[Coautor: Pedro H. C. Silva[1]]
Neste ensaio percorrerei a história da filosofia, principalmente a filosofia contemporânea. Começando com os gregos, passando por Marx (1818-1883), Canguilhem (1904-1995), Simone Weil (1909-1943) e Yves Schwartz (1942-), irei explorar a noção de trabalho e atividade dentro da sociedade.
A noção de atividade, tal como utilizada na abordagem ergológica, isto é, uma epistemologia do estudo do trabalho humano, fundamenta-se em duas fontes filosóficas. A primeira delas é a do fazer laborioso, o gênio artesanal, que remete à primeira herança, indo de Platão a Diderot, passando por Descartes e Leibniz. Períodos, na história da filosofia, em que o fazer artesanal instigava e despertava a reflexão sobre suas vicissitudes e possíveis relações com as questões relacionadas ao homem e à natureza.
O interesse de Platão pela sabedoria dos artesãos competentes engloba em certo sentido a técnica. Para Descartes e Leibniz, por sua vez, o que faz do trabalho do artesão algo diferente é a esperança desses grandes filósofos de um possível domínio das forças naturais pela filosofia natural, a nova ciência. É preciso mencionar que os artesãos utilizavam as leis da natureza sem conhecê-las. Descartes achava que um professor instruído pela experiência dos artesãos era mais preparado. É muito significativo também sua relação com o seu cortador de lentes favorito. Com tais lentes, Descartes estudava as leis da proporção. Ele dizia, por exemplo, que não duvidava mais do que depende da mão e que acontecem mil encontros no decorrer do trabalho que não se pode prever no papel.
Segundo Yves Schwartz, filósofo especialista em análise da atividade de trabalho e fundador da abordagem ergológica, aquele que sabe tratar desses encontros no decorrer do trabalho é o gênio do artesão. Por exemplo, se Descartes se questiona por que uma roda que permite polir as lentes fica de um dia para o outro desigual, e um torneiro de Amsterdã pensa que essa desigualdade acontece porque o interior dessa roda é de madeira, o que faz aumentar ou baixar, conforme o tempo, o cobre de que ela é feita na sua circunferência, trata-se do fato de que a experiência do artesão sabe intuitivamente relacionar as variações da madeira com a temperatura ou a umidade do ambiente.
Entre Platão e Descartes, Schwartz localiza Aristóteles, que elevaria a ação humana à dimensão mais específica e nobre da experiência, como algo oriundo de uma decisão e de uma arbitragem de valores. Com os conceitos de poiésis e práxis, Aristóteles destrincha as características da ação. Ao fazer isso, enquadra o “objeto trabalho”, ou seja, o trabalho como um objeto de análise. Schwartz vai dizer que essa tradição tem como melhores herdeiros, não em linha reta, Habermas (1929-) e Hannah Arendt (1906-1975), que atribuirão ao trabalho um valor negativo, pois eles estabelecem um diálogo crítico com o marxismo.
A segunda fonte filosófica utilizada pela abordagem ergológica sobre a noção de atividade é a do marxismo. Os filósofos da história e do marxismo reconheceram o trabalho como objeto para a filosofia. Eles promoveram um conceito abstrato de trabalho, essencial para a compreensão do movimento histórico. Para esse conceito ser frutífero e não fechar a questão, é necessário reconhecer o trabalho não só como objeto, mas também como matéria estrangeira[2]. Assim, um campo de interrogações e enigmas se abre à pesquisa sobre o trabalho. Não se fala somente de um objeto definido, mas de um sentido a ser desvelado, podendo, assim, abrir caminhos para a compreensão da relação da pessoa com a natureza e seus semelhantes, além de esclarecer as novas realidades do mundo do trabalho colocadas pelo nosso tempo.
Marx, juntamente com os economistas ingleses do século XVII, retoma o trabalho como tema de estudo. Ele utiliza o conceito de tatigkeit de Kant: “é uma experiência de vaivém obscuro entre diversas faculdades intelectuais do homem, essencialmente entre seu entendimento e sua sensibilidade, ‘arte escondida’ (…)” (SCHWARTZ, 2000). Para Kant, o trabalho/tarefa é indispensável à existência de uma experiência humana que é, no entanto, indecifrável. Seria uma dinâmica que circula em todos os meios do conhecimento, por isso nunca poderá ser conhecida.
