[Com a colaboração de Luís Araujo Pereira]
Uma das vozes mais interessantes e originais da nova geração de poetas de Goiás, Fernanda Marra lançou recentemente o seu segundo livro de poemas, furonofluxo, pela editora paranaense Telaranha. O seu livro de estreia, taipografia, foi publicado em 2019, pela martelo casa editorial, de Goiânia. Nesse novo trabalho, a autora, nascida em Goiânia em 1981, usa a metáfora do corpo para pensar e explorar a linguagem poética, em um exercício de escrita que, como afirma Eduardo Sterzi, crítico e professor da Unicamp, revela “o acontecimento da linguagem”. Psicanalista e doutora em Teoria Literária pela UnB, com uma pesquisa sobre a obra da poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972), Fernanda concedeu a seguinte entrevista a Ermira Cultura, na qual discorre sobre a sua obra e sobre sua escrita poética.
O seu primeiro livro de poemas, taipografia, é de 2019. Mais recentemente, no segundo semestre de 2023, você publicou furonofluxo. Quais são as mudanças e as continuidades na sua poesia nesse entretempo?
O taipografia foi um livro que começou a nascer quando retomei a escrita após um longo silêncio. Desde a adolescência, não escrevia. Voltei a quebrar versos quando me deparei com os blogs e fiquei fascinada com a possibilidade de publicar sem muito estardalhaço e ser lida por pessoas que realmente estavam interessadas em poesia. Criei meu blog e ele foi, por alguns anos, meu exercício cotidiano de escrita. O taipografia, por ser uma reunião do que entendia serem os melhores poemas desse blog somados a outras coisas que vieram depois, está mais próximo de mim, mais arraigado às minhas experiências, minha forma de me contar de onde vim. Costumo dizer que os livros, ao menos os meus, são escritos em camadas. O blog me deu a chance de liberar a primeira delas. Poder pensar em um projeto de livro me possibilitou escrever outras camadas desses textos. A concepção de um livro é uma escrita e o que pude escutar dos poemas que comporiam o taipografia é que eles falavam de algo muito estrutural e propulsor, como é o seio familiar, os alicerces de uma casa.
O furonofluxo também foi um livro pensado em camadas nesse sentido de ser concebido como projeto de livro a partir de uma reunião de poemas que foram sendo escritos ao longo de anos. O modo de trabalho foi o mesmo: imprimir os poemas esparsos, esparramá-los no chão e escutá-los. Se, por um lado, o taipografia é um livro voltado para dentro, furonofluxo é um trabalho que abre para o fora, que roça a pele do mundo e percebe a homeostase. Assim, o salto que vejo de um livro para o outro é esta experiência de me movimentar entre dentro e fora. Vejo que este descolamento da primeira pessoa me permitiu um trabalho mais cauteloso com a forma, acredito que explorei mais a materialidade da língua, ou talvez a língua em sua materialidade. furonofluxo se faz entre os polos do movimento e da estagnação, é um livro em forma de questão, que só pode ser escrito no momento em que se procurava pela vida, quando do horizonte encurtado da janela o que se via era uma fumaça fúnebre.
Em taipografia, a palavra “casa” aparece diversas vezes, seja como a “casa de água” no poema homônimo, seja na casa de pau-a-pique do poema que dá título ao livro, seja nas citações de versos de alguns poetas que você selecionou como epígrafes do livro. Já em furonofluxo, é o corpo que ganha um claro relevo. Pode-se dizer que há uma transição entre esses dois livros da linguagem poética pensada como “casa”, um espaço por vezes que serve como abrigo e por vezes está sujeito às intempéries, e depois concebida como corpo?
Natalie Goldberg, escritora e professora norte-americana de escrita criativa, diz que a gente só escreve sobre nossas obsessões e que, sendo assim, o melhor é fazê-las trabalhar a nosso favor. Em um viés psicanalítico, diríamos que se trata de nossas fixações, daquilo que repetimos sem saber. A gente fala repetidamente do ponto que tropeça, e não é fácil abandoná-lo justamente porque ali existe uma marca, uma ranhura que faz voltar a agulha sobre a mesma faixa do disco. Pode ser que a forma mude, a metáfora seja outra, e, mesmo que a perspectiva se desloque um pouco, martelamos a mesma tecla procurando fazer passar pela linguagem o que não cabe em palavras. Isso não quer dizer necessariamente que falhamos, quer dizer que reiteramos, que soamos diferente a cada vez que repetimos e temos a chance de escutar. É essa a aposta de uma análise e é assim que venho tentando pensar também a minha escrita.
