[Com a colaboração de Luís Araujo Pereira]
Poeta nascida em Campo Grande (MS) e radicada em Goiânia, Thaise Monteiro acaba de lançar seu quinto livro de poemas, Sobressalto, quedas e outros voos (Editora Patuá). Segundo a autora, essa nova obra, como o título indica, “é o resultado de muitos sobressaltos”, em que ela procura tanto “brincar” com a linguagem quanto tratar, em um tom menos grave, de temas como a finitude humana, a condição feminina e o próprio fazer poético. Thaise foi premiada duas vezes com a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, da União Brasileira de Escritores – seção Goiás (UBE-GO), pelos seus livros Modus operandi (2017) e Equinócio (2022) e foi vencedora ainda do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária – 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, do Ministério da Cultura, por À moda de 22, escrito em parceria com Jamesson Buarque. Doutora em Letras pela UFG, ela é professora de Literatura e também atriz, sendo a fundadora da Cia. de Arte Poesia que Gira, por meio da qual, além de outras atividades artísticas, desenvolve o projeto Bibliofuscoteca. Leia a seguir a entrevista que a autora concedeu a Ermira Cultura sobre o seu novo livro e sobre a sua trajetória como poeta, professora e atriz.
Em seu novo livro, Sobressalto, quedas e outros voos, pode-se perceber que a morte é um tema recorrente, desde um sentido mais filosófico, como uma forma de reflexão sobre a nossa finitude, passando pela perda de pessoas próximas até o morticínio no Brasil durante a pandemia da Covid-19. O que significa, para você, tratar da morte pelo viés da poesia?
Apesar da consciência da morte como parte do estatuto da vida, sinto muita dificuldade em lidar com ela. Sei que muitas pessoas sentem o mesmo. Os mistérios que envolvem essa certeza, somados à dor, à falta, à saudade que decorrem dela, me perturbam profundamente. Neste livro, a morte é um tema recorrente, ainda pretendo escrever um livro exclusivamente sobre ela, é uma forma de antecipar meu acerto de contas, antes de encontrá-la. A poesia, para mim, é um modo de acertar contas com tudo o que me assusta, de conhecer o que desconheço, de aliviar certas dores.
Nota-se também vários poemas que tratam da condição feminina. Como você se vê nessa posição de mulher e poeta? Como você definiria o seu projeto poético?
A literatura é a representação da realidade e a realidade foi por muito tempo retratada pela perspectiva masculina, mesmo o universo feminino. Tratar da vida, do cotidiano, da luta diária das mulheres numa sociedade machista, a partir da subjetividade feminina, faz parte do meu projeto poético, desde o meu primeiro livro. Neste último, consigo tratar dessas questões de forma irônica, leve, mas não menos crítica. Sou uma mulher que divide o trabalho literário com os afazeres da casa, limpo, lavo, cozinho, cuido de filha, de marido, trabalho fora pela manutenção financeira das urgências mensais que chegam em forma de boletos. A poesia, a literatura, infelizmente, não conseguem dar conta de tais urgências. Sou mulher, sou poeta, sou trabalhadora da educação e da arte, trabalho nos palcos, na produção, na assessoria de imprensa, “carrego o piano” que toco. Sou afetada, diariamente, pelas mais variadas violências cometidas contra mulheres, tanto pelas que sofro na pele quanto pelas que chegam até mim pelos olhos e pelos ouvidos. A minha poesia, nesse aspecto, é um grito, é uma denúncia, é um alerta. Meu projeto poético tem um comprometimento estético, mas sobretudo, um comprometimento social e histórico.
“Sou afetada, diariamente, pelas mais variadas violências cometidas contra mulheres, tanto pelas que sofro na pele quanto pelas que chegam até mim pelos olhos e pelos ouvidos. A minha poesia, nesse aspecto, é um grito, é uma denúncia, é um alerta“
Você também tem uma longa trajetória como atriz e como professora de Literatura. Como essas duas atividades se correlacionam como o seu fazer poético?
Não posso dizer que o que escrevo não seja afetado pela minha formação acadêmica, pela leitura da crítica especializada que o curso de Letras me proporcionou. Sei que deixei de escrever de certo modo, sei que passei a escrever de outro, usar certas estratégias em função dos Estudos Literários, mas não vejo isso como algo negativo, fui atravessada por muitas vozes que me ajudaram e ainda ajudam, para mim, estou num processo e não vejo em meu horizonte um fim. Não percebo minhas obras como acabadas, no teatro é a mesma coisa. O teatro é uma arte de encontro e no encontro surgem muitas descobertas. Sinto necessidade de comunicar, de interagir com o outro e na interação há troca. Aproveito tudo, tudo é matéria de poesia, toda crítica que recebo acolho, reflito, desconfio, sou muito desconfiada de tudo, inclusive daquilo que faço. O trabalho como professora mantém constante o exercício da leitura e da mediação da leitura e eu acredito que, para ser escritor, é preciso ser leitor, não só de livros, mas do mundo. Cheguei ao teatro através da Literatura, quando encontrei nas artes cênicas um modo de fazer chegar até as pessoas aquilo que escrevia, encenando meus poemas. Tornei público o que eu escrevia encenando poemas antes de publicá-los em livros. Me apresentei nas ruas, nos bares e hoje me apresento nos palcos, mas ainda prefiro a rua, o teatro de rua porque é um lugar público, porque aqueles que passam se espantam com o poder da arte. Gosto de causar espanto, gosto de ser espantada pela reação das pessoas, gosto de conhecer lugares, conhecer gente, ouvir as suas histórias, o teatro, a palhaçaria me permitem isso e tudo isso me atravessa o corpo inteiro e pousa sobre o papel em que escrevo.
