Um gesto coquete e uma tosse nervosa emolduraram o que a moça confirmou com voz firme:
“Sim, é claro que ele não sabia.”
“O reino dos mortos, o vale das sombras” – pensei, conformado.
Assim respondeu a bela mulher de olhos cinza, naquela cidade infame, cujo calor parecia reduplicar no horizonte outra linha mais trêmula e indefinida. “O saber sempre foi o inimigo número um da morte”, refletiu um gálata, muito tempo depois das pregações do apóstolo Paulo, na Ásia Menor.
Nós estávamos num restaurante que tinha estilo. Eu só me encontrava ali porque esperava uma explicação. Quando ela terminasse a sua história, consideraria os pontos soltos e tentaria fazer as amarrações.
O comportamento irresponsável dele, o seu envolvimento com os gângsteres, a minha ausência, o mecânico, o assassinato – todos os pormenores, como um puzzle cujas peças devem ser encaixadas. Ela me procurou há coisa de três dias; só recebi, porém, o seu recado à véspera desse encontro. Ela deixou numa folha do hotel, em letras apressadas, um escrito enigmático:
“Às 17h, na entrada. Sei de coisas que você desconhece. A maldição do bonde. A morte de seu irmão.”
O nome Marly, com ípsilon, assinado no final, emprestava a essa mensagem um mistério de pulp fiction. Na hora indicada, eu estava em pé na portaria. Quando um Golf encostou, abri a porta e entrei, talvez para a minha danação. Ela disse “oi”, olhando-me detrás de um ray-ban, enquanto acelerava queimando os pneus Michelin. Depois de subir um monte de ruas, estacionou no alto, à porta de um restaurante, cuja varanda abria-se ao final da tarde à paisagem lá embaixo, imersa em luz mediterrânea.
O mar azul, o porto com os seus cargueiros, as pessoas que admiravam as embarcações fundeadas. Para dar graça ao cenário, uma gaivota, duas gaivotas, três gaivotas, uma que planou e depois posou num barco – tudo isso era possível de ser visto lá de cima. Não me senti ameaçado – apenas curioso. O charuto que ela acendeu exalou um aroma adocicado, quando indicou:
“Está vendo aquele ponto esquerdo da enseada, onde a praia se reduz?”
“Como uma ave de rapina”, respondi.
Ela então continuou indicando e acreditava no que estava dizendo.
“Era ali que ficavam os trilhos do bonde. Foi nesse lugar que os filhos da puta o mataram!”
E lá estava a curva – a curva onde gostávamos de ficar. Eu e a minha turma. Morrer num vagão. Nunca tive nada contra os bondes, principalmente os fabricados com bom material, mas nunca poderia aceitar que o matassem dentro de uma gaiola. Naquela curva, exatamente naquela curva, dentro de um transporte público, eles o pegaram – foi isso afinal o que ela veio confirmar. A curva conduzia a uma subida. O alvo assim tornava-se ainda mais fácil porque o veículo estaria lento. Quando, daquele lugar, compreendi o cenário que ela descortinava, fiz a última pergunta:
“Ele sabia que iria morrer naquela curva?”
Ela olhou a cidade que se modificava lá embaixo com o cair da noite – e sussurrou, aproximando-se a cabeça do meu pescoço e começando a lambê-lo, a sua língua roçando suavemente a minha orelha, num contato que me arrepiou e me surpreendeu – e também me desnorteou.
“Não, claro que não sabia.”
Assim próximos, quase fundidos, reparei que ela era mais bonita do que supunha. Quando terminou com a minha orelha, apertou em seguida o meu rosto, uma das mãos acariciando a minha cabeça, e disse, num tom de lamento:
“Eu esperei você tantos anos…”
Ela não sabia que uma eletricidade percorria o meu corpo numa voltagem acima de 220 volts; fitando-me em sua meiguice – olhar de quem agitava os meus sentimentos –, perguntou então sem mover um músculo:
“Você gostaria de conhecer o meu apartamento?”
