Quando virei a chave, o mecanismo da fechadura fez “ploct” e empurrei a porta, sendo envolvido bruscamente pelo néctar do Chanel 5 – e esse perfume, despertando outras lembranças, roubou por um instante a minha alma e por isso turvou o meu sentido.
Se me recordava bem, só havia uma mulher no mundo que eu conhecia que usava essa marca e, às vezes, sem avisar, invadia de modo clandestino o meu apartamento numa sexta-feira no final de tarde à procura de álcool, conversa inteligente, música e sexo.
Bem, pelo visto, a diaba devia estar lá, à espreita, esperando o meu retorno a casa.
Depois que a minha alma voltou à sua base, pude então recuperar a capacidade de discernimento e divisar, entre as sombras provocadas pelas cortinas, o seu contorno elegante, o longo pescoço como o de uma rainha egípcia.
Ela estava ali – majestosa Nefertiti –, sentada na minha poltrona favorita, a luz revelando um corpo inigualável.
Um arrepio percorreu-me como sempre, mas segurei a onda. Toda vez que a encontrava era como se fosse um tesão inaugural. A sua presença elegante e descontraída dava-me uma sensação de segurança e equilíbrio. Quantas mulheres causam tal sentimento neste torpe mundo? Quantos mortais podem ser contemplados com essa visão?
Sem entrar em conjecturas, era como se ela manipulasse um veneno poderoso – aquele que entorpece um incauto aos poucos. Mas, por todos os meus pecados e por sua presença sólida, indefectível, ela estava ali preenchendo com o seu perfume os vazios que encontrava toda vez que voltava para casa.
Acendi um abajur.
Ela estava lá, toda graciosa, as pernas dobradas, à vontade.
Meu caro amigo, se você fosse fraco dos nervos teria sofrido uma síncope – a mulher que ocupava aquele móvel era a mais gostosa, a mais linda, a mais espetacular das fêmeas, comparável (se não cometo uma injustiça) a uma das concubinas do califa de Bagdá.
Alá seja louvado!
Quando fechei a porta, empurrando-a docemente e ouvindo de novo o ploct azeitado da fechadura, emiti baixinho, como agradecimento, uma prece a Atón.
Mais do que nunca, eu precisava de uma surpresa como aquela para aliviar a tensão da semana e, particularmente, daquele dia.
Na luz que a revelava como uma potestade, ela sorria abusivamente enquanto eu caminhava em sua direção.
Com o coração em sobressaltos, ensaiei alguns passos de uma música imaginária e tirei a jaqueta. Após a mímica, nos abraçamos. Quase tocando os meus lábios, ela sussurrou:
“Você demorou tanto!” – e mordiscou a ponta da minha orelha.
Antes que ela começasse a acabar com a minha raça, eu a contive por um momento para que ela ouvisse a tragédia que eu arrastava para casa:
“Estou vindo de uma operação fracassada. Um fiasco o meu dia, que nunca será repetido, pois a organização, como você sabe, tem as suas regras. Erros grosseiros nunca foram tolerados. Apenas por sorte escapei. Estou ferrado.”
Em seguida, ela falou pela segunda vez, com certa zombaria, já no alvoroço dos corpos que se exploram:
“Então, você não é o vitorioso que encontro às sextas-feiras?”
“Hoje, meu anjo, sou apenas um gângster com os dias contados.”
Mais uma vez, mordiscou a minha orelha e falou bem baixinho, sem pressa, com a segurança que as serpentes demonstram diante de sua presa:
“Antes disso, daqui a pouco você vai aterrissar num mundo feito só de delícias. Esqueça o depois; pense no agora.”
Sob o esmorecer da tarde, já menos aflito, comecei a desabotoar a sua blusa – e daí, num átimo de segundo, vi o pássaro que passou veloz em frente à janela.