Pesquisadora do Departamento de História e Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa e membro integrante do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL), a professora portuguesa Catarina Pombo Nabais esteve em Goiânia no segundo semestre do ano passado, quando ministrou, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, a palestra Tatuagem Infame, em que apresentou um panorama sobre o uso da tatuagem como um dispositivo político ao longo da história e das civilizações. Naquele momento, Ermira Cultura solicitou-lhe, por e-mail, uma entrevista, mas a pesquisadora, por conta dos inúmeros compromissos por aqui, preferiu responder às perguntas com mais tranquilidade no seu retorno à Lisboa. Em janeiro deste ano, Catarina nos enviou as respostas, nas quais discorre longamente sobre o seu diálogo com a obra de Foucault e Deleuze para analisar o uso da tatuagem, inclusive a chamada tatuagem tecnológica – o mais novo investimento da ciência contemporânea –, para o controle de corpos, mas também sobre a tatuagem como expressão artística e a sua estigmatização pela sociedade ocidental. Na entrevista, em cujas respostas foi mantida a ortografia portuguesa, ela também comenta sobre o seu trabalho como curadora de arte em Portugal e a relação dessa atividade com a prática da filosofia, além da experiência de ter sido orientanda, no doutorado em Paris, do filósofo francês Jacques Rancière, com quem até hoje mantém uma estreita relação de amizade. Confira a seguir:
Você tem realizado pesquisas sobre corpo e poder com base nas obras de Foucault e Deleuze. Como isso se conecta ao tema da sua palestra na UFG, intitulada Tatuagem Infame?
Foucault e Deleuze são autores fundamentais para se perceber a relação do corpo com as estruturas do poder. Ambos pensaram os modos de constituição do sujeito como políticas dentro de regimes disciplinares e de controlo. Ora, a prática da tatuagem é uma prática de enunciação corporal e, como tal, é um dispositivo político. Na minha palestra, mostrei as diferenças desta prática em vários contextos: em tribos (onde significa sobretudo a pertença a um grupo específico, mas pode também ter múltiplos significados como, por exemplo, uma ligação intensificada com o divino), na antiga Roma e no domínio Nazi (onde a tatuagem foi usada como marcação dos corpos escravos e excluídos), na sociedade ocidental dos tempos victorianos, onde a tatuagem era estigmatizada e muitas vezes proibida (como no caso da coleção médica do Instituto de Medicina Legal [de Lisboa]).
Para se perceber a coleção de pele tatuada do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, usei sobretudo Foucault. O Foucault de Arqueologia do Saber demonstra a dupla vontade em que trabalha a emergência das ciências humanas: por um lado, a vontade de conhecimento dos indivíduos e, por outro, a vontade de controlo desses mesmos indivíduos. Quanto maior o conhecimento dos indivíduos, maior o poder sobre eles, desde o interior dos seus corpos até às dinâmicas da sua vida e das suas rotinas diárias. Mas também o Foucault de Vigiar e punir. O Nascimento da Prisão, onde explica como a constituição deste género de coleções responde a um programa de conhecimento e controlo dos indivíduos pelas instituições médicas, prisionais ou militares. O processo de recolha e catalogação das tatuagens, a documentação feita em torno de cada caso, os arquivos e os repositórios sobre a vida das pessoas com corpos tatuados (práticas legais e institucionais que instruem o processo dos desviantes nos Serviços de Medicina Legal) constituem esta secção documental e fazem parte de um aparelho de poder que visa conhecer e controlar os indivíduos. Daí, aliás, o panóptico, essa estrutura arquitetónica de observação dos corpos onde Foucault condensa a transversalidade e a imanência do poder.