Eu não tinha a menor dúvida de que essa mulher estranha e inesperada prometia surpresas, como as das gaivotas que, lá embaixo, voavam em bandos, alegrinhas e descomprometidas. Eu sempre quis conhecer uma mulher que me enlouquecesse num restaurante suspenso à beira de rochedos, uma fantasia que começava a se realizar.
“Vamos nessa.”
Eu não queria, na realidade, saber de outro lugar que não fosse aquele onde estar ao lado dela significasse pelo menos um idílio. Eu só desejava que a moça me devolvesse à realidade antes que tivesse uma síncope naquele ambiente costeiro. Foi então que ela prometeu, anulando o devaneio:
“O crime do bonde – só conto essa história lá em casa.”
A partir desse ponto, dei-me conta de que estava à sua mercê. Se quisesse mesmo continuar a investigação, teria de ficar na sua cola. Não porque estivesse diante do mar, tinha de reconhecer, entretanto, que o vento soprava a favor do meu barquinho. Ainda vi uma gaivota descer num voo elegante quando ela funcionou o carro e acelerou, dessa vez poupando os Michelin.
Já era quase noite.
Dali, eu via as luzes acesas na baía, lá embaixo – pontos luminosos que marcavam os edifícios e as casas, sem contudo revelar os conflitos que se escondiam atrás das janelas. Quando entramos, o seu apartamento era tudo o que eu esperava – menos a ênfase ao estilo clean.
“Antes da conversa”, ela perguntou, “você gostaria de um uísque?”
“Você tem Jack Daniel’s na casa?” – devolvi a pergunta enquanto ela se dirigia à cristaleira.
Junto com a garrafa e os copos, trouxe um pacote no qual havia várias fotos.
Quando eu o abri, uma delas caiu sobre o tapete – aquela em que ele sorria com o seu olhar de peixe morto. Há muito tempo, essa foto tinha sido tirada por mim, antes da minha longa viagem. Tomei um gole demorado para segurar a emoção que aquela imagem provocava. Pouco depois, antes de examinar as outras, perguntei:
“Como você conseguiu estas fotos?”
“Foi o Lino que as deixou comigo. Aliás, se você quer saber, ele deixou muita coisa aqui. Coisa pra caramba.”
Agora, outro nó começava a ser desatado. O velho Jack, as fotos – tudo começava a fazer sentido. Nos últimos anos, Lino tinha sido o seu amante e, pelo visto, eu seria o próximo da fila. Perguntei-lhe como o tinha conhecido.
“Foi numa festa. O seu irmão estava com amigos. Na saída, chovia muito, e ele me ofereceu uma carona. Nessa noite, bem, pra dizer a verdade, foi aí que tudo começou.”
Naquele momento, compreendi que a minha ausência prolongada havia sido um descuido que agora tentaria reparar. A mulher de olhos cinza esperava que eu dissesse alguma coisa que ampliasse a sua expectativa. Continuei sorvendo o uísque. Antes de falar, porém, dei-lhe um amasso demorado, tentando recuperar a eletricidade do restaurante. E depois falei, quando ela começou a desabotoar a sua blusa de seda:
“Acho que a conversa sobre a morte do meu irmão vai ficar para mais tarde…”
E ficou mesmo, pois, após estarmos recuperados da exaustão, indaguei finalmente:
“Quem matou o meu irmão?”
“Acho que esse assunto pode esperar mais um pouco…”
Sem me preocupar com a tempestade que estava por vir, a noite com ela foi muito curta, o que é outro modo de dizer que cada minuto ao seu lado escorreu rapidamente, como se cada um explorasse com ânsia o segredo do outro, o lençol exalando um cheiro bom de flores silvestres misturado ao de mulher que deixa os seus rios silenciosos afogarem a alma de um homem. Não era difícil reconhecer: a sua beleza se aproximava da perfeição, a pele próxima à cor de cobre, inundada de brilho e maciez; as nervuras do corpo, compostas de contornos suaves, tornavam-na uma mulher própria das ilustrações eróticas que inventam corpos divinos, como nos desenhos de Crepax. Eu não sei quantas vezes passei a mão em seu corpo enquanto ela se encolhia e respirava ansiosa a cada movimento, comprimindo as suas coxas contra as minhas. Antes disso, dessa cumplicidade obsequiosa, ela disse, os olhos embaçados de desejo:
“Primeiro o sexo, depois a informação” – e voltou a se enrodilhar no meu corpo apertando-o, enquanto a luz da manhã insinuava-se pela janela. Ao fim de outro êxtase, quando a claridade começava a revelar a cidade lá fora, comentei:
“O seu nome então é Marly, a ex-namorada do meu irmão. Eu sempre gostei do nome de mulheres cuja letra termine em i grego.”