Ao ser retomado por Marx, nas Teses sobre Feuerbach e depois no Capital, esse conceito chega aos psicólogos soviéticos e aos ergonomistas franceses, que recompõem a noção de atividade como uma negociação problemática das normas do trabalho com uma pessoa humana, com alma, corpo biológico e histórico. Quem retoma essas heranças e opera uma síntese que possibilitará pensar filosoficamente a atividade é G. Canguilhem, um médico e epistemólogo francês, que, ao lidar com as questões sobre o normal e o patológico, escreve: “eu tomo ainda o risco de procurar fundar o significado fundamental do normal por uma análise filosófica da vida, entendida como atividade de oposição à inércia e à indiferença.” (CANGUILHEM, 2000, p. 34).
Ao beber dessas fontes, a ergologia amplia o conceito de atividade. Atividade, nesse sentido, pode ser pensada em oposição à inércia, à morte. É através de alguma atividade que o homem se engaja na vida. Na atividade está em jogo o se fazer humano: de certa forma, se criar e se manter humano em conjunto com seus semelhantes que também estão se formando e construindo, ao mesmo tempo, seu ambiente. Essa formulação da atividade como oposta à inércia das coisas e dos seres acarreta consequências para a compreensão de ambientes de trabalho taylorizados, onde se supõe não haver vida devido ao alto grau de submissão dos trabalhadores às atividades repetitivas.
Schwartz caracteriza ainda a atividade industriosa como “um destino a viver”. Um encontro da pessoa com as condições de existência a ela colocadas.
A atividade é um cadinho onde os valores são continuamente retrabalhados: valores do mercado e valores da cidade; valores afirmados universalmente (nível macro) e valores concretizados especificamente, na atividade humana (nível micro). É na atividade que se tece a aventura humana; é também pelo reconhecimento dessa atividade que a sociedade permitirá a cada um participar dignamente desta aventura. (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 294).
Simone Weil, escritora, mística e filósofa francesa, que se tornou operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas, recupera essa amplitude e complexidade ao formular sobre a capacidade humana de recriar a vida: “A grandeza do homem é recriar sempre a sua vida. Recriar o que lhe é dado. Forjar o que ele sofre. Pelo trabalho, ele produz sua própria existência natural. Pela ciência, recria o universo por meio de símbolos. Pela arte, recria a aliança entre seu corpo e sua alma” (WEIL, 1996). Procurando abarcar essa complexidade, a ergologia nasce e se estrutura com uma postura de abertura diante da atividade. A atividade humana requer trabalhadores que estão sempre em mudança junto ao seu meio. Eles estão sempre em negociação dos valores e normas que compõem seu trabalho concreto. É por esse motivo que o olhar ergológico deve ser atento e nunca satisfeito com o que vê, pois a atividade muda. Desse modo,
A ergologia é a aprendizagem permanente dos debates de normas e de valores que se renovam indefinidamente… […] Atividade – é um élan de vida e de saúde, sem limite pré-definido, que sintetiza, atravessa e liga todas as dimensões do humano: o corpo/espírito, individual/coletivo, o fazer e os valores, o privado/profissional, o imposto e o desejado. (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 30).
Por fim, não deve ser por acaso que, no centro da própria grafia da palavra atividade, encontra-se a palavra vida. Toda atividade é ocasião de encontros (encontro é sempre de duas coisas que se movimentam, que têm vida), convergências, divergências e criações entre os limites e possibilidades da relação da pessoa com ela mesma (seu corpo, seus afetos, valores, saberes e crenças), com os outros, com o ambiente material, social, histórico e cultural.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. PUF 1996 – Tradução brasileira, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
SCHWARTZ, Y. e DURRIVE, L. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niteói: Eduff, 2007.
WEIL, S. A condição operária e outros sobre opressão. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1996.
[1] Graduando em Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
[2] Definição de matéria estrangeira: “A filosofia é uma reflexão em que qualquer matéria estrangeira é boa, e, diríamos de bom grado, em que qualquer boa matéria deve ser estrangeira […]. Nós esperávamos precisamente da medicina uma introdução a problemas humanos concretos” (CANGUILHEM, G. O normal e o patológico, 2000, p. 308.In: SCHWARTZ, Y. Trabalho numa perspectiva filosófica, 2008).
O artigo é o 19º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.
- Psicanálise, velhice, tempo e luto, de Matheus Garcia Nunes, Weiny César Freitas Pinto e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/09/psicanalise-velhice-tempo-e-luto/.
- Somos efetivamente livres?, de Natasha Garcia Coelho, Maíra de Souza Borba e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/16/somos-efetivamente-livres/.
- Música e pessimismo na filosofia de Arthur Schopenhauer, de Bárbara Walters e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/23/musica-e-pessimismo-na-filosofia-de-arthur-schopenhauer/.