouso, isto é, no adormecimento das nossas verdades de grupo, já que é através da imobilidade em meio a tanto caos de informações que alcançamos algum descanso. Descanso é algo em que todos temos deleite, o repouso da verdade coletiva demonstra um conforto único. Por isso, talvez, o deslocar, conforme Agamben aponta, tenha nos chamado tanto a atenção. Mas qual é o local que nos caracteriza como contemporâneos? Como apreendemos a técnica do deslocamento? O que nos impulsiona a buscar esse desconforto do movimento para nos definirmos em meio ao contemporâneo?
Quando tudo que constrói nossas realidades fundamentadas em diferentes certezas sobre a verdade estão projetadas de modo a sempre recriar um lugar de repouso para que nos mantenham lá, no trabalho, na religião ou nas redes sociais, o convite permanece: crie um ambiente confortável para você aqui e permaneça conosco! Esse é o convite que recebemos das variadas tribos, que têm cada uma as suas verdades confortáveis. Esse estado de compreensão me deslocou até a memória de um personagem que perambulou entre diferentes escolas com abordagens distintas sobre a Verdade. Esse personagem muito conhecido é Sócrates. Após sua investida em conhecer qual seria seu local em Atenas, viu-se frustrado em não pertencer harmonicamente a nenhuma das escolas atenienses, conforme ouvimos de sua própria voz, escrita por Platão em Fédon,nos seus últimos momentos de vida:
Minha esperança de chegar a conhecer a essência das coisas começava a esvair-se. Pareceu-me que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem, estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. (PLATÃO, 1995, p. 139, 99e).
É perfeitamente perceptível que caminhamos, mesmo que em grupos distintos, em uma via de desunião, cada qual com sua verdade absoluta, impondo sobre o outro – que é visto como completo ignorante – a pretensão do saber que se tem. Conforme Sócrates esclarece em Fédon, quem sabe ainda estejamos em busca das causas do movimento dos objetos que nos cercam, olhando diretamente para eles e nos cegando para as possibilidades das conexões dos objetos que o cercam. Nos satisfazemos, na vida cotidiana, muitas vezes de um conhecimento das partes, que mais uma vez irá nos levar ao erro da afirmação de uma verdade universal, como se de fato tivéssemos alcançado o saber do Ser em Si, sem que ao menos tenhamos deslocado nosso olhar aos outros pontos de interação que confluem, assim como um eclipse observado em uma poça d’água.
Provavelmente, o que nos falta é a descoberta tal qual a que teve Sócrates após seu encontro com Parmênides, de que sua teoria das Ideias estaria incompleta. Assim, é necessário ter consciência que nosso saber da mesma maneira também continua incompleto, mesmo que hoje tenhamos um arcabouço informativo mais robusto do que Sócrates, continuamos na mesma posição. É preciso reconhecer que nosso saber, após todo o acúmulo de saberes, ainda permanece um não saber. Só assim, como Sócrates, conseguiremos atingir em primeiro estado o saber que não se sabe em absoluto, por exemplo, aquele que pretende descobrir qual é a melhor forma de se criar uma criança, qual é a maneira mais efetiva de se administrar os recursos públicos, qual é o melhor modo de organização de um sistema educacional, qual é a origem dos nossos impulsos de desejo etc.
É importante restabelecermos a obviedade da necessidade do debate sobre não só essas questões, mas sobre todas as demais que regem a vida humana, pois, por mais assustador que isso seja, ainda não conhecemos a verdade sobre nós e tampouco sobre como nos organizar coletivamente. Em vez disso, criamos modelos de ajuntamentos de pequenos nichos em que cada grupo reverbera uma única posição acima dos demais.
Quem sabe seja necessário um desencontro para nos encontrar, assim como fez Sócrates, aquele que não pertenceu aos chamados physiólogoi e nem tampouco se viu em uma situação de conforto após conhecer o argumento de Anaxágoras sobre o nous. Nada disso o fez encontrar seu lugar de descanso e é, então, por isso que Sócrates apresenta em sua jornada a característica de atopia, que é certamente o que melhor o define: Sócrates e seu não lugar (átopos). O não lugar de Sócrates toma o centro do seu destino narrativo no interior dos diálogos de Platão, apresentando-o como um estranho deslocado. O não pertencimento de Sócrates em meio às escolas de filosofia grega o conduz a uma jornada única, a de conhecer o saber que não se sabe. É muito provável que tal saber não era motriz apenas para Sócrates, mas é também para nós. Em uma época de tantas verdades e de tantos saberes, a maioria das conversas do dia a dia são regidas como os diálogos de Sócrates com os sofistas: uma longa elaboração contraditória a fim de saber quem “causou mais” nos infinitos debates sobre tudo.
Quiçá tenhamos que individualmente pensar se os locais de conforto que o contemporâneos apresentam em sua multiplicidade de vertentes sobre a verdade não são apenas um retorno à imobilidade, uma fuga constante do devir em busca do ser. Queremos ser algo dentro de um grupo e pertencer a um movimento que se atrai por uma verdade, mas talvez, ao nos aproximarmos do conforto dessas variadas verdades, percamos justamente aquilo que nos caracteriza como contemporâneo disforme: a habilidade de se movimentar, de mudar, de transmutar e ressignificar; habilidade esta tão rara e tão cara não só a Sócrates, mas a toda história do pensar: a possibilidade do não saber.
Sócrates conheceu através do não lugar, do seu deslocamento, seu gênio: o método dialético fundamentado no não saber, a técnica que capacitou o movimento de Sócrates até o seu destino, que conecta o mortal à imortalidade, aquilo que capacita aquele que não tem lugar. É importante lembrar o quanto nosso momento se revela inatual, o quanto ainda não conhecemos por completo qual é de fato esse destino da humanidade.
Portanto, é fundamental reconhecer o nosso não lugar na contemporaneidade, pois não encontramos a construção do Belo e nem da Verdade do coletivo. Ainda é preciso nos movimentar para que consigamos, através desse desencontro constante de nossa época, aprender a habilidade do deslocamento para fora, para que, só então, possamos retroceder em um movimento verdadeiro para dentro.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó – SC: Argos, 2009.
GOES, Lucas. O contemporâneo disforme. Ermira Cultura. 4 mar. 2023. Disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/. Acesso em: 10 fev. 2023.
PLATÃO. Diálogos II – Fédon, Sofista, Político. Tradução: Jorge Paleikat e Cruz Costa. Porto Alegre – RS: Livraria do Globo S. A., 1955.
[1] Estudante de Filosofia na UFMS. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
O artigo é o quinto texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.