Ela apenas ouviu e sorriu, como se eu tivesse dito uma frase humorada.
Assim que a luz da manhã se impôs dentro do quarto, decidiu:
“Vou preparar o café” – e levantou-se, carregando a escultura do corpo, as pernas longas e bem-feitas, tão torneadas como as de Cyd Charisse. Ela sabia que era um animal raro – a mais bela sereia do cardume. Algum tempo depois, diante da bandeja, começou a soltar informações:
“Eu morei com o seu irmão durante alguns anos. Ele sempre falava de você.”
Dos cinco rapazes que não tinham medo de cara feia, nem de chumbo quente, nem de becos sujos, o meu irmão era o único que encarava as piores paradas e as mais violentas contendas – e sempre se saía bem, apesar dos hematomas e da roupa manchada de sangue. Uma de suas diversões – que só confirmava o seu desvario – era a de mergulhar dos altos rochedos. Além dessa façanha, gostava de espancar os mauricinhos que o provocavam.
“Um dia, ele me falou: ‘Se algo me acontecer, procure o meu irmão.’ Neste último ano, fiquei tentando localizar você, até que um dos rapazes de sua antiga turma conseguiu o seu endereço, e bem – esta é a história.”
Nesse ponto, no seu relato entrecortado, ela disse que o meu irmão continuou agindo com a velha turma, mas decidiu largar os trabalhos barras-pesadas, que ele devia uma grana ao chefão que frequentava o Meias de Seda, uma boate acima da curva do bonde, o antro onde os mafiosos acertavam negócios.
“Por causa de minha preocupação, ele prometeu que iria continuar o curso de mecânica e afastar-se das encrencas. Ele dizia que eu era a pessoa mais importante de sua vida, que iria ao inferno se eu pedisse, que iria adorar o chão que pisava – e não sei quantos mais quês… Tudo conversa fiada: o caranguejo não muda o seu jeito de andar.”
“Afinal, por que ele foi assassinado?” – a pergunta que precisava fazer.
“Eu acho que foi por causa de um golpe no qual levou a pior, por não aplicá-lo com maestria. Mas os atiradores estão por aí, caso você não queira passar uma borracha sobre essa morte.”
Eu não queria.
Para encerrar o seu relato, completou:
“Houve inquérito, interrogatórios, ninguém foi preso, essas encenações todas – você sabe, do que estou falando, né? A polícia come na mão da máfia.”
Quando a fascinante Marly derramou a última gota de café em minha xícara, perguntou distraída, pois vigiava também o voo errante de um inseto:
“Você aceita mais café?”
Com um sinal que significava “não”, acendi em seguida o charuto que estava largado sobre a mesa e indaguei, como se eu fosse um super-herói de gibi:
“Em que momento os vermes que mataram o meu irmão serão localizados?”
Antes de responder, recolheu a bandeja e levou-a para a cozinha, os passos leves de gazela, como se pisasse num tapete persa. Porque as mulheres são a perdição dos homens, voltou vestida com uma camiseta minúscula amarrotada, na qual havia a estampa de uma fada mais gostosa do que a Sininho – e fez-me o apelo:
“Você só ganhará essa guerra se ficar confortável – encerre a conta do hotel e mude para a minha cama. Como é de seu conhecimento, tenho as fotos, o uísque e o resto da história.”
E voltamos em seguida para a cama. Logo depois, eu a abracei e, não sei por quanto tempo, respiramos juntos, ali, entrelaçados, imantados, o mundo movendo-se com todos os seus ruídos lá fora. O colchão amortecia os movimentos hidráulicos.