Na minha palestra, para além de um primeiro momento de contextualização histórica da tatuagem, e de um segundo de visita rápida à exposição que co-organizei sobre a coleção médica de pele tatuada do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, também explorei um terceiro momento sobre a tatuagem tecnológica que está hoje a ser desenvolvida por vários centros de investigação médica em todo o mundo. Aqui foi Deleuze que me ajudou a pensar. Um Deleuze leitor de Foucault, um Deleuze que vai buscar o conceito de controlo para pensar a sociedade do século XX e que no seu diagnóstico é possível vislumbrar um prognóstico luminoso sobre o século XXI.
A teoria de Foucault da vigilância dos indivíduos compreendidos como parte das massas é ultrapassada pela contínua avaliação do que Deleuze – e é preciso não esquecer Guattari – chama os “divíduos”. Esses “divíduos” são os “dividendos” (dívida) de uma massa contínua entendida como data e fluxo de mercado. Deleuze e Guattari mostraram como este novo tipo de poder, já não o do espaço-tempo molar arquitetónico (onde os indivíduos estão fixos e controlados), mas um espaço-tempo molecular e contínuo do “divíduo”, transformou o conceito de corpo: o corpo já não é a muda entidade formada pela disciplina do espaço e do tempo como Foucault descreveu de forma tão brilhante. Nas sociedades de controlo, o corpo é uma entidade dentro do mercado global. É uma função de uma dívida infinita dentro do fluxo capitalista que, através de dados digitais, tem um comando perfeito e total da vida do corpo. O corpo tornou-se o locus da constante gestão social, uma espécie de posto de controlo de si mesmo. Portanto, ao contrário do Panopticon de Jeremy Bentham, com um ponto focal centralizado a partir do qual a actividade do indivíduo é vigiada, na sociedade de controlo temos uma matriz de informação difusa e descodificada que junta algoritmos, todo o tempo e em todo lugar. O que eu mostrei na minha palestra foi essa transformação do “Panopticon” para aquilo que eu designo como “Superpanopticon”: mais subtil, invisível, próximo e tão íntimo que se torna quase indiferente. Sabemos que estamos a ser vigiados, mas não somos forçados a estar num lugar específico. Pelo contrário, somos encorajados a nos movimentar e a não nos preocuparmos em ser vigiados. Esta normalização da vigilância tornou-se íntima do corpo contemporâneo.
Em Anti-Édipo e em Mil Planaltos, Deleuze e Guattari irão trazer a produção de subjetividade para o interior de uma ética do devir-menor e do devir-imperceptível. Deleuze e Guattari irão expandir o processo de subjetivação de Foucault para o problema da linha de fuga, da desterritorialização. Ao inventar o conceito de devir-animal, Deleuze e Guattari irão mudar o conceito de sujeito de Foucault para o conceito de sujeito que inclui todas as dimensões da vida. Há, portanto, uma radicalização do processo de subjetivação como zona de imperceptibilidade e de indiscernibilidade entre o sujeito e animais, minerais, cosmos. Ao fazer isto, Deleuze e Guattari irão ser capazes de afirmar um programa ético como um processo coletivo, uma “terra de ninguém” conectada à “mãe-Terra”. Uma ética que se estende a todos os tipos e dimensões das formas vivas: uma ecosofia, uma geofilosofia. Ora, como tentei mostrar, a tatuagem pode ser vista como expressão de uma vida pré-individual, de uma forma de vida maquínica e coletiva, como um bloco de sensação que expressa o Pensamento-Natureza-Terra da vida. E, nesse sentido, pode ser entendida como uma prática ético-cósmica, isto é, como um geo-graficismo.
Portanto, para resumir: Foucault e Deleuze são decisivos para se perceber a dimensão política imanente a todos estes momentos, precisamente porque nos permitem pensar de que modo os corpos são atravessados pelas estruturas do poder e de que modo o saber está sempre relacionado com o poder. No caso de Deleuze, ele também permite pensar uma linha de fuga desse poder. Estou convencida que Deleuze é realmente o filósofo do século XXI, como disse Foucault, porque Deleuze construiu uma filosofia da diferença e da singularidade, isto é, uma filosofia das pré-individualidades, das práticas colectivas de enunciação, da construção do corpo sem órgãos, o que permite reposicionar a ideia de corpo e de sujeito na sua relação com o poder hoje, de um corpo confrontado com as novas tecnologias e com um mundo de uma imanência virtual. E ambos são decisivos para compreender a complexidade do mundo de hoje e em particular a tatuagem tecnológica como dispositivo de um biopoder cada vez mais subtil e presente na vida quotidiana.