Com cinco livros publicados até agora, qual deles pode ser considerado uma realização pessoal para você?
Cada um dos cinco livros é uma realização pessoal pra mim. Modus operandi porque foi o primeiro e já veio com o prefácio de uma escritora que gosto e admiro muito, Micheliny Verunschk. A casa da rua 1013 porque resulta de um desejo de guardar memórias que eu percebi que iam se perdendo e na primeira edição, como resultado de autopublicação, com um livro peculiar, um objeto, contendo outros objetos. Equinócio porque foi vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos. À moda de 22 porque foi vencedor do prêmio do MINC. Mas este último reúne poemas que me são muito caros, resultado de muitos sobressaltos. Reúne ainda poemas em que consegui brincar tanto com as temáticas quanto com a linguagem, num tom menos grave, que já vinha tentando desenvolver, o que pra mim é um desafio. Posso estar errada, mas sinto que Sobressalto… é um divisor de águas na minha vida como escritora.
“No ramo da Literatura, ainda há quem defenda que não se deve tratar de gênero, apenas de valor literário. Há quem se ofenda com uma lista de vestibular composta apenas por obras de autoras mulheres. Ora, quantas edições foram compostas apenas por obras de autores homens e nada se disse a respeito?”
Hoje no Brasil, vê-se uma efervescência de mulheres poetas. Como você analisa esse movimento?
Mulheres poetas sempre existiram. Quando vamos estudar Literatura Brasileira e partimos da Literatura Portuguesa para isso, temos notícia de mulheres produzindo desde o trovadorismo, embora tenham sido apagadas. Esse apagamento é histórico e se deu em todas as fases da nossa literatura. Não vou dizer que na contemporaneidade estejam ganhando espaço, porque não penso que ganhar seja a palavra certa. Temos brigado e conquistado um espaço de direito pela qualidade de nossas produções e também pelo valor político que elas têm. As questões de gênero ainda são tratadas com melindre pela nossa sociedade. No ramo da Literatura, ainda há quem defenda que não se deve tratar de gênero, apenas de valor literário. Há quem se ofenda com uma lista de vestibular composta apenas por obras de autoras mulheres. Ora, quantas edições foram compostas apenas por obras de autores homens e nada se disse a respeito? Se é uma questão de qualidade, é isso que está sendo colocado em xeque nas obras dessas mulheres? Enquanto tivermos que debater e brigar pelo óbvio, enquanto, apesar de maioria, formos uma minoria em todas as camadas desse sistema, seja como editoras, produtoras, escritoras, seja como críticas, avaliadoras, vencedoras de prêmios etc., temos sim de falar da autoria de mulheres. Essa efervescência é resultado de muito trabalho, de muita luta, que está só começando. É resultado também de políticas públicas que tardaram e ainda engatinham e que precisam ser fortalecidas, multiplicadas e ampliadas, para que possamos valorizar a produção de mulheres, de mulheres periféricas, de mulheres negras e por aí vai.
Poema
Do outro lado das paredes
Sabem mais de mim
essas paredes emudecidas
em sua brancura quente
acentuada pelo calor da tarde.
Conhecem-me insuportável
Apesar do calor
distribuído em 49 metros
quadrados ao redor do meu corpo
– mesmo corpo do ano passado
talvez mais magro
talvez mais pálido
talvez mais triste –
Sinto frio
Sintoma de doença outra
que a solidão inventou de inventar
Do outro lado das paredes
um vírus espreita a minha carne
poluída de silêncio e de certeza
não haverá justiça
aos que ainda cedo partiram
nem aos que ficaram atolados
na lama de lágrimas sobre
o solo deste país para onde
se for, não vá
que a paz colonizada
veste mortalha
verde e amarela
como o canário abatido
pelo gesto
dos que com as mãos
fizeram arma
In: Sobressaltos, quedas e outros voos, de Thaise Monteiro (Patuá, 2023)
Leia mais poemas da autora na coluna Florações: http://ermiracultura.com.br/2018/08/24/cinco-poemas-de-thaise-monteiro/
Livro: Sobressaltos, quedas e outros voos
Autora: Thaise Monteiro
Editora: Patuá
Preço: 50 reais
Onde adquirir: https://www.editorapatua.com.br/sobressalto-quedas-e-outros-voos-poemas-de-thaise-monteiro/p
Fotos: Fábio Lima (@aconteceimagens)