O sul-africano Steve Biko (1946-1977) é uma figura central na história da luta contra o racismo. Ele era tão importante, e tão magnificamente brilhante nas suas argumentações no enfrentamento ao regime de apartheid que o jornalista Donald Woods, autor da biografia Biko, de 1977, chegou a considerá-lo – logo após Biko ser preso, torturado e morto, aos 30 anos de idade, pela polícia política sul-africana – como aquele que entraria para a história e seria maior que Nelson Mandela (1918-2013), este, condenado à prisão perpétua em 1962 e encarcerado na Ilha Robben.
Mas Mandela sairia da cadeia 13 anos depois da morte de Biko, ganharia o Prêmio Nobel da Paz em 1993, e se tornaria presidente da África do Sul em 1994. Biko, no entanto, não ficou para trás. Suas ideias ainda valem como instrumento de luta.
Seus artigos publicados no jornal mensal da Organização dos Estudantes da África do Sul (SASO, sigla em inglês), assinado pelo pseudônimo Frank Talk, entre 1970 e 1976, originaram o livro Eu escrevo o que eu quero. Nele, Biko sistematiza uma das categorias mais importantes na luta contra o racismo a partir dos anos 1960, na África do Sul e na diáspora africana das Américas, a ideia de consciência negra.
Segundo Biko, “consciência negra é em essência a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem a uma servidão perpétua”.
“O que faz o negro deixar de reagir? Será que ele se convenceu por si mesmo da própria incapacidade? Será que em sua constituição genética não existe aquela qualidade rara que faz que um homem esteja pronto para morrer pela realização de suas aspirações?”
“Ou será ele apenas uma pessoa derrotada? A resposta para essas questões não é evidente. No entanto, está mais próxima da última sugestão que de qualquer outra. A lógica que se acha por trás da dominação do branco é a de preparar o negro para desempenhar neste país um papel subserviente”, diz o sul-africano, formado em medicina e um magistral combatente contra os algozes colonizadores.
Sujeição versus resistência
Biko estava pronto para lutar e morrer pelas aspirações dos negros, e morreu. Ao contrário dele, muitos de nós nos sentimos derrotados como pessoas de origem negra, e, então, tentamos buscar a vitória negando a nós mesmos, sujeitando-nos ao discurso racista que nos propõe um papel subserviente para sempre.
Para sairmos dessa condição, diz Biko, o primeiro passo é “fazer que o negro se encontre a si mesmo, insuflar novamente a vida em sua casca vazia, infundir nele o orgulho e a dignidade”. Essas premissas são resultado de um amplo diálogo entre Biko e os movimentos negros nos EUA, resguardados por muitos intelectuais que foram surgindo desde o século XVIII. Um desses movimentos era o Black Power, que criou conceitos como black is beautiful (“o preto é bonito”).
A ideia poderosa por trás do conceito de consciência negra foi desenvolvida por Biko, na década de 1970, mas nos EUA, isso já vinha sendo praticado com outras denominações. Stokely Carmichael (mais tarde conhecido como Kwame Ture), uma das lideranças mais importantes do movimento Black Power, dentro do qual nasceu o grupo político Panteras Negras, definiu o termo black is beautiful, numa conferência em 1966, em Greenwood, Mississippi, EUA, da seguinte maneira:
“A única coisa que temos neste país é a cor de nossa pele, e temos vergonha dela porque eles nos fizeram ter vergonha de nós mesmos. Temos de parar de sentirmos vergonha de sermos negros. Um nariz achatado, um lábio grosso, um cabelo de carapinha, tudo isso somos nós, e vamos dizer que isso em nós é bonito, gostem eles ou não.”
Vejamos o que Biko diz, em 1970: “Não é de estranhar que a criança africana aprenda na escola a odiar tudo o que herdou. A imagem que lhe apresentam é tão negativa que seu único consolo consiste em identificar-se ao máximo com a sociedade branca”.
Casos de sujeição emocional – como explicado acima por Biko – são comuns nos países onde a supremacia branca, com seu discurso colonialista, subjugou os negros. Além disso, é muito parecido com o que ocorre aqui no Brasil, onde também sempre tivemos personalidades negras combatentes à escravidão e ao racismo.