É assim, sem muita glória, que posso resumir a história infeliz do meu irmão: ele morreu e eu fiquei com a sua mulher, uma fêmea com a qual todo homem sonha. De certo modo, ele a enviou para mim, no seu jeito bronco de dizer as coisas. Nisso, eu tenho de ser grato a ele, pois era o único irmão da minha vida monótona e triste, com quem aprendi uma porção de coisas, algumas boas, outras ruins, entre elas a de lutar com faca e a de limpar um carburador. No meio da tarde, acordei com sobressalto, depois de um sonho que me causou angústia – e abri os olhos aliviado quando a vi ressonando no travesseiro ao meu lado. Ninguém apontava uma arma para mim, e no apartamento havia uma paz que flutuava solene sobre os móveis e objetos.
Quando estávamos refeitos, quis saber, só para ter certeza:
“É a partir de hoje que vamos arrebentar os caras? Essa parada é exclusivamente minha: ajude-me até certo ponto, sem se expor.”
Fazendo uma careta de deboche, ela respondeu:
“Nada disso, baby – nós vamos agora bater um papinho com um cara.”
O cara, soube logo depois, era o cobrador do bonde.
Após o crime, ele mudou para um bairro grã-fino e, segundo as colunas sociais, dava festas que congregavam pessoas de caráter duvidoso. No percurso, ela comentou:
“Esse cara que nós vamos ver é um filho da puta. Ele recebeu uma grana para ficar de bico calado. Pelas evidências, estava com as mãos e os pés atolados no complô.”
Eu não sei se prestei atenção ao que ela dissera pois admirava as casas e as ruas por onde o carro passava. Na frente de uma mansão, o jardim iluminado, estacionou o Golf. Nós olhamos para a fachada, cujas janelas irradiavam uma luz mortiça. Eu ouvi a sua voz quando ela perguntou no interfone:
“O Andrezinho do Troco está em casa?”
A voz, lá de dentro, respondeu:
“Não, ele não está. É só com ele?”
Em seguida, falou, com o seu melhor escárnio:
“Eu não quero causar insônias nesta casa, mas diga ao Andrezinho que o irmão do Lino está zanzando por aí, feito um cachorro louco.”
Naqueles dias, eu estava vivendo a vida que pedi ao Diabo. Depois de fechar a conta no hotel, peguei a bagagem e instalei-me em seu apartamento. Era como se eu estivesse em casa. Sem luxos, mas com a fartura dos bons vivants, estava ciente de que desfrutava ali de um requintado conforto – e por isso tinha na cama e na mesa as mais cobiçadas joias.
Um dia depois, pedi que fôssemos de novo ao restaurante que ficava nas falésias, de onde se podia enxergar o mar da varanda, as gaivotas no ar e a enseada onde a praia se reduz. Lá de cima, observava a curva do bonde. Foi assim que vi pela última vez aquele cenário pelo qual começava a me afeiçoar, longo e aberto, no fundo do qual a linha do horizonte parecia oscilar. Todavia, no meu modo de entender, mais imponentes eram as gaivotas – as que flutuavam leves sobre o oceano, as que faziam acrobacias em seu voo largo e as que, por serem espertas, roubavam comida de outras aves. Na despedida exclamei como um condoreiro:
“Adeus, gaivotas! Para onde vou, as aves são de outra espécie.”
No retorno ao apartamento, uma dose do velho Jack à minha frente, ela trouxe o pacote de fotos para que eu afinal as examinasse. Depois de verificar o conjunto, separei uma na qual o meu irmão aparecia com o seu olhar de peixe morto. Ao seu lado, segurando um copo, havia um tipo com toda panca de cafajeste. Com a foto na mão, perguntei, apontando-o:
“Esse cara, quem é ele?”
“Nós estivemos em sua casa – este aí é o tal do André do Troco.”
Óculos de aros metálicos, cabelos aloirados, um jeito efeminado de segurar o copo – um sujeito ambíguo, com modos de bicho ardiloso.