Nesse sentido, acho que é superpertinente a leitura que vê em taipografia a metáfora da casa, e em furonufluxo algo do corpo. Em ambos, está posta a difícil relação entre o dentro e o fora, entre o que abriga e desabriga, o infamiliar. O corpo também abriga e falta na medida em que ninguém é um corpo, mas o tem. A pergunta que ressoa sem resposta no “furo” é a pergunta pelo que seja o corpo, seus limites, seus tensionamentos, as relações que borram as fronteiras entre um corpo e outros.
“Acho que é superpertinente a leitura que vê em taipografia a metáfora da casa, e em furonufluxo algo do corpo. Em ambos, está posta a difícil relação entre o dentro e o fora, entre o que abriga e desabriga, o infamiliar. O corpo também abriga e falta na medida em que ninguém é um corpo, mas o tem”
Você é uma estudiosa da obra da poeta argentina Alejandra Pizarnik, com quem você dialoga de forma mais evidente no seu primeiro livro, mas percebe-se também em seus poemas uma interlocução com nomes da geração mais recente de poetas brasileiras como Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Ledusha Spinardi, além de autoras pertencentes ao cânone como Hilda Hilst e Cecília Meirelles. Como todos esses nomes influenciaram e influenciam a sua escrita poética?
Para responder a essa pergunta, tenho que contar uma parte da minha história, da minha entrada no universo da poesia. Logo que comecei a escrever, tive a imensa vantagem de ter por perto a poeta, crítica e professora Darcy França Denófrio. Foi ela quem leu meus primeiros poemas escritos à mão, reunidos numa pastinha preta, e disse aos meus pais que deveriam publicar porque havia “algo” ali. Ela também se dispôs a ajudar com o processo de uma publicação independente, contanto que eu estivesse disposta a passar algumas tardes com ela estudando sobre o fazer poético. Dizer sim a esses encontros foi das decisões mais acertadas da minha vida. Aos 15, no primeiro ano do ensino médio, já estava decidida a fazer faculdade de Letras para estudar literatura, mas foram essas tardes de lições sobre a teoria da lírica, com direito a um naco de pudim indefectível e um copo de coca-cola na casa da dona Darcy, que trouxeram alguma consciência para o meu processo de escrita. Sou capaz de ouvi-la ainda hoje quando começo a escrever. Acho que é por isso que acredito tanto em oficinas de escrita e, quando posso, me dedico a esse tipo de trabalho.
Conto isso porque lembro que foi em uma daquelas tardes, já quase suspendendo as lições, que Darcy me aconselhou a ler o que aparecesse pela frente. Disse que não devia ser seletiva naquele momento, nem me preocupar com critérios judicativos, e olha que ela é bastante criteriosa! Seu conselho foi: leia de tudo. Assimilei a meu modo. Sou uma leitora lenta e minha digestão é preguiçosa. Se gosto muito do livro, rumino, fico morando ali. Por outro lado, abro muitas janelas ao mesmo tempo e me deixo deslizar de uma leitura a outra, de uma referência a outra, sem me preocupar em finalizar uma leitura antes de começar a próxima. As minhas pesquisas acadêmicas foram conduzidas assim e as minhas leituras de interesse pessoal também. Não sou de listas, nem de seguir ordens cronológicas. Acredito nesse movimento metonímico que me anima a vontade de saber, mas que também não me diz onde vou chegar. É um pouco dessa forma que essas referências todas aparecem na minha escrita, numa espécie de livre associação que acende o fulgor criativo, fazendo as leituras entrarem no fluxo do pensamento desejante e se conectarem a ele sem que eu saiba exatamente por qual ponta.
No posfácio de furofluxo, o escritor e crítico Eduardo Sterzi nomeia a sua escrita poética como “a língua do enxerto”. Nessa obra, você parece ampliar suas referências para dialogar com autores além do campo poético, como os filósofos Jean-Luc Nancy e Donna Haraway. Além do mais, você também é psicanalista. De que forma a filosofia e a psicanálise contribuíram para você pensar a palavra poética como esse enxerto que “preenche renova restaura”, para citar um verso paradigmático do poema “muda”, que faz parte do livro?