Nomes como Luiz Gama (1830-1882), na segunda metade do século XIX, e Abdias do Nascimento (1914-2011), ao longo de quase todo o século XX e começo do XXI, sempre foram uma espécie de bússola para os movimentos negros brasileiros.
Assim como Biko, na África do Sul, essas lideranças afro-brasileiras não se cansavam de combater a atitude de nos rebaixarmos como pessoas, de lutar contra o ato de aceitarmos o que os brancos racistas dizem sobre nós de modo negativo. Gama, Nascimento e vários outros faziam isso impulsionados por uma atitude de consciência negra, mesmo anacrônicos ao conceito, como no primeiro caso.
No combate à maciça introjeção de sentimento ruim sobre a própria origem, Biko mostrava como o feixe de atitudes e percepções que ele ensinou pode nos dar outra perspectiva: “Pensar segundo a linha da consciência negra faz que o negro se considere um ser completo em si mesmo e não como a extensão de uma vassoura ou uma alavanca a mais de qualquer máquina”.
A consciência negra, portanto, nos oferece a condição de sabermos olhar para nós mesmos, e, a partir de onde estamos como sujeitos, vermos o que somos, que tipo de realidade vivemos, que tipo de afeto recebemos dos nossos e dos outros, na escola (dos colegas, dos professores, da direção), na igreja, no hospital (dos médicos, dos enfermeiros, dos recepcionistas), no supermercado, na rua, no trabalho, na relação com os vizinhos, o que ouvimos dos outros e o que nos choca em relação ao que sentimos de nós mesmos. A consciência negra nos dá, portanto, a dimensão do que somos na história, na sociedade, na política etc..
Agente da exclusão
Filosoficamente falando, uma consciência é sempre uma relação ampla e profunda do ser consigo mesmo, emergindo no plano do discernimento, do saber. A priori, a consciência é, portanto, em si. Ela não precisa de adjetivo, de um predicado para ser o que é. Neste caso, o adjetivo é um instrumento de retórica ou de categorização.
Por isso, o ator afro-americano Morgan Freeman (que já interpretou Nelson Mandela no cinema), nascido no Sul dos EUA, a região mais racista de seu país, achou que podia lançar uma frase de efeito com o termo consciência, em nome de uma conciliação.
Em entrevista ao canal CBS News, nos EUA, em 2006, Freeman disse: “O dia em que pararmos de nos preocupar com consciência negra, amarela ou branca, e nos preocuparmos com consciência humana, o racismo desaparece”.
Anos mais tarde, o ator repensaria o que havia dito. Mas sua frase é repetida todo 20 de novembro no Brasil, revelando o alcance da negação do racismo. Ela tem um efeito de retórica muito bom, mas é completamente vazia de significado.
Do ponto de vista da psicanálise, como analisa Lélia González, ao explicar como a violência contra os negros é arquitetada e o racismo é negado, a consciência forja o lugar do saber como construção, e para construir é necessário lapidar, retirar excessos, excluir aquilo que incomoda. Ao contrário da memória, a consciência encobre, esquece aquilo que não lhe interessa.
Qualquer um com um mínimo de saber histórico e social poderia dizer, como efeito de retórica mais acertado, que o termo consciência negra foi criado justamente para rebater a violência que a consciência humana (e branca) sempre permitiu contra os negros, obliterando seu sofrimento.
O que interessa à consciência negra é combater os horrores perpetrados pela consciência humana, e faz isso aliando-se à memória, faz isso lembrando. Consciência negra, portanto, também é uma construção, um dispositivo de luta, um conjunto reflexivo de preservação das pessoas negras.
A consciência humana permitiu a criação da escravidão, e criou mecanismos teóricos para defendê-la. A consciência humana permitiu que homens negros fossem caçados e comidos por cachorros, espancados no tronco – se fugissem e não cumprissem sua obrigação de trabalhar forçadamente de sol a sol, sem remuneração nenhuma para enriquecer os homens brancos donos de fazendas ou homens brancos da cidade com suas famílias.