“Então é esse o cara com quem devo bater um papinho?” – perguntei outra vez, enquanto ela colocava no aparelho um disco cuja capa mostrava a foto de Billie Holiday. Em seu belo contralto, começou a desfiar um blues. A imagem do idiota na foto sucumbiu à voz da cantora. Tudo desapareceu, até o meu ódio e a minha vingança. Depois do arrebatamento, ao final da canção, quis saber:
“Qual era a do meu irmão com esse cara?”
“Bem, eles faziam assaltos juntos e participavam de muitas tramoias. Uma vez, acompanhou o seu irmão num grande lance, que envolveu um montão de grana. Milhares de dólares, de repente, desapareceram. O André armou feio para o seu irmão seguindo a ordem dos chefões e, claro, deve ter ficado com grande parte do dinheiro, pra poder hoje curtir essa vida de babaca.”
Depois da explicação, eu quis saber outro ponto específico:
“O meu irmão, por acaso, deixou com você uma Speedo de alças longas?”
Ela se levantou e dirigiu-se à dispensa de onde trouxe a sacola. Afinal, eu recuperava a fiel amiga de treino na academia. Quando ela a entregou, procurei em seguida com calma – pois sabia que estaria lá, adormecida em seu gume – e encontrei na bainha a faca Bowie de 6 polegadas, a minha predileta. Para quem luta com lâmina, a Bowie não é apenas um objeto de arte da cutelaria – é um aço meticulosamente preparado para retalhar, seccionar, cortar, perfurar e, no meu caso, tirar o escalpo de um bandido escroto que deu o azar de atravessar o meu caminho.
Mal começou a semana, passei a movimentar-me. Eu queria desatar o último nó rapidamente. Antes de pedir o Golf emprestado, comentei, porque essa dúvida tinha a ver com o meu passado e, por mais imprevisível que fosse, com os meus dias vindouros:
“Nunca entendi por que você, sendo tão classuda, namorou o meu irmão.”
Por causa dessa observação, uma cor rósea invadiu o seu rosto, iluminando a sua beleza. Como se tivesse sido flagrada numa situação vexatória, ela me encarou e em seguida revelou a sua fragilidade – e os seus olhos tornaram-se um céu enevoado. A Marly com ípsilon segurou a minha mão e explicou-me o mormaço que a atingira nesses últimos anos:
“Porque ele era um bandido que tinha gentileza e porque resolveu, de uma vez por todas, um velho problema mecânico que engasgava o motor do meu carro.”
Como essa resposta não fosse satisfatória, insisti noutro pormenor:
“Nenhum cafajeste merece você, nem mesmo o meu finado irmão, por mais incomum que fosse a sua bondade. Até onde sei, você nunca me pareceu uma viúva que mandasse celebrar missa de sétimo dia.”
Por causa do comentário descortês, soltou a minha mão, o rubor nesse momento tornando-se mais visível, os olhos cinza vazando lágrimas. Então disse:
“Durante todos esses anos, o seu irmão só falou de você. Foi ele, por assim dizer, quem me empurrou para os seus braços.”
Assim, face a face, olhando um para outro, compreendi que eu tinha encontrado por meios tortuosos a mulher da minha vida. Eu só esperava naquele momento que ela dissesse que tinha me esperado a vida inteira. Mas ela disse outra coisa:
“As chaves estão em cima do aparador” – e saiu, deixando-me com a minha sombra no piso.
Nos dias em que fiz campana perto da mansão do André, descobri pelo menos três coisas: ele chegava à noite bêbedo; ele entrava às vezes com o seu namorado; quando chegava sozinho, era descuidado e, talvez por excesso de confiança, não ligava o alarme. Toda essa negligência permitiu que numa noite eu entrasse logo depois dele, a porta semiaberta. Quando atingi a parte central da sala, as luzes se acenderam de uma vez. Por causa da claridade súbita, fiquei cego por alguns instantes. Assim que voltei a enxergar, havia uma arma apontada para mim. Eu tinha caído como um otário em sua arapuca.
“Estava te esperando, cachorro sarnento, irmão do mané!” – grasnou.