Entendi que minha escrita é em resposta. Tudo flui se estou em diálogo com pensadores de que gosto e admiro. Estou sempre digerindo, assimilando e fazendo algo dialogar com meus restos, meus retroses, minhas ninharias. Sempre que ofereço oficinas, proponho pensar sobre o porquê de escrever. Se pararmos para pensar, insistir nesse negócio de literatura, hoje, é uma coisa muito maluca. Em tempos de tiktok, Instagram, Chat GPT, escrever poesia é, sim, um gesto de resistir ao que esmaga, anula a singularidade. Então, penso ser importante olhar para o que move nossa escrita, para o risquinho que nos faz voltar ao mesmo ponto. Para além da vontade de satisfazer nosso pequeno ego, o que em si não é nenhum demérito, há um motor que funciona e nos direciona para esse jogo arriscado com a linguagem, em que nos lançamos sem muitas garantias. Nessa pergunta acerca do motivo da escrita está a chave, penso, inclusive para as nossas travas, para aqueles momentos de angústia em que até queremos, mas não há nada a dizer. É nesse ponto preciso que a poesia, quando acode, vem fazer suplência, fazer passar algo que não entra na linguagem comunicativa. É basicamente isso o que aprendo com esses filósofos que você mencionou e com a psicanálise: admitir que a linguagem é limite e recurso. Compreender isso torna possível fazer da língua uma prótese, um enxerto, assentindo em ir ao tesouro de significantes e usá-los, mas também se deixar usar por eles. É a poesia esse lugar onde manuseamos os signos, torcemos e soltamos para que digam algo de exclusivamente nosso. E ainda mais.
“A boa crítica não faz a obra de escada para esbanjar sua erudição, nem entende seu texto crítico como um veredito da corte. Acredito na crítica que faz com que leitores alcancem o projeto da obra e, mesmo quando ele é difícil, demonstra suas investidas, ressalta o que há de virtuoso e também aponta seus fracassos”
Você tem sido considerada pela crítica como uma das vozes mais importantes da poesia produzida mais recentemente em Goiás. O que significa para você esse tipo de avaliação?
Acho a crítica necessária. Penso que foi o Eduardo Sterzi quem enunciou algo que sempre pensei a respeito desse assunto. Ele disse que a crítica, a boa crítica literária, o que ela faz é fundamentalmente descrever. A crítica é uma leitura atenta e precisa do projeto literário de um autor. O crítico compreende o projeto por suas lentes, enxerga o movimento que o autor intentou fazer, aporta outras referências fazendo o texto dialogar e o apresenta ao público leitor. Nesse sentido, entendo que um bom crítico é, antes de tudo, um leitor acurado, capaz de vislumbrar e ressaltar aspectos que podem não estar prontos, mas que dão sinais de que aquela autoria pode se desenvolver. A boa crítica não faz a obra de escada para esbanjar sua erudição, nem entende seu texto crítico como um veredito da corte. Acredito na crítica que faz com que leitores alcancem o projeto da obra e, mesmo quando ele é difícil, demonstra suas investidas, ressalta o que há de virtuoso e também aponta seus fracassos, por que não? Se uma crítica assim reconhece o trabalho que desenvolvo, saber disso me alegra, porque entendo que ela amplia o alcance do meu trabalho, faz com que os livros cheguem aos leitores e, talvez, ajude a compreender, como fez o posfácio do Sterzi, coisas que estão ali e nem eu sabia.
Poema
acabamento
na cutícula da palavra
cingir a borda retirando o limite entre membrana e
casco sem beliscar a carne
a mesma língua nunca é
sempre outro o músculo viscoso
a gelatina que espalha e molha
excrevendo o excremento
de toda letra o gozo tardio no desenho
e a crueldade com quem aprende a forma
imperfeita impotente imprópria
é fácil
quanto tempo para amolecer os dedos
lapidar no rascunho desfrutar do resto produzindo o
calo
quanto leva o tempo para escarpar engrenagens
e dançar a espinha poronde fogem os nomes
histriônicos e vazios
rumo ao abismo
dos dizeres desde as jaulas
In: furonofluxo, de Fernanda Marra (Telaranha, 2023)
Leia mais poemas da autora em: https://ermiracultura.com.br/2019/10/10/cinco-poemas-de-fernanda-marra/
Livro: furonofluxo
Autora: Fernanda Marra
Editora: Telaranha
Páginas: 112
Preço: 54 reais
Onde adquirir: https://loja.telaranha.com.br/furonofluxo
Fotos: Cláudia Fernandez (@versosfotografia)