A consciência humana permitiu que mulheres negras fossem estupradas pelos seus exploradores, que fossem torturadas pelas mulheres desses exploradores, por ciúme ou por sadismo puro. Permitiu que homens negros fossem proibidos de ocuparem os mesmos espaços que homens brancos, e permite até hoje que pessoas negras sejam vilipendiadas, violentadas.
A consciência humana permite, ainda hoje, que negros sejam mortos pela polícia, permite que pessoas negras tenham direitos básicos negados, que sejam vigiadas simplesmente por serem pessoas negras. Ela nega socialmente a existência do racismo. Mas aprendemos com Pierre Bourdieu que toda negação social visa esconder uma afirmação.
A consciência humana aceita que pessoas negras sejam impedidas de entrar em certos espaços, como certos restaurantes, lojas, bancos (em bairros ricos, principalmente), hotéis, supermercados, sejam impedidas de circularem em espaços coletivos de prédios, como halls, piscinas, playgrounds, a não ser que vistam uniformes de empregados.
A rigor, a consciência humana sempre agiu em nome do poder, e quase sempre encobriu os atos e os rastros da desumanidade dos decision makers (de discurso colonizador). As mulheres, de modo geral, sabem disso, são as que mais sofrem, infligidas por um sem número de violência causada por nós, homens.
As minorias sociopolíticas sofrem o mesmo descaso dessa possível consciência humana, assim como sofreram os judeus na Alemanha nazista e nos pogroms russos, os armênios diante da força do Império Turco-Otomano, os indígenas nas Américas. A indiferença quase geral dos decision makers do Ocidente e seus aliados, como a grande mídia, com os palestinos sendo mortos por bombardeios do Estado de Israel em Gaza, também é um estranho fruto da consciência humana.
Isso daria outro tipo de abordagem, mas meu objeto de reflexão aqui é a consciência negra em face da barbárie que a consciência humana permite.
Três exemplos de barbárie
Poderíamos atravessar a vida enumerando situações como estas. Vou citar apenas três exemplos históricos do tipo de coisas que a consciência humana foi capaz de performar ou permitir, ao longo dos 350 anos de escravidão no Brasil. O primeiro exemplo foi retirado do livro Brasil: uma história – a incrível saga de um país, de Eduardo Bueno.
O autor comenta o seguinte: “A perversidade pura e simples foi um componente constante nessa relação. O que mais poderia explicar, por exemplo, o fato de ter surgido no Brasil a crença de que ‘para o sifilítico não há melhor depurativo do que uma negrinha virgem’, defendida, ainda em 1869, por um certo Dr. João de Azevedo Macedo Jr.? Ou a confissão que um ‘sacerdote de missa’ fez ao visitador inquisitorial, na Bahia, em 1591, revelando que, certa noite, levara para sua casa ‘uma negra, que seria de idade de seis ou sete anos’, e ‘a penetrou pelo traseiro’?”
O segundo exemplo foi retirado do livro Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, em que o autor comenta sobre senhores de escravos que, com medo dos agentes da Inquisição que visitavam o Brasil, veja você, mandavam “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhas, as crianças estourando ao calor das chamas”.
Freyre parece não acreditar muito nesses registros. Em trechos posteriores de seu livro, ele cita outros autores que narram crueldades semelhantes, mas diz duvidar. Ele cita, por exemplo, o livro de 1903 América Latina – males de origem, de Manuel Bomfim (1868-1932), médico e sociólogo sergipano, que diz:
“Não raro a sinhá-moça criada a roçar os moleques, entrega-se a eles, quando os nervos degenerados acordam em desejos irreprimíveis; então intervém a moral paterna: castra-se com uma faca mal afiada o negro ou o mulato, salga-se a ferida, enterram-no vivo depois.”
Freyre diz que não acredita nessa informação porque o autor (Manuel Bomfim) começa falando “não raro”, quer dizer, frequentemente. Frequentemente, segundo Freyre, não podia ser, porque os senhores escravistas guardavam muito bem suas filhas.
De certo modo, Freyre tem razão. O termo frequentemente é pouco preciso. Mas tudo isso depende também um pouco do que frequentemente significa no contexto histórico e para cada um dos autores. Pois, se um fato desses ocorresse duas vezes por ano (em todo o país), ao longo dos 350 anos de escravidão, teria acontecido 750 vezes. Seria algo frequente? Depende.
