Goiânia, 4 de setembro de1997. Essa foi a data em que enviei uma carta à historiadora francesa Elisabeth Roudinesco para que fossem corrigidos alguns erros acerca de psicanalistas e fatos da história da psicanálise no Brasil. Tais distorções seriam publicadas no Dicionário de Psicanálise, um monumento de 874 páginas, de autoria de Roudinesco e Michel Plon. O dicionário, de grande serventia para estudantes e profissionais, teve sua primeira edição brasileira em 1998, e acolheu as correções que foram propostas. O verbete “Brasil” foi refeito, Helio Pellegrino ganhou um verbete só para si, e meu nome foi incluído no índice onomástico. Comentários entre colchetes foram anexados num tempo só depois. Dizia a carta:
“Prezada senhora
Em resposta ao seu pedido que me foi transmitido por Norton Godinho Leão, envio-lhe um material de pesquisa – um projeto que chamo de Livro-Jornal – para eventual utilização na correção de alguns erros que aparecem no Dictionnaire de la psychanalyse, glossaire – Brésil.
Como se sabe, Iracy Doyle morreu de encefalite aguda. Ela não se suicidou. Kattrin Kemper não foi banida, ela rompeu com o modelo da IPA [International Psychoanalytical Association]. Chaim Katz que foi analisando de Kattrin Kemper declarou ao jornal O Globo (27/07/97) que em razão do fato de ser judeu não faria análise com um antissemita. Na mesma entrevista, ele declara também que Werner Kemper foi secretário do DPG, sociedade psicanalítica alemã ligada à IPA, ascendeu com a expulsão dos membros de esquerda e judeus e que foi o psicanalista da mulher de Mattias Goëring [nazista]. No entanto, ele absolutamente não era nazista, garantiu Chaim Katz.[ E se isso foi uma fina ironia, como ele quis mais tarde explicar a piada, o fato é que Katz tentou e não conseguiu fazer análise com Dona Catarina, fosse ela antissemita ou não. By the way, a judia Hannah Arendt não se apaixonou por Heidegger, nazista? Em matéria de amor, o buraco continua sendo mais embaixo.]
O erro mais grave do glossário é a omissão do nome de Helio Pellegrino na história da psicanálise brasileira. O nome de Amilcar Lobo [tenente médico e torturador na época da ditadura brasileira, que pretendia ser analista e para isso fazia análise na SPRJ-Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro, filiada à IPA.] é várias vezes citado (cinco vezes, para ser exato) e o de Pellegrino, nenhuma vez. A denúncia pública contra o apoliticismo dos psicanalistas fora dos seus consultórios e contra a cumplicidade com a ditadura partiu dele, Pellegrino. A psicanálise brasileira, como um todo, não aceitou a ditadura militar, bem ao contrário. Sabe-se também que a crítica mais radical contra a psicanálise partiu dos próprios psicanalistas – Helio Pellegrino, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi – e ela foi tornada pública graças à reportagem publicada por mim, Roberto Mello, sob o título “Os barões da psicanálise” no Jornal do Brasil de 23 de setembro de 1980. Nessa reportagem o nome da SPRJ não foi citado uma única vez. No entanto, a SPRJ vestiu a carapuça, se sentiu atacada e expulsou Pellegrino e Mascarenhas, sem direito de defesa. Os dois analistas recorreram à justiça, tiveram ganho de causa e foram finalmente reintegrados.
O texto “Os barões da psicanálise” teve uma série de efeitos. Ele revelou a falência do modelo de formação de psicanalistas sob a égide da IPA, mostrou a estrutura rígida, autoritária e perversa de instituições submetidas a esse modelo, e foi o ponto de partida para uma denúncia pública da ocultação de Amilcar Lobo, candidato em formação na SPRJ e membro da equipe de tortura praticada nas casernas da ditadura militar. “Os barões da psicanálise” foi o ponto de partida para uma ampla discussão não só sobre as instituições psicanalíticas, mas também sobre o próprio Estado brasileiro. Pela primeira vez, graças ao desdobramento das denúncias públicas de Pellegrino, pôde-se comprovar a prática da tortura nos porões militares.