Como você vê a mudança de status da tatuagem, pelo menos no mundo ocidental, de uma perspectiva que a relacionava à criminalidade, no século XIX, reforçada pelas teorias de Lombroso, a um fenômeno contemporâneo da moda?
É muito interessante perceber essa mudança. Se, na Europa de finais do século XIX, a tatuagem era um símbolo de marginalidade, hoje vemos não só uma democratização da tatuagem, como uma moda, e mais até, como um investimento dos centros de investigação no desenvolvimento de um novo tipo de tatuagens: as tecnológicas.
Mas não foram apenas as teorias de Cesare Lombroso que estiveram na base do que se pode chamar de “teoria negativa ou repressiva” sobre a tatuagem. Devemos incluir também Charles Darwin, Alexandre Lacassagne e Adolf Loos, numa linha artística. O caso de Darwin é ambíguo. No seu trabalho estritamente científico, ele tem uma concepção positiva e construtiva da tatuagem como dispositivo de seleção natural. Foi no seu livro Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, publicado em 1871, que Darwin aplicou a sua famosa teoria evolucionária à análise específica da tatuagem. A atração física entre os indivíduos aparece como um dispositivo que promove as chances de cópula. É o garante da transmissão genética aos descendentes e da perpetuação da espécie. Portanto, segundo Darwin, as tatuagens cumprem essa função de atração sexual e competição entre pretendentes. São, portanto, uma questão de seleção natural. Porém, nas suas conclusões antropológicas, quando se afasta da pura observação e comenta o significado das tatuagens, Darwin comporta-se como um tradicionalista. Ele conceberá as tatuagens como prova antropológica da inferioridade da espécie humana. Por serem praticadas entre selvagens, as tatuagens são vistas como um sinal do estado primitivo do homem. Digamos que, aqui, Darwin não é tanto o grande biólogo, criador da teoria da evolução, mas o cidadão que cedeu aos valores conservadores da sociedade victoriana do seu tempo. E é esta interpretação moral, mais do que a sua conclusão científica, que será especialmente ouvida pelos seus contemporâneos.
Na verdade, esta teoria darwiniana da tatuagem, que podemos chamar de “evolucionária”, será a base para toda uma linhagem repressiva da tatuagem que se estenderá por quase toda a Europa, mas especialmente na Itália e na França. Na Itália, Lombroso estudou a tatuagem e formulou o projeto de constituição de uma “ciência criminal”. Ele criou uma teoria científica sobre o crime que era muito famosa na época. Conhecida como teoria do “criminoso nato”, o crime é pensado como um fenómeno natural e característico dos atávicos, ou seja, como uma predisposição genética de alguns indivíduos que reproduzem os estados primitivos, portanto inferiores, da civilização. Para Lombroso, a criminalidade é, portanto, inata, ancorada na biologia de indivíduos denominados “criminosos natos”. É neste contexto que a tatuagem é pensada como sinal de um estado primitivo e selvagem do homem, porque os atávicos manifestam, instintivamente, o desejo de comunicar através de imagens e desenhos (tatuagens) e não através de palavras.
Na França, Lacassagne também sublinha a importância das tatuagens como sinais reveladores do caráter do indivíduo tatuado. No seu livro Tatuagens. Estudo Antropológico e Forense (1881), Lacassagne analisa mais de 2.000 tatuagens pertencentes a 550 indivíduos. Ele entende a tatuagem também como expressão do caráter imoral do indivíduo e da predisposição ao crime.