Comparado ao número de vezes em que negros escravizados eram açoitados nos troncos em todas as senzalas, ou até mesmo assassinados, pelo país afora, todos os dias, ou que mulheres negras escravizadas eram estupradas, o fato de uma sinhá-moça se entregar sexualmente a um moleque escravizado não era algo frequente mesmo, não.
Mas se comparado ao número de vezes em que senhores de escravos foram assassinados por escravos, será que o fato em questão seria considerado raro? Depende, de novo, de quantos senhores de escravos foram assassinados ao longo de 350 anos de escravidão no Brasil. Não tenho o número, mas duvido que tenham sido muitos, na comparação com as mortes de negros nos troncos ou a bala, ou com os estupros de mulheres negras.
O terceiro exemplo histórico do tipo de coisas que a consciência humana foi capaz de performar ou permitir também traz o que uma pessoa é capaz de fazer quando se revolta. Uma reação monstruosa diante da monstruosidade que sofrera, porque a consciência humana permitia. Foi retirado do livro Balão cativo, do médico e memorialista mineiro Pedro Nava.
Entre as histórias de família e da sociedade mineira que ele narra a partir do que ouviu das pessoas e viveu, ele conta uma que é dos tempos da escravidão, em Sabará (MG), lembrado 50 anos depois por sua avó:
“[Em 1855, na cidade de Sabará] pereceu uma odiosa sinhá, cruel e sádica, que tinha a mania de sapecar os genitais das escravas, como se faz a frango, depois de depenar. Tantos púbis ela passou nas chamas que ela mesma acabou nas mãos de duas de suas vítimas. Uma segurou. A outra encarniçou-se contra a barriga da dona, os peitos da dona, o pescoço da dona, o olho da dona – a dente, unha, garra, joelho, pé e com os utensílios caseiros que dão morte canhestra e mais dolorosa –- mão de pilão, ralo, lima, martelo, furador, puxavante, espora, ferro de engomar e facão de cozinha.
A sinhá, trabalhada por esses instrumentos e mais pela fúria da besta solta, ficou em postas, toda aberta, os intestinos saindo pelas partes e um olho pendurado. Num mar de sangue, não houve divergência. A que segurou e a que oficiou foram ambas condenadas a parecerem morte natural na forca. Sabará se preparou para a execução como para uma festa de igreja. Meio século depois, Minha avó materna ainda ouvia os gritos da escravizada que matou a sinhá. ‘Matei e vou morrer… Mas morro satisfeita… Morro satisfeita… Morro satisfeita… Vou morrer, mas matei. Matei… Matei e bem matei. Matei e tornava a matar… Morro satisfeita… Ora pois!…. Matei e vou morrer…’.”
A magnitude do terror
Em relação à frase de Morgan Freeman sobre o racismo desaparecer assim que deixarmos de nos preocupar com a consciência negra e focarmos apenas na consciência humana, Biko (que já foi interpretado por Denzel Washington no cinema) tem uma consideração menos loquaz, e mais eficaz.
Biko diz o seguinte: “A abordagem da consciência negra seria irrelevante numa sociedade igualitária, sem distinção de cor e sem exploração. Ela é relevante aqui porque acreditamos que uma situação anômala é uma criação deliberada do homem”.
Essa situação anômala é o que nós, herdeiros da diáspora africana nas Américas, sentimos, ainda hoje, em qualquer lugar, do Canadá ao extremo sul da Argentina. E resistimos. Consciência negra é a insígnia de nossa resistência.
No Brasil, os movimentos negros escolheram a figura histórica de Zumbi dos Palmares como signo dessa resistência. Com o objetivo de celebrar essa capacidade do povo negro de juntar forças – juntando códigos comuns de identificação – para lutar contra o racismo e fazer valer a igualdade de direitos, na data de nascimento de Zumbi, 20 de novembro, passou a ser celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra.
Como diz Saidiya Hartman, “a consciência negra é inseparável de uma imaginação da liberdade, que é um presente para o mundo. É uma cultura moderna que tem a mesma magnitude do terror que a produziu”.