Sem perder a calma, gargalhei e disse, para ganhar tempo:
“Na minha cidade, os que vão morrer costumam esperar deitados.”
Examinando num relance o ambiente, tudo que estava ali era cafona: tapetes baratos, fotos de cavalos dependuradas nas paredes, sofás imitando couro e candelabros de três braços sobre uma lareira falsa – o lixo costumeiro dos gângsteres.
Num átimo, de surpresa, como uma feiticeira, Marly surgiu de repente por trás e desferiu um golpe em sua nuca com uma barra de ferro. Pego desprevenido, atirou num ato reflexo para o chão – e desabou, um desmaio que antecedia a sua morte. Foi aí que ela me disse, enquanto passava por cima do corpo inerte e chutava a arma em minha direção:
“Nós somos parceiros, baby – se isso quer dizer alguma coisa para você.”
Como a rua estava deserta, ninguém viu quando colocamos o corpo no banco de trás; para evitar imprevistos, amarrado e amordaçado. Eu conduzia o carro em direção a um galpão abandonado nas cercanias da cidade, um lugar que tinha descoberto recentemente, depois de muito zanzar, que serviria aos meus objetivos. No caminho, eu a repreendi, mas pegando leve:
“Parece que tínhamos combinado que o Lino seria um assunto pessoal – e que você iria ficar longe da sujeira.”
Ela não deu muita bola para o que eu disse, mas mesmo assim comentou:
“Logo depois que você saiu, recebi uma ligação de alguém que pertencia ao seu antigo bando. O recado era pra você. Essa pessoa advertiu que havia uma cilada armada na casa do André. Peguei um táxi e entrei pelos fundos. Bem, o resto você já sabe.”
Claramente, a sua intervenção fora um sucesso, além da conta. Não pude deixar de agradecê-la, pois, naquela situação fodida em que me encontrava, ela salvou o meu couro. No deserto, poucos animais compartilham o mesmo poço.
“Cá estamos, cá estamos, um bandido desmaiado, uma mulher linda, porém incomum, e eu remoendo a minha vingança, como um rato rói a roupa do rei de Roma” – pensava para desanuviar a cabeça, enquanto dirigia por ruas escuras.
O mundo que eu estava movendo, formado pela corja dos piores facínoras, exigia tanto sorte quanto ações calculadas. Até agora, as circunstâncias tinham agido a meu favor. Dali em diante, eu não poderia mais tropeçar e tinha de adotar estratégias que funcionassem. Quando chegamos ao galpão, a noite já avançava. Ela me ajudou a retirá-lo do carro. Ele estava meio grogue e por isso andava trôpego. O desgraçado dava canseira.
“Aonde vocês estão me levando?” – depois que tirei a sua mordaça, grasnou outra vez.
Naquela situação, eu tinha de rir de novo, por causa da sua voz de marreco.
“Vocês não sabem com quem estão lidando!”
Ignorei as ameaças e obriguei-o a sentar-se num caixote. A luz pálida que entrava pela vidraça revelava o seu pavor. Disse a Marly para me esperar no carro porque não seria nada agradável ver um homem esvair-se em sangue, implorar, gemer e gritar como um louco varrido.
Quando se deu conta do martírio que o esperava, começou a espernear e a chorar. Para acabar logo com aquela histeria inútil, dei-lhe uma porrada nos cornos e, depois de colocar luvas cirúrgicas, puxei a faca Bowie. O pânico só piorou a sua voz de Pato Donald.
“O que você quer de mim? Tenho um monte de dinheiro – podemos negociar!”
Sem nada dizer, decepei num golpe rápido a sua orelha direita. Depois dessa mutilação, anunciei:
“Eu sou o irmão do Lino. A morte dele pesa sobre você, que o traiu, e sobre os atiradores, que o mataram. Todos vocês estão ferrados!”
E, para esquentar o aço Bowie, arranquei logo em seguida a outra orelha. Lá fora, sob o clarão da lua, a mulher de olhos cinza ouvia gritos que congelavam a alma, como se André tivesse encontrado naquela madrugada o pior demônio de sua ignóbil vida.