Na Áustria também encontramos um movimento semelhante, liderado, desta vez, não propriamente por um cientista, mas por um arquitecto com preocupações morais muito fortes. É o caso do famoso arquitecto Adolf Loos, que escreveu, em 1908, um ensaio muito influente, Ornament und Verbrechen (Ornamento e Crime), uma espécie de manifesto contra todas as formas de decoração estética e uma declaração de aversão económica ao desperdício em geral. Loos era um racionalista moderno. Ele acreditava que tudo o que não pode ser justificado pela razão deve ser eliminado. Portanto, todos os adornos, inclusive as tatuagens, são supérfluos e completamente desvalorizados. Novamente, segundo Loos, a tatuagem é mais do que apenas um enfeite. Tal como acontece com Lombroso e Lacassagne, a tatuagem é efeito de um indivíduo degenerado. Assim como a decoração interior de uma casa é a expressão do espírito licencioso do seu dono, também as tatuagens eram o sinal de um carácter imoral, a expressão de uma personalidade rebelde que não segue normas e padrões de hábitos sociais.
O puritanismo de Loos ecoa a era vitoriana e enfatizou fortemente a luta moralista contra a degeneração da Europa Central no final do século XIX. Este julgamento negativo e pejorativo sobre as tatuagens foi defendido na cultura ocidental e tornou-se o ponto de vista “institucional” sobre as tatuagens na virada do século XX. E foi a mesma visão negativa sobre a tatuagem que se espalhou pela medicina e por todas as ciências sociais. Na Europa de finais do século XIX, algumas academias médicas consideravam a tatuagem como expressão de um distúrbio psicopatológico. Neste contexto, os tatuados eram estigmatizados, eram olhados como pessoas com uma predisposição inata para a prática criminal. Por isso, a tatuagem podia ajudar na identificação de delinquentes ou até ser um fator determinante no momento de decidir o encarceramento das pessoas. Também entre a comunidade médica portuguesa, a hipótese de uma forte correlação entre o comportamento criminal e a prática da tatuagem prevalecia nessa altura. A coleção de tatuagens do INMLCF [Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, de Lisboa] é disso expressão eloquente. Em Portugal, a tatuagem era uma prática proibida no início do século XX, por isso o INML estava em estrito contato com a polícia, a fim de fortalecer o esforço de identificação de indivíduos tatuados.
Ora, realmente há que salientar esse fenómeno extremamente complexo de passagem de uma visão negativa e repressiva da tatuagem para uma prática, em primeiro lugar, descriminalizada, em segundo, democratizada, e, em terceiro, vulgarizada em todas as culturas, idades e estratos sociais. De facto, hoje a tatuagem democratizou-se, afirmando-se como uma expressão comum, uma moda e uma prática artística. Influencia a fotografia, o cinema, o design ou a moda, sendo objeto de análise da filosofia, da arte, da medicina, da sociologia, da psicologia ou da antropologia. Com os movimentos de libertação sexual dos anos 60, por exemplo, passou a haver uma nova percepção e vivência do corpo próprio. O corpo passou a ser expressão de uma liberdade individual. Sem dúvida que a disseminação da tatuagem está intimamente ligada a esta nova forma de compreender e de experienciar o corpo próprio.
No entanto, creio que o mais importante não é tentar perceber as motivações que levam uma pessoa hoje a inscrever na pele, de forma permanente, um determinado desenho, motivo ou pintura. Por um lado, essas motivações são inúmeras e pertencem sobretudo ao campo da psicologia. Por outro, elas talvez não se tenham alterado assim tanto durante os tempos. O corpo é sempre entendido como um mapa no qual o sujeito vai gravando a expressão da sua vida e identidade, podendo distinguir-se dos demais ou ser uma forma de integração num determinado grupo. A tatuagem tem sempre um forte significado ritualista e simbólico, ao mesmo tempo que possui um valor social muito particular. O mais importante é tentar perceber – isso sim – o investimento que está a ser feito por vários laboratórios científicos por todo o mundo num novo tipo de tatuagem: a tatuagem tecnológica. Esta nova dimensão da tatuagem – uma tendência absolutamente contemporânea – tem imensas implicações éticas, sociais e políticas que devem ser pensadas. Esta mudança da tatuagem, de uma simples técnica artística para um dispositivo aliado da ciência e da tecnologia, obriga-nos a repensar não apenas a relação entre arte, ciência e tecnologia, mas também a relação da tatuagem com as estruturas de poder político e económico. Com esta nova tatuagem, testemunhamos hoje uma democratização e uma banalização do controle que é feito sobre os indivíduos. Muitas pessoas inscrevem-se a si mesmas com um dispositivo tecnológico que as controla a partir da sua própria pele.