Trata-se de um fato histórico. Pela primeira vez alguém testemunhou que se torturava no Brasil, e a denúncia não vinha dos torturados, que poderiam ser suspeitos de agir em causa própria, mas sim de um torturador, o trágico tenente Amilcar Lobo.
Desde então, as instituições analíticas acusadas de rigidez passaram por uma série de reformas e de aberturas mais ou menos democratizantes. O Estado brasileiro teve de reconhecer que a tortura é um crime. Houve um avanço civilizatório, pelo menos em termos legais. Não existia sequer uma lei que capitulasse a tortura como crime. A discussão foi tão longe que se chegou a colocar questões sobre os fundamentos do próprio Estado, o que levou o Exército a tentar calar todo o mundo, mas sem sucesso.
Afirmo então que “Os barões da psicanálise” foi um ato analítico, uma interpretação mutativa que contribuiu para a reconstrução, não só da história da psicanálise, mas também da própria história brasileira. Ato analítico de uma psicanálise em extensão, apesar de seu autor ser um jornalista que iria, logo depois, começar sua formação analítica no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, em ruptura declarada com os modelos da IPA e inspirado pelos ensinamentos de Jacques Lacan.
Em conversa recente com o psicanalista Horus Vital Brazil, membro da SPID [Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle] senti sua alegria a propósito da disposição dos autores do Dictionnnaire a fazer a revisão dos erros, e não somente da edição brasileira. Eis o que disse: “Helio Pellegrino é exemplar como psicanalista brasileiro engajado politicamente. Ele não se alienou no consultório. Ele no Brasil e Marie Langer na Argentina, obrigada a se exilar no México. O problema do Helio foi seu pertencimento à IPA. Ele não deixou o Brasil unicamente por causa de sua “brasilianidade” fecunda. Ele chegou a ser preso, e eu fui um dos numerosos amigos que se mobilizaram por sua libertação. Eu cheguei a falar com o seu carcereiro. Quando, perseguido, ele teve de mudar constantemente de lugar para receber seus pacientes, um desses lugares era o salão de minha residência. Em nome de sua ação política, Helio é um exemplo de que a psicanálise não aliena ninguém. Ele assumiu suas responsabilidades diante das questões sociais da sociedade brasileira. Há sempre uma ou outra alienação, mas de nenhuma maneira a psicanálise foi contaminada pela ditadura. Mas de certo houve um risco de que a psicanálise fosse anulada no Brasil, deixada aos conservadores e torturadores. Se isso não aconteceu, foi graças aos trabalhos de Roberto Mello como jornalista, a Helio e Mascarenhas como psicanalistas e a instituições como a SPID, e a tantos segmentos da sociedade brasileira que lutaram contra a ditadura. Existe elitismo, mas não por culpa dos psicanalistas que têm feito grandes esforços para inventar formas de psicoterapias para receber pessoas sem recursos, formas de psicanálise em extensão que também influenciaram as ciências sociais do Brasil contra as pretensões hegemônicas da ditadura.”
O jornalista Washington Novaes, grande amigo de Helio, também se lembra dos tempos de prisão: “Helio ficou 60 dias na prisão no Regimento Caetano de Faria, no Rio de Janeiro, um mês depois do decreto do Ato Institucional nº 5 sob a ditadura de Costa e Silva em 1969. Numerosos foram os amigos que lutaram por sua libertação e entre eles o teatrólogo Nelson Rodrigues. Movido pela culpa, por ter nas suas crônicas chamado Helio de incendiário, de líder de manifestações, Nelson se dizia reacionário, mas era amigo de Helio, e lutou para tirá-lo da prisão. Helio foi julgado pelo Tribunal Superior Militar e foi absolvido por uma pequena margem de votos.”
Por todas essas razões, me parece importante que a voz de Helio Pellegrino não seja reduzida ao silêncio.
Receba, Madame, minhas mais cordiais saudações.”