Eu não tinha a intenção de permanecer muito tempo no local. Algumas moscas varejeiras, como se a decomposição as atraísse, apareceram aos poucos e começaram a rondar os pedaços de carne caídos no piso. A qualquer momento, André entraria em estado de choque. Antes que isso ocorresse, tentaria obter o mais rápido possível a informação que escondia:
“Dê-me o nome dos atiradores, e o seu sofrimento termina agora” – blefei, empregando uma tática manjada de interrogatório. Como os canalhas que têm a alma à beira do inferno, suplicou desesperado:
“Não quero morrer! Me leve pro hospital…”
Observando-o ali indefeso, a roupa encharcada de sangue, notei que um homem sem orelhas parece a caricatura de um alienígena. Eu começava a ter asco dos atos que estava praticando. Mas sabia que tinha de executar aquelas ações daninhas, pois havia viajado de muito longe para acertar essa conta. O meu irmão merecia respeito e sobretudo uma longa vida. Eu devia isso a ele. A sua morte recairia também sobre todos os que contribuíram, de um modo ou de outro, para o seu fim. O que eu fazia ali – destruindo um homem, obrigando-o a sofrer e vendo-o implorar – era praticar o meu senso de justiça num mundo onde as regras não valem nada, onde impera a lei dos mais poderosos, onde a barbárie às vezes substitui a ordem. Por causa da dor e da hemorragia, ele tremia, vomitava e se contorcia. Reanimei-o jogando um pouco de água em seu rosto e insistindo na pergunta:
“Você só precisa dizer o nome dos caras que mataram o meu irmão. Isso não é pedir muito, não é mesmo?” – tentei convencê-lo mais uma vez, em tom menos ameaçador.
O rosto transfigurado, decidiu por fim tocar a gaita:
“Os dois gêmeos…”
“Você tem certeza do que está falando?”
“Sim, juro por Deus. Agora, por favor, me ajude.”
Eu sabia quem eram esses siameses – eram dois psicopatas que se vestiam de preto, como os nazifascistas.
Hans e Fritz.
Um par desprezível, capangas teutônicos do chefão Minestrone, um capo gorducho e vesgo. Ele ganhou esse apelido porque, toda vez que tomava sopa, deixava o caldo escorrer na gravata. Gravei os nomes e depois fiquei rindo, sacudindo a cabeça – “Os dois gêmeos…”.
A despeito do sangue que perdera, André ainda respirava. Olhei para aquele molambo que começava a desvanecer-se e não senti compaixão. Desculpe o trocadilho, mas ele estava só recebendo o troco. Num movimento incompleto, levantou a cabeça e tentou falar alguma coisa – os olhos sem brilho, quase apagados, suplicantes – e, com um estertor, foi-se para sempre, desmanchando-se.
Já era quase de manhã quando Marly entrou no galpão. Embora não fizesse frio, ela tremia, pois sabia que aquele episódio não encerrava nada. Muito pelo contrário, só desencadearia mais violência, muita violência, cujo desfecho era imprevisível, pois eu não tinha bola de cristal e por isso teria de refazer a minha estratégia. A minha vontade agora era a de deixar aquela cidade enferma e viver uma vida bucólica e lírica ao lado de Marly, a mulher que mudara a minha vida. Mas eu sabia que para isso teria que ralar muito. Eu guardava no colete dois nomes que estavam fomentando a minha sede de sangue. Esses animais também me deviam, e eles iriam pagar-me, todos os dois, mais cedo ou mais tarde, com a mesma dor que levara o meu irmão. A vingança apenas começava. Dali em diante, eu teria apenas de redobrar os meus cuidados e elaborar planos eficazes. A notícia da morte de André iria logo feder no covil dos mafiosos, os quais também me deviam um mar de sangue. Cada coisa tem o seu tempo, disse o profeta.
Enquanto Marly dirigia, encostei a cabeça no vidro da janela e dormi um tempão. Quando acordei ao longo do caminho, agitado e confuso, por causa de um carrão que passou barulhento em sentido contrário, perturbando o meu sono, achei que tinha sonhado com Hans e Fritz sendo cozinhados lentamente numa grande panela.