[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
O dia inteiro perseguindo uma ideia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.
Corola (2000)
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[2]
Da banda dos metais operosos
sobe um tinir, um retinir caduco
– a tosse aguda do serrote,
o mote renitente, cego,
do martelo, quente no prego.
Agora a serra dispara
o ruído que espirala,
quer chegar a um lugar mais alto,
mais raro – feito de ar.
O canto só se interrompe
de encontro ao tronco do eucalipto
(no atrito que desce um tom na escala)
e rasga a tarde esticada com um grito.
Corola (2000)
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[3]
Canção do exílio
Tenho medo do meu corpo.
Sinto que ele é parco,
pouco,
a um só tempo ermo e oco,
e logo se abre em fulgores,
espasmos que desconheço.
O corpo com que amanheço
não chega a ser o mesmo
com que arco,
quando a tarde desce,
peso-morto que me incandesce,
absorto.
Nem é ele o barco enfermo
em que regresso,
pouco a pouco,
do degredo do sono
na madrugada espessa.
Se me envolve ou me atravessa,
se nele me hospedo
ou esqueço,
tenho medo do meu corpo.
Alma corsária (2022)
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[4]
Vento depois da doença
Este vento, terno e tão
terreno – e, arrisco,
já beirando o aliciante –
vem de novo em meu socorro.
No azul-caco-de-vidro
tirante a anilina
o parapente, indolente, oscila,
brinco na orelha do morro.
O Dois Irmãos, visto daqui
(do lado oposto à decantada Gávea)
vira seu rosto grave
de Hierofante
na direção do enclave
do Vidigal com a Rocinha.
Mas a Pedra grande, suave,
só exibe suas pernas gigantes
(cobertas ainda com a Mata
Atlântica que o mais novo prefeito,
esse tratante,
depila, insiste em depilar)
e, inocente, as estende
até a água impávida.
A paisagem não se defende.
Sua beleza eloquente
é, mesmo assim, tão alarmante
quanto a marra das fêmeas
e a lábia dos traficantes.
Mais adiante, estão as ilhas
suspensas num azul sem dobras
debaixo da lenta manobra
das nuvens
que roçam seus mamilos
no peitoral do Corcovado.
A tarde é uma imensa orgia
e acontece à revelia
da ira ou da astenia
dos deuses, esses ausentes.
Muitas vezes é mediante
uma doença
que vem nascer a boa obra
– disse, certa vez, uma artista
(pintora? performer?) famosa.
Seu nome, aqui, é irrelevante.
Alma corsária (2022)
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[5]
Enquanto você dorme
para P.
Enquanto você dorme,
nuvens carregadas atravessam o oceano,
navios se aglomeram, todo-acesos,
no horizonte
e em longas conversas
golfinhos e baleias disparam seus sonares.
Você dorme.
O céu baixa da orbe
num azul exorbitante
e da pálpebra, enorme,
estrelas tombam n’água.
No entanto, você dorme.
Sob o orvalho que evapora,
abandonando as flores,
insetos discutem seus mitos fundadores
perto de um velho ancinho
que a maresia corrói.
Uma cicatriz rosada rasga o céu de Niterói,
fazendo um sorriso disforme.
E você dorme, dorme.
As entidades das matas
pisam de leve nas trilhas,
o sol mete a cabeça
por detrás das grandes ilhas
Cagarras,
aonde um resto de sombra se agarra,
antes que os contornos de tudo,
pouco a pouco, retornem.
Antes que o mundo outra vez
se forme,
enquanto você dorme.
Alma corsária (2022)
Claudia Roquette-Pinto nasceu no Rio de Janeiro em 1963. Estudou na San Francisco State University em 1980. É graduada em Tradução Literária pela PUC-RJ. Durante cinco anos dirigiu o jornal Verve, dedicado à divulgação de artes e literatura. Publicou os seguintes livros de poemas: Os dias gagos (1991), Saxífraga (1993), Zona de sombra (1997), Corola (2000, prêmio Jabuti de 2002), Margem de manobra (2005) e Alma corsária (2022). Publicou ainda, em 2008, dois livros infantojuvenis, Botoque e Jaguar. Entre lobo e cão é de 2016, livro com colagens e trechos em prosa. Foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira em 2006. Seus poemas foram traduzidos para o inglês, espanhol, francês, alemão e catalão. Participa de diversas antologias, nacionais e estrangeiras. Em prefácio para o livro Corola, Heloísa Buarque de Hollanda conclui sua apresentação com um parágrafo auspicioso sobre a sua carreira literária: “Uma poesia vivida como o único e último espaço de liberdade possível para uma geração que aprendeu a amar sob o efeito da Aids, do pânico, da violência, da imagem brutal dos excluídos. Um texto forte, corajoso, incrivelmente belo, de escrita madura, que define, sem a menor dúvida, Claudia Roquette-Pinto como uma das grandes expressões da poesia contemporânea.”