[Coautores: Lucas Giovani Novato Hernandez[1] e Jonathan Postaue Marques[2]]
A psicanálise encontrou no Brasil um terreno fértil para a disseminação e o debate de suas ideias. Seja dentro das universidades, com o estudo de pesquisadores de diversos campos, seja por meio de letras de música, da MPB ao funk carioca, o fato é que os conceitos freudianos são com frequência evocados por aqui. “Freud explica” é uma frase tipicamente brasileira que ilustra bem a influência freudiana no país. Mas o que poderia explicar tamanho impacto? Talvez uma das respostas possíveis esteja em algumas das discussões políticas mais latentes no Brasil, que compreendem as chamadas pautas de costumes.
No campo da filosofia em geral, a psicanálise foi recebida de maneira ampla e diversa, com muitas abordagens críticas, sendo notável a recorrência com que a psicanálise aparece em toda a literatura filosófica do século XX. Especificamente no Brasil, a psicanálise também foi recebida pela filosofia com duras críticas, como vemos há quase um século atrás no moralismo de A verdade contra Freud (1933), de Almir de Andrade. Porém, não se limitando à recepção crítica, há toda uma adesão muito particular por parte de filósofos brasileiros, que inaugurou tendências históricas e linhas de pesquisa fecundas, como é o caso da própria “Filosofia da Psicanálise”, campo de pesquisa que se desenvolveu e é bastante ativo até os dias atuais (FREITAS PINTO et. al., 2021).
Assim como no campo da filosofia, a psicanálise repercutiu em diversas outras áreas das ciências humanas. Mais que isso, extrapolando os muros das universidades, a criação freudiana também se inseriu na cultura popular, com impacto extenso nos movimentos artísticos do século XX. Talvez seja no movimento surrealista que isso acontece de maneira mais direta, já que o conceito de inconsciente é central para a construção de uma “estética onírica”, profundamente inspirada pela obra freudiana, em especial A interpretação dos sonhos (1900).
Na arte brasileira, caso que nos interessa especialmente, a psicanálise produziu efeito semelhante e, assim como no Manifesto do Surrealismo, de André Breton (1924), Freud foi nominalmente mencionado no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1928), mostrando que os conceitos freudianos tinham muito a contribuir para o Modernismo brasileiro. Esse movimento artístico, que repercutiu amplamente na cena cultural e social da época, tinha como objetivo romper com o tradicionalismo, buscando uma revisão crítica do passado histórico e cultural do Brasil, com o intuito de encontrar uma arte genuinamente brasileira. Ao eleger a antropofagia – um ato ritual de comer partes de um ser humano, praticado por alguns dos povos originários –, como o grande símbolo do movimento, os modernistas sinalizavam a necessidade de superar a visão moralista católica imposta. De certa forma, Freud é evocado como um aliado no debate de costumes levantado pelo movimento modernista, por também desafiar o moralismo de sua época e até mesmo explorar o tema da antropofagia, como é visto em Totem e tabu (1913).
Ironicamente, foi na esteira do modernismo que Plínio Salgado ganhou notoriedade. O fundador da Ação Integralista Brasileira (AIB) divergia dos principais nomes da fase Heroica (a primeira geração do movimento modernista), justamente no que dizia respeito a essas críticas à Igreja Católica. A própria AIB foi profundamente influenciada pela Doutrina Social da Igreja Católica.
De Plínio Salgado a Jair Bolsonaro, passando pelo golpe militar de 1964, as chamadas “pautas de costumes” sempre estiveram no centro do debate político brasileiro nesses períodos de polarização intensa. “Deus”, “pátria” e “família” são sempre palavras repetidas na propaganda da direita conservadora brasileira. Se, nesses momentos cruciais da política nacional, as chamadas pautas de costumes ocupam o protagonismo na propaganda política, é possível dizer que as ideias de Freud sobre a sexualidade têm alguma pertinência na hora de refletirmos sobre o país que convive com o maior carnaval do mundo e tem, ao mesmo tempo, uma das maiores populações cristãs.
A recepção e o desenvolvimento da “Filosofia da Psicanálise”, próprias do contexto brasileiro, a menção a Freud no Manifesto Antropófago e sua recorrente presença na cultura popular, e mesmo a participação de psicanalistas em importantes veículos de comunicação nacional, evidenciam que no Brasil atual a psicanálise não apenas sobrevive como continua a se renovar. Todavia, se em um contexto global a psicanálise enfrenta resistências, por que no Brasil ela se mantém proeminente, sendo amplamente difundida?
Os determinantes dessa presença são complexos e multifatoriais, apresentando uma natureza enigmática. É necessário considerar aspectos históricos, tais como a imigração de psicanalistas, a influência francesa na academia brasileira, entre outros fatores. Além desses aspectos, contudo, há algo intrínseco à identidade brasileira que se manifesta no discurso da psicanálise.
A perspectiva psicanalítica de compreensão da identidade não condiz à concepção de uma essência fixa e imutável, enfatizando, ao contrário, a compreensão de um eu fragmentado e em constante conflito. Da mesma forma, a identidade nacional brasileira não pode ser reduzida a uma essência única, e sim compreendida como um fenômeno complexo e multifacetado. O país que é internacionalmente conhecido pelo carnaval, pela caipirinha e pelo futebol, símbolos associados à sexualidade, à liberdade e à malandragem, é, paradoxalmente, um país que apresenta uma forte corrente conservadora.
Essa contradição se manifesta na arte, na literatura e na política, exemplificada anteriormente nos discursos de Oswald de Andrade e Plínio Salgado. Freud já apontava em O futuro de uma ilusão (1927) o lugar da religião e da moral na cultura, com a finalidade de domar os instintos e a própria natureza. O Brasil que conhecemos não é o retrato tupi-guarani com seus rituais antropofágicos, nem tampouco a mera reprodução da cultura europeia. A identidade brasileira é produto de ambos, da relação entre colonizados e colonizadores, do símbolo de suas contradições, seus sincretismos e, por que não dizer, da luta entre desejo e recalque.
Não se trata de psicanalisar e submeter o Brasil a um exercício de diagnóstico, mas de levar em consideração a “neurose social” do país nesse debate, pois essa neurose provavelmente figura como pano de fundo e compõe parte do enigma que é a forte adesão da cultura brasileira à psicanálise. Podemos dizer, nos termos antropofágicos, que a psicanálise é “deglutida” e “devorada” pelos brasileiros, e segue sendo indigesta para muitos, saboreada por outros, e, aparentemente, impossível de ser ignorada.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
ANDRADE, A. A verdade contra Freud. Rio de Janeiro: Schimidt, 1933.
ANDRADE, O. (1928). O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
BRETON, A. (1924). Manifesto do surrealismo. In: TELES, Gilberto Mendonça. Manifestos do surrealismo. Traduzido do francês por Sérgio Pachá. Rio de Janeiro. Nau editora, 2001, p. 36.
FREITAS PINTO, W. C.; PADOVAN, C.; SIMANKE, R.; BOCCA, F. Editorial. Eleuthería, v. 6, n. 10, p. 6-12, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/reveleu/issue/view/666/474.
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IV, V. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987.
FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.13, pp.11-191). Rio de Janeiro: Imago, 1974.
FREUD, S. (1927). O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010.
[1] Publicitário formado pela Universidade de São Caetano do Sul, pós-graduando em Filosofia, Psicanálise e Cultura pela PUC-PR. E-mail: lucas.hernandez26@gmail.com
[2] Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o sexto texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.