Repare: as tatuagens tecnológicas podem ter fins utilitários, tais como fornecer um sistema de pagamento, encontrar pessoas num espaço ou dar instruções aos dispositivos Wi-Fi aos quais o sujeito tatuado pode estar conectado. Elas monitorizam dados vitais e biométricos, como batidas de coração ou níveis de glicose no sangue. Portanto, ao transformar os nossos corpos em “corpos inteligentes”, a tatuagem tecnológica tornou-se um superdispositivo biopolítico. Ainda que por enquanto temporária, a perspectiva futura é que a tatuagem tecnológica se torne num dispositivo biopolítico da vida diária. Isto, sim, é urgente pensar!
“Esta mudança da tatuagem, de uma simples técnica artística para um dispositivo aliado da ciência e da tecnologia, obriga-nos a repensar não apenas a relação entre arte, ciência e tecnologia, mas também a relação da tatuagem com as estruturas de poder político e económico“
Você também é curadora de arte e já participou da organização de diversas exposições em Portugal. Como a tatuagem se insere no campo das artes?
Em Portugal, o tema da tatuagem não é tão rico nem tão forte como no Brasil. Não há uma tradição da tatuagem como no Brasil, porque se trata de uma cultura ocidental, que de certa maneira tem uma relação com o corpo próprio mais abstracta, mais universalista e também mais moralista e conservadora. Até muito recentemente, na Europa, a tatuagem era estigmatizada e relativa ao corpo “selvagem”, “animal”, “inferior” das culturas colonizadas. Pelo contrário, o Brasil, como também a Nova Zelândia ou o México, por exemplo, são países onde a presença indígena – apesar de todas as atrocidades a que foi e ainda é submetida – é forte, mantém a sua cultura, a sua história, costumes, identidade. Não só está ainda preservada, como é activamente expressiva. Apesar de tudo, há ainda um lugar para a existência indígena, autóctone. Na Europa, a identidade das nações estruturou-se há muito tempo com uma espécie de homogeneização cultural que uniformizou o predomínio de um corpo “puro” (e branco), isto é, um corpo idealizado pelo cristianismo como devendo ser mantido no seu estado natural e divino.
Como curadora, gostaria muito de explorar mais este tema com novos artistas, quem sabe artistas brasileiros. Tive a alegria de poder trabalhar este tema com o MUDE – Museu de Design e Moda, em Lisboa, que é um museu muito ligado às questões do corpo na cultura contemporânea e que tinha no seu acervo um vestido tatuado de Jean-Paul Gautier, que fez parte da exposição. O MUDE também permitiu que tivéssemos a reprodução do célebre quadro O Fado, de José Malhoa, e uma peça da coleção Bijuteria medicamente prescrita, da artista Olga Noronha. No dia da inauguração convidámos alguns artistas tatuadores portugueses para visitarem a exposição e reinventarem algumas das tatuagens, foi muito interessante. Enfim, este tema é inesgotável e gostaria muito de alargar a visibilidade dele, que é tão actual e tão complexo, podendo explorar não só a sua dimensão filosófica, social e política, mas também a dimensão da ciência e da arte.
Explorando um pouco mais seu trabalho na área artística em Portugal, você também é fundadora e curadora da galeria de arte Oficina do Impossível, em Lisboa, e curadora convidada do Coletivo à Linha, formado por artistas de Cascais. Você poderia falar um pouco desse projetos?
Sempre estive ligada ao mundo artístico pelo meu tio, o pintor português Sérgio Pombo. Desde pequenina, tenho um especial prazer no contacto directo com as obras, com os artistas e com os seus ateliers. Era sempre uma alegria ir visitar o atelier do meu tio nos Coruchéus, em Lisboa, e ser invadida pelos cheiros das tintas, pelas várias telas em processo, pelas conversas com o meu tio. Trabalhar na área da Estética só faz sentido na ligação efectiva com o mundo da arte. Mas também fazer filosofia só faz sentido se estiver conectada com as pessoas, com a sociedade civil. Para mim, desde cedo, deixou de fazer sentido a filosofia que se faz apenas na academia, fechada para os académicos. A filosofia é uma ferramenta para pensar e para construir novos modos de vida, portanto, para mim, só faz sentido fazer filosofia “branchée sur le réel”, como diria Deleuze. Daí este meu lado “prático” indissociável do lado “académico”. A Oficina Impossível nasce, precisamente, da ideia de proporcionar um espaço de arte não hierárquico, de fácil acesso para o público em geral, onde toda a gente se possa sentir à vontade no meio de obras artísticas e filosóficas, como se estivesse em casa. Daí que fiz questão de ter, no próprio espaço da galeria, uma estante de livros com uma chaise-longue para recriar o ambiente de uma sala de estar. Ou seja, mais do que uma galeria, a Oficina Impossível é um espaço para as artes e para a filosofia: para a sua produção (com ateliers), para a sua exibição (galeria) e para a sua discussão (conversas com artistas, por exemplo). Quanto ao Colectivo à Linha, foi um convite que me foi feito ainda antes da pandemia. Visitei uma exposição deste colectivo de artistas de Cascais e gostei muito da diversidade que o compunha. Também gostei muito da ideia de ser um colectivo que se une por um território específico e pelas vivências de cada um nesse território, umas passadas (uma vez que alguns artistas nasceram ali, mas actualmente residem noutros lugares), outras presentes (alguns artistas nasceram noutros lugares mas decidiram viver em Cascais).
“Para mim, desde cedo, deixou de fazer sentido a filosofia que se faz apenas na academia, fechada para os académicos. A filosofia é uma ferramenta para pensar e para construir novos modos de vida”
Você foi orientanda do filósofo francês Jacques Rancière no seu doutorado na Université de Paris VIII, e ele assinou o prefácio do seu primeiro livro, Gilles Deleuze: Philosophie et Littérature (2013), que saiu pela prestigiada editora L’Harmattan, e depois foi traduzido para o inglês. Como foi essa convivência com Rancière? Você ainda mantém contato com ele?
O Rancière é o meu pai filosófico. Marcou definitivamente o modo como me relaciono com a filosofia e sobretudo com Deleuze. A sua crítica, por exemplo, de uma política em Deleuze fez-me ter um recuo e um sentido crítico face a Deleuze que foram fundamentais para a minha tese. Como os seus textos, Rancière é uma pessoa extremamente inteligente, veloz de pensamento, complexa e subtil. Conversar com ele é uma experiência de velocidade do pensamento! E também de velocidade física, porque é uma pessoa em excelente forma e que anda muito rápido (risos). Mas, acima de tudo, Rancière tem uma generosidade apenas partilhada pelos grandes, pelos deuses. O facto de ter escrito um prefácio para o meu livro é de uma generosidade fora do normal à qual estarei para sempre muito agradecida. Sim, mantemo-nos em contacto por e-mail. Também já o convidei uma vez a vir a Lisboa e, das outras vezes que tem vindo, combinamos sempre um jantar. Tenho a honra de poder dizer que o Rancière e a sua esposa Danielle são amigos da família.